London, London — insone quase manhã de abril [de 1974]
Desisti enfim de tentar dormir, abri as cortinas para mais um dia cinzento de primavera (primavera inglesa, é claro), sentei na mesa e fico olhando a paisagem de casas semidemolidas e chaminés até onde o olho alcança. Fumei o último cigarro (Number Six), sinto fome - não tem nada aberto a essa hora e, mesmo, só tenho 80 pences que precisam durar até amanhã. Homero saiu para trabalhar, me deixou o relógio. Vezenquando um ventinho entra pelas frestas da janela e faz musiquinha nos sinos chineses que dependurei no teto. As tulipas que roubei do parque de Swiss Cottage desbundaram definitivamente - só ficaram duas amarelas, levemente bodiadas.
Tua carta chegou ontem. Minuano é um vento que só existe no Rio Grande do Sul e que, dizem, sopra nos Andes. Em Porto Alegre só tem raramente, mas em Santiago do Boqueirão, onde nasci, tinha sempre. Zune fininho nas portas e janelas, corta os lábios e atravessa qualquer roupa. Minuano é cortante, impiedoso, gelado.
Tenho medo de te ferir. Mas acho que precisamos “falar seriamente”. Desculpe, mas acho que sim, sem fantasia, sem comicidade. Me pergunto sempre se você não teceu em volta de mim uma porção de coisas irreais - se você não estará projetando em mim qualquer coisa como um príncipe encantado - esperando a minha volta como quem espera a salvação. Você diz que me ama. Eu digo que você não pode amar a uma pessoa com quem transou há três anos atrás, e que viu rapidamente num aeroporto, e que escreveu e recebeu cartas durante um ano. Verinha, sei lá, amor a gente transa cara a cara, corpo a corpo. Não sei se te amo. Saberei isso quando a gente se encontrar outra vez e começar a transar, e der certo ou não.
Você fala em casar. Algum tempo atrás falei nisso talvez por romantismo, por solidão ou brincadeira, ou mesmo seriamente. Não quero casar. Casamento é uma coisa completamente estúpida - e sua explicação de comprar a aprovação das famílias não tem o menor sentido. Se você me amar e eu te amar, não precisamos da aprovação de ninguém para ficar juntos, como também não precisamos assinar nenhum papel ou aceitar qualquer espécie de jogo. Não acredito que maus fluidos, por mais fortes que sejam, consigam destruir um amor bonito, limpo. E um filho só teria problemas com o fato dos pais não serem casados apenas no caso de ter sido educado muito caretamente - o que não acontecerá se um dia eu tiver um filho.
Há também uma outra coisa muito séria que você não pesou bem até agora. E sou muito franco com você: tenho um componente homossexual muito forte. Até hoje, minhas relações heterossexuais sempre foram, sei lá, meio idiotas - porque, realmente, afora você e uma outra garota gaúcha, M., o corpo feminino é uma coisa que não consegue me entusiasmar. Nunca fui exclusivamente homossexual ou exclusivamente heterossexual - creio que nunca serei. Mas também me pergunto até que ponto você REALMENTE poderia aceitar isso em mim. Pense com você mesma e procure ser muito honesta na resposta.
Verinha, estou mesmo voltando e tudo começa a ficar muito real. Não posso mentir a você, não quero, sei lá, que você entre numa errada comigo. Que você se machuque ou, como diziam minhas tias quando eu era guri, “tenha uma desilusão”. Mas a verdade é que ainda não quero me prender a nada, a nenhum lugar, a ninguém - a não ser que isso pinte com muita força, o que é impossível de acontecer por carta. Além disso, sou terrivelmente instável e entender as minhas reações é coisa que às vezes nem eu mesmo consigo.
Não posso mentir a você, não quero. Mas por favor não fantasie, menina, não seja demasiado adolescente. Como eu te escrevi várias vezes, é no nosso encontro, cara a cara, olho a olho, que as coisas vão se definir. Veja se você consegue separar o sonho da realidade. Anel, por exemplo, é um sonho. E um sonho que trago comigo há muito tempo e que comuniquei a você - e que não é hora ainda de ser realidade, porque não tenho absolutamente nada além da minha cuca - você me entende? Minha profissão é essa coisa absurda de escritor, que não dá dinheiro nenhum, estou sempre recomeçando e recomeçando e recomeçando. É muito duro. Ontem por exemplo só tomei um café - hoje vai ser o mesmo. Eu agüento - mas um bebê, Vera?
Menina, menina, tenho uma ternura enorme por você - e para mim é muito difícil isolar essa ternura da razão, quando te escrevo. Como fiz agora. Talvez tenha te parecido duro ou demasiado frio. Mas acho, honestamente, que você não deve se arriscar a ter uma tremenda decepção, depois de um ano inteiro de sonhos. Nós vamos nos ver, nós vamos conversar, sair juntos, provavelmente nos tocar - e de repente tudo pode realmente ser. Ou não. Mas de jeito nenhum quero, sei lá, ser irresponsável ou não medir as conseqüências dum negócio que pode ser muito sério.
(Não agüento de fome e de vontade de fumar. Volto já).
Voltei. São 8.30, comi um sanduíche no grego, comprei cigarros no hindu e voltei cantando em espanhol (Perfídia). Londres é assim.
Sabe que eu tô muito velho? Outro dia me deram 30 anos. A minha cara tá cheia de marca, ruguinhas. O meu olho caiu ainda mais e tem uma expressão de cansaço absoluto. O cabelo, que era minha maior “arma”, caiu muito, tem entradas incríveis e nenhum brilho. Rio pouco e quase não falo. Pense também nisso, tire a sua cabecinha da lua: você não vai encontrar nenhum modelo de beleza na sua frente. Europa marcou fundo, e aquele menino cheio de vida e acreditando em tudo que você conheceu em 71 ficou perdido entre pilhas de pratos e panelas sujas num restaurante sueco, no verão passado. Já não sou o mesmo, como você também não é. Endureci um pouco, desacreditei muito das coisas, sobretudo das pessoas e suas boas intenções. Dar um rolé em cima disso não vai ser nada fácil. E as marcas ficarão - tatuagens.
Quero muito te amar e me encontrar contigo. Mas não sei se conseguiremos - e tenho medo.
Atravessando duas semanas muito duras. A escola onde trabalho como modelo entrou em férias - e só reabre segunda, dia 22. Resultado: fiquei sem emprego. Descolei umas limpezas na casa dum ator, mas dá pouquíssimo e no fim de semana gastei tudo num passeio péssimo à ilha de Wight. Provavelmente irei lá pelo dia 15 de maio. Quero ir com o Sol ainda em Touro, tenho bode de Gêmeos. Provavelmente também não poderei ficar no Rio. Não consigo economizar nada. Além disso, vou chegar muito horroroso, branco deste inverno que não acaba (oito meses) e exausto. Meu plano é passar um mês no Sul, tratar do meu livro e mil coisas, também descolar dinheiro para poder ir ao Rio + tarde. Hilda - aquela minha amiga escritora de Campinas mandou dizer que talvez possa me dar uma for$a no fim de maio. Então talvez a gente possa se ver em junho (julho, nas tuas férias - queria muito ir à Bahia contigo).
Tenho escrito. Voltou o demônio (ou o anjo, não sei). Da peça, já tenho uma meia-hora escrita e o resto na cuca. Estou gostando, os diálogos estão ficando bons. Por enquanto o título é Vamos fazer uma festa enquanto o dia não chega?. É muito amarga, eu acho, talvez demais. Sinto uma falta medonha da minha máquina de escrever - acho que é o que mais amo no mundo.
Intento uma macrobiótica meio fajuta - cortei carne, açúcar, gorduras. Tenho comido quase só arroz integral, vegetais e frutas. Queijo e pão. Não encontro ban-chá em Londres. Só chá de Mu, que é meio enjoativo. Mas tenho um vício realmente péssimo: latinhas de coca-cola. Não consigo resistir.
Não sei se te falei de Serginho. Creio que sim. Ele foi preso de novo, está incomunicável, vai ficar 2 meses, depois será deportado para o Brasil. Um dia te falarei muito sobre ele. Procure ouvir Angie com Mick Jagger. As pessoas estão indo embora. Amsterdam, Paris, Suécia, Escócia. Augusto, Orlando, Lize, Zé, Rogério, Paulo Afonso, Débora. É triste, porque chega ao fim mais um ciclo que não se repetirá - mas é bom porque todos estão tão machucados, tao...
(9h. Esquento panelões de água — a água quente pifou — pra tomar banho e ir ao dentista às 11h).
Do outro lado da rua passa um garoto gordo com casaco verde. Acho que os garotos gordos devem sofrer muito.
Leio Alice's adventures in Wonderland - também conhecido como Alice no País das Maravilhas - em inglês - uma batalha vencida pouco a pouco. Homero rouba porradas de livros sobre Gertrude Stein e Alice B. Toklas - quer escrever um ensaio sobre o caso das duas. Na outra página te mando um poema que escrevi há alguns meses. O título é uma tampinha de caixa de sal - reproduzo o desenho porque, no momento, não tenho nenhuma das referidas caixas à mão.
Te beijo
Te espero em carta.
.....................................................................................................................Caio
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