Contos, crônicas e cartas

Blog ativado em: 16/maio/2010

sexta-feira, 30 de julho de 2010

* Frida Kahlo, o martírio da beleza

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Há anos Frida Kahlo me persegue. Tentei fugir, não consegui. Desde os anos 70, redescoberta pelas feministas, quando fotos dela começaram a aparecer nas revistas, eu tinha medo. E me recusava a ler. Bastava aquele rosto duro, de pedra, metade asteca, metade etrusco, buço e sobrancelhas cerrados, olhar direto, arrogante. Sem saber quase nada, eu intuía qualquer coisa terrível na história de Frida. Descobri depois: era ainda mais terrível do que poderia imaginar.

Veio então um filme mexicano extraordinário, numa exibição especial qualquer, com certa atriz magnífica (não lembro o título, talvez Frida, algum cinéfilo me diga por favor). Saí do cinema aos prantos. E devorei, numa noite, uma biografia escrita por Rauda Jamis. Aterrorizado, fascinado. Ó Deus, por que a beleza pode ser tão medonha? Ou ao contrário, por que o medonho pode ser tão belo? Vieram então os quadros. As cores, as corças feridas com cabeça humana, corpos esquartejados, colunas vertebrais metálicas, as pernas amputadas, pregos na carne: a Dor. Maiúscula, maior que tudo. E sempre o rosto. Em todos os quadros, o rosto indescritível.

Em Paris, há três anos, caminhando por uma mostra de arte mexicana no Beaubourg, de repente tive uma espécie de vertigem. Que, estranho, não vinha de dentro de mim, mas emanava de um ponto na parede. Olhei: era uma explosão de cores primárias, brilhantes, exageradas. Era uma das dezenas de auto-retratos de Frida Kahlo. Amarelo, vermelho, verde, lilás. Tive febre, depois. E comprei um livro de reproduções, as livrarias de SaintGermain-des-Prés estavam cheias deles. E as de Amsterdam, as de Berlim, as de Milão e Londres e Oslo também, fui descobrindo. A imagem martirizada de Frida Kahlo estava por toda a parte, como um Cristo-mulher contemporâneo. Um Cristo artista, bissexual, bêbado, drogado, adúltero, arrancando sua transcendência do próprio sangue, com as próprias unhas. E eu cruzava a Europa de ponta a ponta ouvindo Adriana Calcanhoto cantar no walkman: “Eu ando pelo mundo/ Prestando atenção em cores/ Cores que eu não alcanço/ Cores de Almodóvar, cores de Frida Kahlo, cores”.

Agora leio O diário de Frida Kahlo, um livro lindíssimo da Livraria José Olympio Editora, publicado no mundo todo este ano a partir de cadernos deixados no Banco do México. Os diários, escritos com tinta colorida, entremeados de desenhos perturbadores, com símbolos esotéricos hindus, celtas, pré-colombianos, cobrem os anos de 1944- 1934. Sempre deitada, coberta de panos e mantas de seda índios, cheia de jóias extravagantes, ela olhava-se ao espelho e pintava e escrevia sem parar o que conhecia melhor: a própria dor. A coluna bífida, poliomielite, uma perna esmagada e amputada, várias fraturas na coluna, 33 cirurgias durante uma vida de apenas 47 anos.

Sobre aquele rosto, diz Carlos Fuentes, que a viu apenas uma vez no Palácio das Belas-Artes da Cidade do México: “O corpo é o templo da alma. O rosto é o templo do corpo. E quando o corpo decai, a alma não tem outro santuário a não ser o rosto”. E Frida, que era poeta, diz assim, cito em espanhol, que é mais belo: “Desde que me escribiste, en aquel día tán claro y lejano, he querido explicarte que no puedo irme de los días, ni regresar a tiempo ai otro tiempo. No te he olvidado — las noches son largas y dificiles”. E diz mais, escute, é importante: “Lo que más importa es la no-ilusión. La maílana nace”.

Passo noites longas, difíceis, o sono raro, entre fragmentos febris de suores e pesadelos, assombrado por Frida Kahlo. Choro muito. Não consigo terminar o livro, não consigo parar, não consigo ir em frente. Seguro sua mão imaginária no escuro do quarto e sei que seja qual for a dimensão da minha própria dor, não será jamais maior que a dela. Por isso mesmo, eu o suportarei.

Como ela, em sua homenagem, Frida.


O Estado de S. Paulo, 29/10/1995


(Pequenas epifanias)

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A quem interessar.

Biografia de Frida Kahlo: http://pt.wikipedia.org/wiki/Frida_Kahlo



Frases de Frida Kahlo:


''Pinto a mim mesmo porque sou sozinha e porque sou o assunto que conheço melhor.''



"Espero a partida com alegria... e espero nunca mais voltar..."



"Se existe vida após a morte, não me esperem, por que não vou."



''Para que preciso de pés quando tenho asas para voar?''



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* S.O.S. para um jardim no inverno

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Socorro, o inverno está assassinando o jardim! O susto é tanto que até ponto de exclamação usei. E uma coisa em mim diz olha, pedir socorro neste caso é inútil, ninguém pode ajudar. E outra coisa acrescenta como assim assassinando? Dito desse jeito o inverno não parece algo fatal, natural, inevitável, mas uma espécie de desastre ecológico. Ora, considere, inverno — ou verão ou primavera ou chuva ou ventania ou lua cheia — ou qualquer outro desses, digamos, fenômenos naturais — acontece a tudo e todos, sejam jardins, pássaros, homens, árvores, pedras e o imenso etc. que abrange essa vastidão que sintetizamos singelos como “o mundo”. Ou pelo menos o mundo das coisas visíveis, já que no das invisíveis a gente não sabe mesmo o que se passa. Ou sabe? Alguns dizem que sim. Será?

Mas estou me dispersando. O que quero dizer, com várias coisas dizendo outras coisas dentro de mim, com toda imprecisão e ambigüidade, e desta forma exata, não só com exclamação mas também com exagero da caixa alta, sinto muito, o que quero mesmo dizer é exatamente isto: SOCORRO, O INVERNO ESTÁ ASSASSINANDO O JARDIM!

É verdade, tenho provas. As rosas, por exemplo. Rosa, eu não sabia, é flor que não pára de florescer no inverno. As minhas pelo menos não, embora me lembre das “rosas de abril”, de Vinícius. Mas durante o inverno há botões nas rosas que não chegam a abrir, morrem antes, queimados pelo frio. Outros abrem e morrem no meio da abertura, em pleno ato de desabrochar, compreendem? É tristíssimo. E não é só isso. Há pragas inacreditáveis, assim na linha vírus Ebola, vindas não se sabe de onde, rondando para desabar sobre as plantas aterrorizadas. Caules que se tornam ocos, folhas que começam a amarelar e secar, manchas, e até uns grãozinhos duros que acabam se transformando em medonhas lagartas brancas minúsculas — como aconteceu a um jasmineiro tão jovem que não alcança sequer um metro de altura, e portanto este é seu primeiro inverno, portanto também não tem experiência desse tipo de guerra nem sabe como defender-se. Pois plantas mais antigas, suponho, são sabidonas, mesmo que saibam apenas o básico: que inverno passa. Acontece que meu jardim é quase todo de plantas muito jovens, marinheiras de primeira viagem. Inocentes, despreparadas.

E as formigas? Quanto mais rigoroso o inverno, mais usurárias ficam, naquela ansiedade de guardar, guardar, guardar. Em maio pensei que houvessem encerrado as atividades e, em suas casinhas abarrotadas, se preparassem para seu esporte de inverno preferido: sacanear cigarras. Nada: numa manhã de junho saíram todas à superfície para devorar uma begônia já grandinha, uma rosa-de-são-jorge (não sei como, é dura de roer), várias folhagens e um brinco-de-princesa já com quase dois metros, que estava sendo tramado até a sacada. Esqueci toda ideologia ecológica e fui de Baygon heavy metal pra cima delas. Santo remédio.

Desastres outros, poda-se o estrago com a tesoura, coloca- se vitamina na terra, água de alho e outros truques que, jardineiro de primeira viagem, também estou aprendendo neste Selvagem Embate Contra As Forças do Mal, assim mesmo em maiúsculas. Mas a luta continua. Fui obrigado a trazer para dentro de casa uma fragilíssima árvore japonesa da felicidade, no momento reduzida a uma minúscula folhinha verde. Cuido, olho, coloco no Sol, rezo. Há situações em que o máximo que se pode fazer é rezar. E esperar, claro, entre suspiros. Mais de meio julho e um agosto inteiro a atravessar. Conseguiremos resistir?

Até setembro. Sim, até setembro. Ah, até setembro.


O Estado de S. Paulo, 9/7/99




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domingo, 25 de julho de 2010

* Caixinha de música

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................................À memória de Rachel Rosemberg


Como e estivesse com a cabeça inteira dentro d’água e alguém começasse a tocar realejo na beira do rio. Pequenas bolhas de som explodiam sem choque contra seus ouvidos, nota após nota, até formar-se também por dentro aquela melodia tão remota e lenta que parecia vir não mais da margem, mas do fundo. Onde haveria quem sabe pedras verdes de limo, peixes coloridos, conchas, estranhos vegetais entrelaçados. Movimentando cada membro ao som de cada nota, ela tentou mergulhar em direção à areia clara do fundo. Sabia a origem de cada gesto: brotava de um centro como que desperto pela nota musical e assim, musicado, o movimento irradiava-se através dos músculos, espalhando-se sem pressa na superfície da pele até atingir as pontas dos dedos que agora movia, abrindo e afastando leve a água para mergulhar. Mas em vez de afundar, peixe, de repente foi içada para cima, para fora, para uma penumbra cheia de contornos onde divisava vagamente qualquer coisa como as costas de um homem grande sentado.

À beira da cama, à tona, no escuro, ele girava lentamente a manivela da caixinha de música.

Ela não disse nada, observando-o sem pensamentos girar muitas vezes a manivela, às vezes acelerando, outras diminuindo, fazendo a meio-dia correr mais rápida, notas subitamente amontoadas, ou esgarçar-se feito nuvem soprada pelo vento. Fiapos coloridos varavam em todas as direções a penumbra cada vez mais nítida do quarto. Perdidos pelos cantos, brilhavam fracos antes de apagar tão lentos e leves que, se quisesse, ela poderia fechar os olhos para afundar novamente. Talvez sereias, liquens, corais, grutas de nácar. Com esforço, esfregou as pálpebras. E suavemente, só depois que ele tinha repetido e repetido a música da caixinha, como para não quebrar um encanto difícil, foi que ela apoiou o busto contra a guarda da cama e perguntou em voz baixa o que tinha acontecido.

Era um homem grande, um homem quieto e sem camisa sentado à beira da cama. Costas curvas, cabeça baixa. Nas mãos, uma caixa tão pequena que ela não conseguia ver. Parecia para sempre, pensou, aquele homem de repente desconhecido, parado como um quadro, um enorme manequim, uma estátua de sal ou gesso, tão brancas eram suas largas costas quase cintilando no escuro do quarto. Ele parou de tocar. Menos que pelo movimento do braço, ela soube disso através do silêncio aumentando entre duas notas. Vermelhos, os números do relógio digital brilhavam a seu lado, tão próximos que bastaria virar a cabeça para saber as horas. Não queria saber, não se moveu. Quase estendeu a mão para tocá-lo, mas conteve-se a tempo, recolhendo os dedos no ar. Não havia hora, repetiu para dentro sem entender, não havia tempo, não havia barulho, não havia gesto. Como se estivesse do lado de fora e espiasse pela janela do próprio quarto, viu um homem sentado à beira da cama e uma mulher deitada, cabeça ereta, tensa, imóvel, para sempre à espera de algo que não acontecia.

- Foi um pesadelo? - perguntou então, mas súbita demais, percebeu, a voz áspera, rouca de sono. E como para consertar estendeu mecanicamente a mão para a mesinha-de-cabeceira, apanhou o maço de cigarros.

- Quer fumar? - ofereceu, mas sabia que era como se dissesse qualquer coisa feito “não se dilacere sem necessidade, meu bem, é madrugada alta, fuma e relaxa, estou aqui, pode falar”, estabelecendo as regras de um jogo onde não haveria vencedor nem vencido, apenas um gentil fracasso final compactuado e compartilhado amável por ambas as partes. Absolutamente secretos no meio do quarto, no meio do edifício, no meio da cidade, no meio do país, no meio do continente, do hemisfério, do planeta. No centro da imensa noite do universo. Eternamente, ela arrepiou-se.

Ele continuava sem dizer nada. Quase com raiva, ela acendeu o cigarro com um dique seco do isqueiro de plástico que jogou, junto com o maço, ao lado dele. E sabia que ao tragar dizia ainda qualquer coisa como está bem, se você não quer ajuda fique aí sozinho, meu bem, vou fumar o meu cigarrinho e esperar que ou você ou eu cansemos, e se você cansar primeiro, você fala, e eu cansar primeiro, durmo outra vez e amanhã acordamos e tomamos café como todas as manhãs, meu bem, e não se fala mais nisso, está o.k. assim?”. Apanhou o cinzeiro sobre o rádio e bateu com força a cinza. Agora, além dos números vermelhos, havia a ponta também vermelha do cigarro brilhando no escuro. Ainda que nada dissesse, era sempre como se dissesse alguma coisa. E parecia tão tarde que ruído algum de automóvel perfurava o silêncio. Por favor, quase pediu, por favor, recomece a tocar. Calada, começou a girar o cigarro no escuro até que a brasa viva no final do círculo vermelho tornasse a encontrar o início. Quando parou, percebeu: ele mudara de posição e olhava fixo para ela.

- A árvore - ele disse.

- Hein?

- Uma árvore, eu vi uma árvore.

-Você sonhou - ela se debruçou um pouco, como para alcançá-lo ou, de alguma forma, demonstrar com o corpo que estava atenta. Mas isso parecia não ter importância para ele. Falava sem vê-la, olhando através dela para qualquer coisa além da guarda da cama, da parede, do espaço vazio de um décimo segundo ou terceiro andar.

- Que importa? - Ele colocou a caixinha de música ao lado do maço de cigarros e do isqueiro. A manivela roçou o plástico soltando uma nota brusca que ficou ressoando no ar. - Que importa se sonhei, se vi, se foi hoje ou amanhã? Se nem sequer vi, só imaginei, que importa? Acordei pensando nessa árvore.

Falava devagar, sem irritação. Mas levantou a mão decidido quando ela avançou mais o corpo, como a interrompê-la antes mesmo que ela falasse. Ainda assim, ela perguntou, esmagando o cigarro:

- Que árvore era essa?

- Não era uma, eram duas. Espera, eu conto. Você quer ouvir?

Apressada, ela fez que sim com a cabeça. Sem ver direito o rosto dele, percebeu que sorria talvez irônico. Ou amargo, ou triste, ou apenas distante, compreendeu melhor, encolhendo-se contra a guarda da cama. E aquilo de repente pareceu talvez respeito, submissão ou interesse, porque ele começou a falar:

- No começo, achei que era uma árvore só. Eu a vi de longe, eu vinha caminhando e lá estava ela, enorme, toda florida, assim com pencas de flores de todas as cores, mas acho que principalmente roxas e amarelas, despencando até o chão. Não parecia de verdade, parecia uma coisa desenhada, assim meio de quadro, de ilustração de história infantil, filme de Walt Disney. Sabe Branca de Neve? - Ela sorriu também, cruzando os braços sobre os seios tranqüilizada. Ele não percebeu. - Uma árvore assim, de fantasia. A mais bonita que eu já tinha visto em toda a minha vida. Aí eu parei e fiquei olhando. Tinha uma coisa forte ali me chamando e eu não conseguia ir em frente, eu devo ter hesitado muito tempo antes de chegar cada vez mais perto, e de repente eu estava dentro dela. Não, espera, não foi assim. Entre os ramos cobertos de flores havia uma espécie de vão, uma fresta, uma porta, e eu fui entrando por ela até ficar dentro daquela coisa colorida. Era escuro lá dentro. Era cheio de galhos trançados e torturados, e muito escuro, e muito úmido, parecia assim ter feito uma grande dor ali cravada naquele centro cheio de folhas apodrecidas e flores murchas no chão. Pelo vão, pela fresta, pela porta eu conseguia ver o sol lá fora. Mas aquele lugar era longe do sol. Era uma coisa, uma coisa assim desesperada e medonha, você me entende? Então pensei em sair lá de dentro imediatamente, sem olhar para trás, mas ao mesmo tempo que queria ir embora, queria também ficar para sempre lá, e se me descuidasse, se alguma coisa mínima em mim perdesse o controle eu me encolheria ali naquele chão frio, olhando os galhos tão emaranhados que não passava nunca um fio daquela luz do sol lá de fora. Eu fui embora, eu não queria olhar para trás, mas sem querer olhei e lá estava ela de novo como eu a tinha visto da primeira vez.

Uma árvore encantada, dessas que você pode fazer pedidos e talvez entrar num estado especial embaixo dela e ver, como se chamam, como é mesmo? os devas, isso, os devas, as ninfas, os faunos. Vista de fora, de onde eu estava, era uma árvore assim, com um lindo deva que eu quase via, roxo e amarelo como as flores, meio que dançando, quem sabe tocando flauta em volta dela. Então lembrei do escuro e achei que entendia e sem querer formulei com dificuldade uma coisa mais ou menos assim: é daquele emaranhado cheio de dor e angústia fria e solidão escura que ela arranca essa beleza que joga para fora. - Ele parecia muito cansado quando parou de falar e perguntou: - Você entende?

- Foi lá? - ela perguntou bruta. Ele não respondeu. Ela estendeu a mão para o maço de cigarros, acendeu outro que tragou quase com fúria. Passou-o para a mão esquerda e estendeu a direita para ele, cravando as unhas em seu braço. - Foi lá? - repetiu. - Eu preciso saber. Me diga, foi lá, naquele lugar? Meu Deus, você ainda não esqueceu aquele maldito lugar?

Como se não tivesse escutado, ele tocou de manso as unhas cravadas em seu braço com a mão também grande e quieta.

- Você entende?

Ela relaxou a pressão.

- Entendo, claro que entendo. - Recolheu a mão, baixou a voz. - É uma história bonita. E tão... tão simbólica, não é? - Suspirou, exausta. - É assim que você se sente? Eu entendo, claro que eu entendo muito bem, melhor do que você possa imaginar. Muito melhor, meu bem. - Passou devagar os dedos sobre os pêlos crespos do peito dele. Se houvesse mais luz, agora poderia ver os pêlos se adensando grisalhos em direção ao umbigo, e quem sabe até mesmo sentir então o que sentia sempre: aquela espécie de piedade comovida, semelhante a algo que tinham dito, certa vez, chamar-se carinho, ternura, amor ou qualquer outra coisa dessas. Mas no escuro, apenas sentindo os pêlos macios e frágeis cedendo sob a pressão das pontas de seus dedos, assim, agora: não sentia nada. Uma secura como a do cigarro que tragou novamente, queimando com raiva a garganta. Tossiu.

- Mas não acabou - ele disse.

- O quê?

- Não acabou, a história ainda não acabou.

Ela percebeu que ele ria. Mas já não havia tristeza nem ironia no riso. Qualquer coisa mais densa, localizou. E retirou a mão do peito dele ao descobrir. Era um riso silencioso e mau, um riso de canto de boca, dentes cerrados que não se mostram. Ele estava próximo agora, inteiramente ali, entre o corpo dela e a porta do quarto dando para corredores e salas subitamente tão desertos que ninguém os ouviria se gritassem. Mas não gritariam, ela acalmou-se, que era tanto tempo, tanta coisa vivida juntos, não, não gritariam. Ele continuou a falar:

- Voltei lá no dia seguinte. Eu estava frio, eu não sentia coisa alguma, eu não tinha mais aquele horror de estar dentro da árvore nem aquele encantamento de estar fora dela, entende? Então fiquei andando em volta dela e olhando bem, até perceber que eram duas árvores. Sabe uma dessas árvores que dá na beira dos rios? Essa caída, de galhos até o chão, uma árvore grande que parece sempre cansada e triste.

- Um chorão - ela falou. - Um salgueiro. - E soltou os ombros, quase leve.

- Isso. Um salgueiro, um chorão. A outra, aquela cheia de flores, era uma primavera. Eu lembrei então de uns versos que você gostava de dizer, faz muito tempo. Como eram mesmo aqueles versos que falavam em primaveras, em morrer, em nascer de novo? Como eram, você lembra? - ele perguntou subitamente ansioso e meio infantil, puxando-a pelo pé como fazia às vezes nas manhãs de domingo, quando ela demorava a acordar e ele insistia cantando cantigas inventadas num ritmo de caixinha de música: Venha ver o sol oh meu amor! vista sua saia, vamos para a praia! o dia está tão lindo oh meu amor! hoje é domingo lindo de sol.

Uma onda quente feito uma alegria subiu desde o pé onde ele tocava até o rosto dela, fazendo os seios arfarem um pouco ao dizer:

- Cecília Meireles, era Cecília Meireles, era um poema assim que eu dizia: “Levai-me por onde quiserdes! aprendi com as primaveras a deixar-me cortar! e a voltar sempre inteira”.

Ele apagou o cigarro. Depois bateu palmas como uma criança:

- Que bonito, que bonito. Como é mesmo? - E recitaram juntos, como uma professora séria e um pouco velha e paciente e vagamente apaixonada por um aluno rebelde: “Levai-me por onde quiserdes! aprendi com as primaveras a deixar-me cortar! e a voltar sempre inteira”.

De repente ele deu um salto sobre a cama e ficou em cima dela, rindo enquanto enfiava a língua morna nas suas orelhas. Sobre a camisola, ela podia sentir os músculos duros das coxas dele apertadas contra as suas.

- Era um caso de amor - ele disse baixinho no ouvido dela. - O salgueiro e a primavera, era um lindo caso de amor entre duas árvores.

Ela trançou as mãos nas costas dele, aquelas costas largas de homem grande, aquele cheiro bom de bicho limpo que ela conhecia fundo, há tanto tempo. E enquanto ele roçava lento uma boca móvel e molhada pelo seu pescoço, ela abriu suave as pernas, rodando a bacia como numa dança oriental, até sentir o volume do sexo dele enrijecendo aos poucos sobre seu ventre. Desceu a mão pela cintura dele, para enfiá-la sob o tecido fino do pijama, acariciando a bunda que se movia sobre ela. E lambeu aquelas orelhas grandes de homem tão profundamente e há tanto tempo seu, intensificando os movimentos até o membro dele ficar tão rígido que escapou de dentro do pijama para roçar, quente, a barriga dela.

- Vem - pediu. - Meu menino louco.

Mas ele levantou-se tão brusco que a súbita ausência de peso fez com que ela sentisse uma espécie de tontura.

- Não - ele disse. - E recuou outra vez até a ponta da cama. - A história ainda não terminou.

- Ai, Deus, a maldita árvore de novo?

- A maldita árvore - ele repetiu lentamente.

- Mas ainda? - ela tentou rir, mas ele estava distante outra vez. De repente alguma coisa tinha se transformado em outra, e percebendo a transformação só depois de falar como se nada tivesse se transformado, ela sabia apenas se comportar de acordo com um momento antigo, não com este novo, desconhecido. - Então conta - pediu, sabendo de maneira obscura que não era assim, que não era mais assim, que de alguma forma nunca mais seria assim. Cruzou os braços como quem fala com uma criança. - Mas conta rápido.

- Bem rápido, não se preocupe. No outro dia, o terceiro dia, eu voltei lá. Foi a última vez que voltei. Não foi preciso voltar mais. E dessa última vez, eu vi tudo. Eu descobri.

A claridade cinza do dia nascendo varava as frestas da persiana.

- Então? - ela perguntou. - E aí?

O homem pegou a caixinha de música e ficou com ela entre as mãos, como se fosse tocar. Com a luz mortiça da manhã iluminando o rosto dele, ela agora podia ver os olhos muito abertos, fixos em algo que ela não via, a barba por fazer, a mão parada no ar e o grisalho dos pêlos no peito. E continuava sem sentir nada, a não ser um calor fugindo entre as coxas.

Ele não dizia nada.

- O que foi que você descobriu?

Ele sorriu sem mover músculo algum do rosto. Apenas os cantos da boca ergueram-se rápidos, como se alguém apertasse um botão ou puxasse um fio oculto. Girou nas mãos a caixinha.

- Descobri que não era um caso de amor, O salgueiro estava seco, morto. A primavera tinha assassinado ele. Não era um caso de amor. Ela estrangulou, vampirizou, assassinou ele. Aquela escuridão de dentro era a fraqueza dele, o fracasso dele, a morte dele. Você está me entendendo? Eu vou falar bem devagar para que você compreenda: aquela loucura de flores e cores do lado de fora era a vitória dela. A vitória da vaidade dela às custas da vida dele. Uma vitória louca, você está ouvindo?

Como se tivesse frio, ela encolheu-se violentamente. Sem querer, olhou para o lado e viu o relógio. Eram cinco e quinze da manhã. Ele repetiu:

- Uma vitória louca, uma vitória doente. Não era amor. Aquilo era solidão e loucura, podridão e morte. Não era um caso de amor. Amor não tem nada a ver com isso. Ela era uma parasita. Ela o matou porque era uma parasita. Porque não conseguia viver sozinha. Ela o sugou como um vampiro, até a última gota, para que pudesse exibir ao mundo aquelas flores roxas e amarelas. Aquelas flores imundas. Aquelas flores nojentas. Amor não mata. Não destrói, não é assim. Aquilo era outra coisa. Aquilo é ódio.

Muito calma e um tanto casual, acendendo outro cigarro, afastando uma mecha de cabelos da testa um pouco fria, um pouco suada, mas nada de grave, a mulher ergueu levemente a sobrancelha esquerda, num gesto muito seu, um gesto cotidiano, habitual e sem novidades, que usava muito ao fazer compras, indagando preços, ao estender uma xícara de chá, ao dar ordens à empregada, ao girar o botão ligando o televisor, e perguntou absolutamente tranqüila, absolutamente controlada, absolutamente segura de si:

- Você está querendo dizer que acha que eu o destruí?

Depositando com extremo cuidado a caixinha de música, ele disse alguma coisa em voz tão baixa que ela não chegou a entender.

- Como?

Não ouviu a resposta. As duas mãos grandes e fortes do homem fecharam-se rápidas e precisas em volta da garganta dela. A mulher estendeu a perna como se chutasse algo no ar, derrubando a caixinha no chão. O dia estava quase claro quando uma nota de corda arrebentada ficou ressoando aguda no ar. Entre o som e a luz, ela ainda conseguiu ver o sorriso iluminado do homem, e se pudesse falar diria então que era exatamente: como se estivesse com a cabeça inteira dentro d’água e alguém começasse a tocar realejo na beira do rio.





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quarta-feira, 21 de julho de 2010

* Dama da noite

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Como se eu estivesse por fora do movimento da vida. A vida rolando por aí feito roda-gigante, com todo mundo dentro, e eu aqui parada, pateta, sentada no bar. Sem fazer nada, como se tivesse desaprendido a linguagem dos outros. A linguagem que eles usam para se comunicar quando rodam assim e assim por diante nessa roda gigante. Você tem um passe para a roda-gigante, uma senha, um código, sei lá. Você fala qualquer coisa tipo bá, por exemplo, então o cara deixa você entrar, sentar e rodar junto com os outros. Mas eu fico sempre do lado de fora. Aqui parada, sem saber a palavra certa, sem conseguir adivinhar. Olhando de fora, a cara cheia, louca de vontade de estar lá, rodando junto com eles nessa roda idiota — tá me entendendo, garotão?

Nada, você não entende nada. Dama da noite, todos me chamam e nem sabem que durmo o dia inteiro. Não suporto luz, também nunca tenho nada pra fazer — o quê? Umas rendas aí. É, macetes. Não dou detalhe, não adianta insistir. Mutreta, trambique, muamba. Já falei: não adianta insistir, boy. Aprendi que, se eu der detalhe, você vai sacar que tenho grana, e se eu tenho grana você vai querer foder comigo só porque eu tenho grana. E acontece que eu ainda sou babaca, pateta e ridícula o suficiente para estar procurando O Verdadeiro Amor. Pára de rir, senão te jogo já este copo na cara. Pago o copo, a bebida. Pago o estrago e até o bar, se ficar a fim de quebrar tudo. Se eu tô tesuda e você anda duro e eu precisar de cacete, compro o teu, pago o teu. Quanto custa? Me diz que eu pago. Pago bebida, comida, dormida. E pago foda também, se for preciso.

Pego, claro que eu pego. Pego sim, pego depois. É grande? Gosto de grande, bem grosso. Agora não. Agora quero falar na roda. Essa roda, você não vê, garotão? Está por aí, rodando aqui mesmo. Olha em volta, cara. Bem do teu lado. Naquela mina ali, de preto, a de cabelo arrepiadinho. Tá bom, eu sei: pelo menos dois terços do bar veste preto e tem cabelo arrepiadinho, inclusive nós. Sabe que, se há uns dez anos eu pensasse em mim agora aqui sentada com você, eu não ia acreditar? Preto absorve vibração negativa, eu pensava. O contrário de branco, branco reflete. Mas acho que essa moçada tá mais a fim mesmo é de absorver, chupar até o fundo do mal — hein? Depois, até posso. Tem problema, não. Mas não é disso que estou falando agora, meu bem.

Você não gosta? Ah, não me diga, garotinho. Mas se eu pago a bebida, eu digo o que eu quiser, entendeu? Eu digo meu-bem assim desse jeito, do jeito que eu bem entender. Digo e repito: meu-bem-meubem- meu-bem. Pego no seu queixo a hora que eu quiser também, enquanto digo e repito e redigo meu-bem-meu-bem. Queixo furadinho, hein? Já observei que homem de queixo furadinho gosta mesmo é de dar o rabo. Você já deu o seu? Pelo amor de Deus, não me venha com aquela história tipo sabe, uma noite, na casa de um pessoal em Boiçucanga, tive que dormir na mesma cama com um carinha que. Todo machinho da sua idade tem loucura por dar o rabo, meu bem. Ascendente Câncer, eu sei: cara de lua, bunda gordinha e eu aceso. Não é vergonha nenhuma: tá nos astros, boy. Ou então é veado mesmo, e tudo bem.

Levanta não, te pago outra vodca, quer? Só pra deixar eu falar mais na roda. Você é muito garoto, não entende dessas coisas. Deixa a vida te lavrar a cara, antes, então a gente. Bicho, esquisito: eu ia dizer alma, sabia? Quer que eu diga? Tá bom, se você faz tanta questão, posso dizer. Será que ainda consigo, como é que era mesmo? Assim: deixa a vida te lavrar a alma, antes, então a gente conversa. Deixa você passar dos trinta, trinta e cinco, ir chegando nos quarenta e não casar e nem ter esses monstros que eles chamam de filhos, casa própria nem porra nenhuma. Acordar no meio da tarde, de ressaca, olhar sua cara arrebentada no espelho. Sozinho em casa, sozinho na cidade, sozinho no mundo. Vai doer tanto, menino. Ai como eu queria tanto agora ter uma alma portuguesa para te aconchegar ao meu seio e te poupar essas futuras dores dilaceradas. Como queria tanto saber poder te avisar: vai pelo caminho da esquerda, boy, que pelo da direita tem lobo mau e solidão medonha.

A roda? Não sei se é você que escolhe, não. Olha bem pra mim — tenho cara de quem escolheu alguma coisa na vida? Quando dei por mim, todo mundo já tinha decorado a tal palavrinha-chave e tava a mil, seu lugarzinho seguro, rodando na roda. Menos eu, menos eu. Quem roda na roda fica contente. Quem não roda se fode. Que nem eu, você acha que eu pareço muito fodida? Um pouco eu sei que sim, mas fala a verdade: muito? Falso, eu tenho uns amigos, sim. Fodidos que nem eu. Prefiro não andar com eles, me fazem mal. Gente da minha idade, mesmo tipo de. Ia dizer problema, puro hábito: não tem problema. Você sabe, um saco. Que nem espelho: eu olho pra cara fodida deles e tá lá escrita escarrada a minha própria cara fodida também, igualzinha à cara deles. Alguns rodam na roda, mas rodam fodidamente. Não rodam que nem você. Você é tão inocente, tão idiotinha com essa camisinha Mr. Wonderful. Inocente porque nem sabe que é inocente. Nem eles, meus amigos fodidos, sabem que não são mais. Tem umas coisas que a gente vai deixando, vai deixando, vai deixando de ser e nem percebe. Quando viu, babau, já não é mais. Mocidade é isso aí, sabia? Sabe nada: você roda na roda também, quer uma prova? Todo esse pessoal de preto e cabelo arrepiadinho sorri pra você porque você é igual a eles. Se pintar uma festa, te dão um toque, mesmo sem te conhecer. Isso é rodar na roda, meu bem.

Pra mim, não. Nenhum sorriso. Cumplicidade zero. Eu não sou igual a eles, eles sabem disso. Dama da noite, eles falam, eu sei. Quando não falam coisa mais escrota, porque dama da noite é até bonito, eu acho. Aquela flor de cheiro enjoativo que só cheira de noite, sabe qual? Sabe porra: você nasceu dentro de um apartamento, vendo tevê. Não sabe nada, fora essas coisas de vídeo, performance, high-tech, punk, dark, computador, heavy-metal e o caralho. Sabia que eu até vezenquando tenho mais pena de você e desses arrepiadinhos de preto do que de mim e daqueles meus amigos fodidos? A gente teve uma hora que parecia que ia dar certo. Ia dar, ia dar, sabe quando vai dar? Pra vocês, nem isso. A gente teve a ilusão, mas vocês chegaram depois que mataram a ilusão da gente. Tava tudo morto quando você nasceu, boy, e eu já era puta velha. Então eu tenho pena. Acho que sou melhor, só porque peguei a coisa viva. Tá bom, desculpa, gatinho. Melhor, melhor não. Eu tive mais sorte, foi isso? Eu cheguei antes. E até me pergunto se não é sorte também estar do lado de fora dessa roda besta que roda sem fim, sem mim. No fundo, tenho nojo dela — você?

Você não viu nada, você nem viu o amor. Que idade você tem, vinte? Tem cara de doze. Já nasceu de camisinha em punho, morrendo de medo de pegar aids. Vírus que mata, neguinho, vírus do amor. Deu a bundinha, comeu cuzinho, pronto: paranóia total. Semana seguinte, nasce uma espinha na cara e salve-se quem puder: baixou Emílio Ribas. Caganeira, tosse seca, gânglios generalizados. Ô boy, que grande merda fizeram com a tua cabecinha, hein. Você nem beija na boca sem morrer de cagaço. Transmite pela saliva, você leu em algum lugar. Você nem passa a mão em peito molhado sem ficar de eu na mão. Transmite pelo suor, você leu em algum lugar. Supondo que você lê, claro. Conta pra tia: você lê, meu bem? Nada, você não lê nada. Você vê pela tevê, eu sei. Mas na tevê também dá, o tempo todo: amor mata amor mata amor mata. Pega até de ficar do lado, beber do mesmo copo. Já pensou se eu tivesse? Eu, que já dei pra meia cidade e ainda por cima adoro veado.

Eu sou a dama da noite que vai te contaminar com seu perfume venenoso e mortal. Eu sou a flor carnívora e noturna que vai te entontecer e te arrastar para o fim do seu jardim pestilento. Eu sou a dama maldita que, sem nenhuma piedade, vai te poluir com todos os líquidos, contaminar teu sangue com todos os vírus. Cuidado comigo: eu sou a dama que mata, boy. Já chupou buceta de mulher? Claro que não, eu sei: pode matar. Nem caralho de homem: pode matar. Já sentiu aquele cheiro molhado que as pessoas têm nas virilhas quando tiram a roupa? Está escrito na sua cara, tudo que você não viu nem fez está escrito nessa sua cara que já nasceu de máscara pregada. Você já nasceu proibido de tocar no corpo do outro. Punheta pode, eu sei, mas essa sede de outro corpo é que nos deixa loucos e vai matando a gente aos pouquinhos. Você não conhece esse gosto que é o gosto que faz com que a gente fique fora da roda que roda e roda e que se foda rodando sem parar, porque o rodar dela é o rodar de quem consegue fingir que não viu o que viu. O boy, esse mundo sujo todo pesando em cima de você, muito mais do que de mim — e eu ainda nem comecei a falar na morte...

Já viu gente morta, boy? É feio, boy. A morte é muito feia, muito suja, muito triste. Queria eu tanto ser assim delicada e poderosa, para te conceder a vida eterna. Queria ser uma dama nobre e rica para te encerrar na torre do meu castelo e poupar você desse encontro inevitável com a morte. Cara a cara com ela, você já esteve? Eu, sim, tantas vezes. Eu sou curtida, meu bem. A gente lê na sua cara que nunca. Esse furinho de veado no queixo, esse olhinho verde me olhando assim que nem eu fosse a Isabella Rossellini levando porrada e gostando e pedindo eat me eat me, escrota e deslumbrante. Essa tontura que você está sentindo não é porre, não. É vertigem do pecado, meu bem, tontura do veneno. O que que você vai contar amanhã na escola, hein? Sim, porque você ainda deve ir à escola, de lancheira e tudo. Já sei: conheci uma mina meio coroa, porra-louca demais. Cretino, cretino, pobre anjo cretino do fim de todas as coisas. Esse caralhinho gostoso aí, escondido no meio das asas, é só isso que você tem por enquanto. Um caralhinho gostoso, sem marca nenhuma. Todo rosadinho. E burro. Porque nem brochar você deve ter brochado ainda. Acorda de pau duro, uma tábua, tem tesão por tudo, até por fechadura. Quantas por dia? Muito bem, parabéns: você tá na idade. Mas anota aí pro teu futuro cair na real: essa sede, ninguém mata. Sexo é na cabeça: você não consegue nunca. Sexo é só na imaginação. Você goza com aquilo que imagina que te dá o gozo, não com uma pessoa real, entendeu? Você goza sempre com o que tá na sua cabeça, não com quem tá na cama. Sexo é mentira, sexo é loucura, sexo é sozinho, boy.

Eu, cansei. Já não estou mais na idade. Quantos? Ah, você não vai acreditar, esquece. O que importa é que você entra por um ouvido meu e sai pelo outro, sabia? Você não fica, você não marca. Eu sei que fico em você, eu sei que marco você. Marco fundo. Eu sei que, daqui a um tempo, quando você estiver rodando na roda, vai lembrar que, uma noite, sentou ao lado de uma mina louca que te disse coisas, que te falou no sexo, na solidão, na morte. Feia, tão feia a morte, boy. A pessoa fica meio verde, sabe? Da cor quase assim desse molho de espinafre frio. Mais clarinho um pouco, mas isso nem é o pior. Tem uma coisa que já não está mais ali, isso é o mais triste. Você olha, olha e olha e o corpo fica assim que nem uma cadeira. Uma mesa, um cinzeiro, um prato vazio. Uma coisa sem nada dentro. Que nem casca de amendoim jogada na areia, é assim que a gente fica quando morre, viu, boy? E você, já descobriu que um dia também vai morrer?

Dou, claro. Ficou nervosinho, quer cigarro? Mas nem fumar você fuma, o quê? Compreendo, compreendo sim, eu compreendo sempre, sou uma mulher muito compreensiva. Sou tão maravilhosamente compreensiva e tudo que, se levar você pra minha cama agora e amanhã de manhã você tiver me roubado toda a grana, não pense que vou achar você um filho da puta. Não é o máximo da compreensão? Eu vou achar que você tá na sua, um garotinho roubando uma mulher meio pirada, meio coroa, que mexeu com sua cabecinha de anjo cretino desse nojento fim de todas as coisas. Tá tudo bem, é assim que as coisas são: ca-pi-ta-lis-tas, em letras góticas de neon. Mulher pirada e meio coroa que nem eu tem mais é que ser roubada por um garotinho imbecil e tesudinho como você. Só pra deixar de ser burra caindo outra vez nessa armadilha de sexo.

Fissura, estou ficando tonta. Essa roda girando girando sem parar. Olha bem: quem roda nela? As mocinhas que querem casar, os mocinhos a fim de grana pra comprar um carro, os executivozinhos a fim de poder e dólares, os casais de saco cheio um do outro, mas segurando umas. Estar fora da roda é não segurar nenhuma, não querer nada. Feito eu: não seguro picas, não quero ninguém. Nem você. Quero não, boy. Se eu quiser, posso ter. Afinal, trata-se apenas de um cheque a menos no talão, mais barato que um par de sapatos. Mas eu quero mais é aquilo que não posso comprar. Nem é você que eu espero, já te falei. Aquele um vai entrar um dia talvez por essa mesma porta, sem avisar. Diferente dessa gente toda vestida de preto, com cabelo arrepiadinho. Se quiser eu piro, e imagino ele de capa de gabardine, chapéu molhado, barba de dois dias, cigarro no canto da boca, bem noir. Mas isso é filme, ele não. Ele é de um jeito que ainda não sei,- porque nem vi. Vai olhar direto para mim. Ele vai sentar na minha mesa, me olhar no olho, pegar na minha mão, encostar seu joelho quente na minha coxa fria e dizer: vem comigo. E por ele que eu venho aqui, boy, quase toda noite. Não por você, por outros como você. Pra ele, me guardo. Ria de mim, mas estou aqui parada, bêbada, pateta e ridícula, só porque no meio desse lixo todo procuro O Verdadeiro Amor. Cuidado comigo: um dia encontro.
Só por ele, por esse que ainda não veio, te deixo essa grana agora, precisa troco não, pego a minha bolsa e dou o fora já. Está quase amanhecendo, boy. As damas da noite recolhem seu perfume com a luz do dia. Na sombra, sozinhas, envenenam a si próprias com loucas fantasias. Divida essa sua juventude estúpida com a gatinha ali do lado, meu bem. Eu vou embora sozinha. Eu tenho um sonho, eu tenho um destino, e se bater o carro e arrebentar a cara toda saindo daqui, continua tudo certo. Fora da roda, montada na minha loucura. Parada pateta ridícula porra-louca solitária venenosa. Pós-tudo, sabe como? Darkérrima, modernésima, puro simulacro. Dá minha jaqueta, boy, que faz um puta frio lá fora e quando chega essa hora da noite eu me desencanto. Viro outra vez aquilo que sou todo dia, fechada sozinha perdida no meu quarto, longe da roda e de tudo: uma criança assustada.




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domingo, 18 de julho de 2010

* Eu, tu, ele

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Para Raquel Salgado


Tateio, tateias, tateia. Ou tateamos, eu e tu, enquanto ele se movimenta sem dificuldade entre as coisas? Sei pouco de ti, apenas suspeito da tua existência desde quando descobri que nem eu nem ele éramos os donos de certas palavras. Como se tivesse percebido um espaço em branco entre ele e eu e assim - por exclusão, por intuição, por invenção - te adivinhasse dono desse espaço entre a luz dele e o escuro de mim. Tateias, também? De ti, quase não sei. Mas equilibras o que entre ele e eu é pura sombra.

Estou me afastando, estou indo embora e preciso que me entendas antes que eu vá, crucificado na parte externa do vagão de um trem em alta velocidade. Tento devagar, mais claro: ele não se afasta. Dia após dia, eu noto, torna-se mais simpático, mais eficiente, mais solícito - para utilizar palavras que não sei bem o que significam, mas imagino sempre alguém sorrindo muito, fazendo reverências, curvando constantemente a cabeça, como uma gueixa. Gueixa, ele, a grande puta, com seu silêncio de passinhos miúdos e pés amarrados. Preciso tentar certa ordem no que digo, e dizer de novo, vê se me entendes: ele não se afasta, mas é dentro dele que eu me afasto. Dentro dele, eu espio o de fora de nós. E não me atrevo.

O que vejo nos outros, com seus grandes poros abertos, são caras demasiado vivas. As caras de fora se debruçam sobre ele e eu tenho medo, eu nunca poderia olhar de frente para todos aqueles olhos boiando na superfície branco-gelatinosa, raiada de veiazinhas vermelhas, e eu sinto nojo. Não dos olhos, mas do interior das caras que transparece nas veiazinhas. Também não são as bocas, mas os gosmosos vermelhuscos de dentro, quando se abrem demasiado. Os inúmeros pontinhos pretos dos narizes, às vezes subindo para a testa, entre as sobrancelhas, o interior rosado dos narizes, as goelas abertas com suas umidades móveis ao fundo, cheias de pequenos espasmos, miúdas convulsões. Quando as grandes caras vivas se debruçam, sinto que transpareço nas veiazinhas dos olhos deles, e tenho medo que apenas um piscar me lance para fora, entre as coisas pontudas. E quando ele abre sua boca movediça para escarrar palavras, gotas de saliva e mau hálito, tenho medo de ele ser essa palavra, essa gota, esse hálito. O mesmo de quando esfrega as palmas das mãos e solta no ar os feixes de energia, como se fosse uma vibração, não um ser.

Sempre posso parar, olhar além da janela. Mas do interior do trem, nunca é fixa a paisagem. Os pés de ipê coloridos misturam-se às paredes de concreto e as paredes de concreto às ruazinhas de casas desbotadas e as ruazinhas de casas desbotadas às caras das lavadeiras na beira do rio, e desta distância essas caras não são móveis nem vivas, mas sem feições, esculpidas em barro sob as trouxas brancas de roupa suja, e outra vez o roxo e o amarelo dos ipês e o marrom da terra e o bordô das buganvílias e o verde de uma farda militar atravessando os trilhos. Há um excesso de cores e de formas pelo mundo. E tudo vibra pulsátil, fremindo.

Daquela última tarde de luz, o que me ficou na memória foi o visgo frio do suor nas palmas das mãos, os inúmeros pontos luminosos vibrantes dos automóveis, minhas frontes estalando com o barulho. Os automóveis eram faíscas coloridas metálicas voando sobre o cimento. Eu apertava minha tontura com as palmas molhadas das mãos, sem saber se ia, se voltava ou permanecia parado quieto entre aqueles pontos alucinados de luz girando em volta de mim. Devo ter começado a gritar, porque ele cerrou a boca com força, não me deixando escapar por sua garganta fechada.

Mas era a ti, a ele ou a mim que o homem visitava às vezes? De quem seria a língua sem nojo que explorava o mais fundo de todos os buracos do corpo dele? Da janela eu observava as mãos abrindo apressadas o fecho das calças, os dedos hábeis afastando panos, as narinas sugando o cheiro secreto das virilhas, O grande corpo vivo e móvel do homem, atrás das grades eu queria minhas aquelas mãos que o tocavam e também meus aqueles dedos e minhas ainda aquelas narinas e aquela língua lambendo o membro rijo dele até deixá-lo empinado o suficiente para, com muito cuidado, entrar rasgando de prazer e dor. Eras tu, era eu ou era ele quem torcia lentamente o corpo até desabar de costas na cama, e contornando com as coxas abertas o tronco e a bunda do homem pudesse assim senti-lo dentro de mim, de ti ou dele, como a fêmea deve sentir seu macho, cara a cara, jamais como um homem recebe a outro homem, o rosto contra a nuca, nesse amor feito de esperma e pêlos, de suor e merda? Atrás da janela dele, eu olhava sem me permitir. Mas nosso orgasmo era o mesmo, e éramos então um só os três, cavalgados por esse homem que esgotávamos com a sede das nossas línguas. Nesses momentos, eu conhecia a tua face tão detalhadamente quanto a dele e a minha. E não me assustavam os poros demasiado abertos, nem me enojava aquele gosmoso de dentro dos buracos.

Quanto a ti, já reparaste como o mundo parece feito de pontas e arestas? Já chamei tua atenção para a escassez de contornos mansos nas coisas? Tudo é duro e fere. Observo, observas como ele se move sem choques por entre os gumes. Te parece dócil, assim sinuoso, evitando toques que possam machucá-lo? Pois a mim parece falso, conheço bem suas tramas e sei de todas as vezes que concedeu para que o de fora não o ferisse. Olha, ouve e repara: essas sinuosidades são de cobra, não de ave.

Só às vezes julgo compreender. Então tenho vontade de abrir todas as janelas da casa para que o sol possa entrar. É isso que me ocorre pelas manhãs, sempre à mesma hora, depois de ouvir os ruídos que ele faz antes de sair. Fico atento à água escorrendo da torneira, ao rascar da escova contra os dentes, à água da privada levando para os esgotos os detritos recusados pelos intestinos, à água limpando os resíduos de sono no canto dos olhos, à água fria do chuveiro despertando os músculos, à água aquecida para o café, fico atento a tudo. E água, água, água e água, eu repito todas as manhãs, e mesmo que continue o dia inteiro entre lençóis, a mão inventando prazeres escondidos entre as pernas, há sempre uma parte de mim que o acompanha pelas ruas, no seu trajeto sujo entre as faíscas metálicas dos automóveis, distribuindo os primeiros sorrisos falsos do dia, e pelo dia adentro afora, cumprindo sem hesitações o seu bem traçado roteiro. Sabe tudo o que quer, ele, o grande porco. E sabe exatamente como consegui-lo. Pelo dia afora, adentro, essa parte de mim que vai com ele tenta extravasar-se pelos seus olhos, pela sua boca, para alertar as grandes caras móveis que o observam com simpatia. A cada tentativa, ele me pressente e me rechaça, ele me empurra para o fundo de si para que eu não o desmascare. E me rouba a voz, e me leva o gesto, fazendo com que me cale e me imobilize impotente entre as pontas duras das quais ele se desvia, porco bailarino capaz de todas as baixezas pelo solo principal. É sem testemunhas que eu o desmascaro todas as manhãs, enquanto escuto escorrer a água com que supõe lavar toda a sua sujeira. Mas te investigo, te busco, te suspeito cúmplice de mim, não dele, porque a tua ajuda é a única que posso esperar, então insisto sempre se me entendes, e volto a perguntar então, me entendes? assim, me entendes, tu? agora, me entendes, ou nunca?

Era agradável quando a moça vinha com suas tabelas, seus gráficos e compassos para falar do movimento dos astros sobre as nossas cabeças, sábia e distraída, desenhando pirâmides, triângulos, esferas e losangos nos papéis quadriculados. Foi numa das primeiras vezes que ele tentou afastá-la, rindo grosso, como as pessoas costumam rir dessas coisas, preferindo sempre os porcos às aves. Foste tu quem me ajudou daquela vez, a fechar violento a boca dele até seus dentes se cerrarem a ponto de quebrar? Pois não era apenas meu aquele esforço, eu soube, e essa quem sabe tenha sido a primeira vez que te descobri existindo paralelo a mim e a ele. Ou não importam cronologias, se coexistias mesmo anterior à minha consciência de ti. Quanto à moça, continuava a vir, dizia sempre que quando a Lua transitasse por Aquário. Mas eu nunca soube de constelações: limitava-me a recebê-la, e parecia uma menina cheia de fé em tudo aquilo que suspeitava real, embora invisível.

Meus dias são sempre como uma véspera de partida. Movimento-me entre as pontas como quem sabe que daqui a pouco já não vai estar presente. As malas estão prontas, as despedidas foram feitas. Caminhando de um lado para outro na plataforma da estação, só me resta olhar as coisas lerdo e torvo, sem nenhuma emoção, nenhuma vontade de ficar. As janelas abrem para fora, os bancos parecem-se aos bancos e os vasos foram feitos para se colocar flores em seu oco. As coisas todas se parecem a si próprias. Nada modificará o estar das coisas no mundo, e a minha partida ontem, hoje ou amanhã, não mudará coisa alguma. Cada coisa se parece exatamente com cada coisa que ela é. Assim eu próprio, me parecendo a mim mesmo, de um lado para outro, entre cigarros sem sabor, jornais sangrentos e a certeza de que o único fato que poderia deter minha partida seria a tua aceitação deste convite: não queres me ajudar a matá-lo?


Houve um dia em que o homem não veio mais. E sem saber se teria sido eu, tu ou ele quem o afastara, nesse mesmo dia escrevi qualquer coisa como uma oração que me pareceu ridícula. Mas revisitando papéis antigos agora, ela pulsa como se tivesse sido apunhalada e, percebo, como se tivesse sido escrita também para ti, para ele e para mim.
Assim:

eu não estou esperando por esse homem que não é só esse mas todos e nenhum como uma sede do que nunca bebi sem forma de águas apenas na estreiteza do aqui agora eu espero por ele desde que nasci e desde sempre soube que na hora da minha morte misturando memórias e delírios e antevisões um pouco antes a última coisa que perguntarei seria um mas onde está mas onde esteve esse tempo todo que me lanhei sem ti e para me alegrar depois quem sabe talvez enfim desista ou sorria lindo sem dentes sorria luminoso na escuridão da minha boca sorria vasto como nunca foi possível e cuspa qualquer coisa como então você esteve sempre aí uma vida de procuras sem te achar e silêncio para então morrer de morte morrida sem volta de vida gasta marcada de muitas cicatrizes de vida retalhada por muitos cortes mas nunca mortais a ponto de impedir este ridículo até na hora de minha morte amém.

Mas esta cara de mim, recém-desperta, revigorou-se aos poucos e sem suspiros, porque não há o que lamentar, e pensa crua, a cara descarada: pois não nos separamos, os três. Quando me julgo fora, estou dentro. E quando me suponho dentro, estou fora. De ti ou dele, de mim em mim, tríplice engastado, embora pareça confuso assim formulo, e me parece quase claro enquanto ruge a cidade longe e debruço este corpo de nós sobre os sete viadutos: tríplice engastado, tríplice entranhado, tríplice enlaçado. Tríplice inseparado para sempre, a morte de um é a morte de três, não quero que me ajudes a matá-lo porque mataria a ti e também a mim. E me recomponho, e te recomponho, e recomponho a ele, que é também eu e também tu.

A moça disse que a Lua passava por Escorpião, e contou: sem dentes, rasgado, fragmentos de vômito endurecido grudados nos pêlos do peito, o homem a perseguia. Antes que a tocasse, ela encontrou o animalzinho branco, de focinho rosado, e apanhando um pedaço de pau bateu, bateu e bateu até que o bicho se tornasse um mingau de sangue e ossos partidos e pêlos raros onde boiava um par de olhos abertos que não morriam. Eu contei: pelo tronco da árvore, de um lado a outro do precipício, eu atravessava. Foi quando parei, com medo do abismo. Não voltaria, nem iria em frente. Então olhei a parede do precipício e vi os cachos verdes de uvas e meu medo começou a passar porque eu não sentiria fome nem morreria pois logo viria a vindima, o tempo maduro das uvas. Oníricos, trocávamos sonhos os dois, os três, os quatro. E a fêmea emboscada no corpo da moça chamava por mim, por ti, por ele, sem se importar que fôssemos três. De nós três, ela sabia e queria. Antes de partir, ainda escreveu no papel cheio de gráficos, olhando para nós de um em um, guarda isso: o outro também se busca cego, o outro também e sempre é três.

Tempos depois - agora, para ser preciso percebo: é pelos corredores escuros do labirinto que caminhamos tateando, os três, à procura do vértice. Sei que não entendes, sei que ele também não entende. Do teu dia, quase não sei, mas sei do teu labirinto em ti, como sei do labirinto dele em mim, do meu labirinto em ti. E também não entendo.

Preciso parar. Estou cansado. Pela cabeça, essa luz que não sei se é compreensão ou loucura. É de mim, de ti ou dele que sai essa voz contando o sonho de ontem? Como se fosses tu, assim entras no teatro e te chamam dentro do sonho e te chamam para fazer o papel do sonho de alguém que não veio, e dizes que nunca viste a peça e nunca leste o texto e nada sabes de marcações intenções interiorizações e te dizem que não importa porque é só um sonho e um sonho não precisa ensaio, e já não sabes se começas a rir ou a gritar, então foges para encontrar o outro, mas o rosto da moça tem os olhos do homem e a boca da moça, os seios da moça são os seios da moça, aqueles mesmos, cujos bicos duros roçavam tua barba malfeita quando os beijavas, mas o sexo da moça é o sexo do homem, aquele mesmo que te inundava de esperma quente, e não sentes medo nem nojo, mas te afastas confuso e caminhas caminhas em busca do teatro para entrar em cena e desempenhar tão bem quanto possas o teu papel de sonho do sonho de outro, depois procuras procuras dentro do teatro, em pirâmides de estreitos corredores, e continuas procurando o palco, o vértice, a câmara real, a tua deixa, a tua marca, e antes de acordar não pensas, ou pensas, sim, eu não sei, ele não sabe, tu não sabes nem ninguém se de repente não estarás perdido nem não sabes o papel de cor, pois o palco é a procura do palco e o teu papel é não saber o papel e tudo está certo e a aparente desordem se ordena súbita e a grande ordem de todas as coisas é o caos girando desordenado assim como deve girar o caos, e assim mergulho eu e assim mergulhas tu e assim mergulha ele: a tontura de nossos seis passos equilibra-se instável e precisa sobre o fio da navalha. Mas - sei, sabes, sabemos as uvas talvez custem demais a amadurecer. E quase não temos tempo.




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sexta-feira, 16 de julho de 2010

* Aqueles dois

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(História de aparente mediocridade e repressão)


1

A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, quando não havia ainda intimidade para isso, um deles diria que a repartição era como “um deserto de almas”. O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente então, entre cervejas, trocaram ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clipes no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanhe nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra - talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum deles se perguntou.

Não chegaram a usar palavras como especial, diferente ou qualquer outra assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um a menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam.

Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os exames. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou no máximo, às sextas, um cordial bom-fim-desemana- então. Mas desde o princípio alguma coisa - fados, astros, sinas, quem saberá? - conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois.

Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) meses depois chamaria de “um deserto de almas”, para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los - ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Mas tão lentamente que eles mesmos mal perceberam.

2

Eram dois moços sozinhos. Raul viera do Norte, Saul do Sul.

Naquela cidade todos vinham do Norte, do Sul, do Centro, do Leste - e com isso quero dizer que esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais - uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade - de certa forma, também em nenhuma outra - a não ser a si próprios. Poderia dizer também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro.


Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do quarto, uma outra reprodução também de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas manchadas do assoalho. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo quase fotograficamente o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava.

Eram dois moços bonitos, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou de olhos arregalados uma secretária. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum deles tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia.

Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor e mais frágil, talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças, um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro e vice-versa. Como se houvesse, entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.

3

Cruzavam-se silenciosos, mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando um pedia fogo ou um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo, aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um jeito que traziam de longe. Do Norte, do Sul, de dentro talvez.

Até um dia em que Saul chegou atrasado e respondendo a um vago que-que-houve contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntou: que filme? Infâmia [The children’s hour”, de William Wyler. Adaptação da peça de Lilian Hellmann]. Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLaine, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito, não é aquela história das duas professoras que. Abalado, convidou Saul para um café, e no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais do que nunca parecendo uma prisão ou clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme.

Outros filmes viriam nos dias seguintes, e tão naturalmente como se alguma forma fosse inevitável, também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperanças e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro no quarto de pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da meia-noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira, quando outra vez se encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta um do outro que sequer sabiam claramente ter sentido.

Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabaram cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para trocar suas histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou “Tu me acostumbraste”. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas.

Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto,
Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados,
cantando baixinho “Tu me acostumbraste”, entre inúmeros cafés e meio maço
de cigarros a mais que o habitual.

4

Os fins de semana foram se tornando tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul ligou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a empregada deixara pronta no sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal deserto, nas tais almas.

Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem cantou foi Raul: “Perfidia”, “La barca”, “Contigo en la distancia” e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes, “Tu me acostumbraste”. Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim “sutil llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón”. Jogaram algumas partidas de buraco e, por volta das nove, Saul se foi.

Na segunda-feira não trocaram uma palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichavam sem que eles percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável. Pouco tempo depois, com o pretexto de assistir a Vagas estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando “lo che non vivo” Raul viu os desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste? perguntou. Você não se sente só? Saul sorriu forte: a gente acostuma.

Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, jogavam cartas, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava - vezenquando “El día que me quieras”, vezenquando “Noche de ronda” -, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos Gardel pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam.Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. Nesse dia as moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas enigmáticas. Quando faltavam dez para as seis saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda.

5

Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do verão, foi a vez de Raul fazer aniversário. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa.

No Norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora. Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. À noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante nessa semana. E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro. Acordou pensando estranho, ele é que devia estar de luto.

Raul voltou sem luto. Numa sexta-feira de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa e mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, em vez de parecer mais velho ou mais sério, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa noite. Raul falou longamente da mãe - eu podia ter sido mais legal com ela, coitada, disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão, e quando percebeu seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos ficaram que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada;o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou aquilo que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender.

Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes - ninguém, mundo, sempre - e apertavam se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e choro e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa, acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde.

6

Depois chegou o Natal, o Ano-Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição. Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, de Botticelli, que ele colocou na parede exatamente onde estivera o quadro de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco chamado Os grandes sucessos de Dalva de Oliveira. A faixa que mais ouviram foi “Nossas vidas”, prestando atenção naquele trechinho que dizia “até nossos beijos parecem beijos de quem nunca amou”.

Foi na noite de 31, aberto o champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um podia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã Saul foi embora sem se despedir, para que Raul não percebesse suas fundas olheiras.

Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias - e tinham planejado juntos quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro -, ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do meio dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto: tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, os dois ouviram expressões como “relação anormal e ostensiva”, “desavergonhada aberração”, “comportamento doentio”, “psicologia deformada”, sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul levantou de um salto. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, depois de coisas como a-reputação-denossa- firma ou tenho-que-zelar-pela-moral-dos-meus-funcionários, declarasse frio: os senhores estão despedidos.

Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala vazia na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de enormes olhos sem íris nem pupilas, presente de Saul, que guardou no seu grande envelope pardo a letra de “Tu me acostumbraste”, escrita por Raul numa tarde qualquer de agosto e com algumas manchas de café. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio.

Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica psiquiátrica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos nas janelas, a camisa branca de um e a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai! alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram, O táxi já tinha dobrado a esquina. Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens do céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.





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terça-feira, 13 de julho de 2010

* Uma história de fadas (Para minha amiga, Alice)

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Era uma vez o País das Fadas. Ninguém sabia direito onde ficava, e muita gente (a maioria) até duvidava que ficasse em algum lugar. Mesmo quem não duvidava (e eram poucos) também não tinha a menor idéia de como fazer para chegar lá. Mas, entre esses poucos, corria a certeza que, se quisesse mesmo chegar lá, você dava um jeito e acabava chegando. Só uma coisa era fundamental (e dificílima) : acreditar.

Era uma vez, também, nesse tempo (que nem tempo antigo, era, não; era tempo de agora, que nem o nosso), um homem que acreditava. Um homem comum, que lia jornais, via TV (e sentia medo, que nem a gente), era despedido, ficava duro (que nem a gente), tentava amar, não dava certo (que nem a gente). Em tudo, o homem era assim que nem a gente. Com aquela diferença enorme: era um homem que acreditava. Nada no bolso ou nas mãos, um dia ele resolveu sair em
busca do País das Fadas. E saiu.

Aconteceram milhares de coisas que não tem espaço aqui pra contar. Coisas duras, tristes, perigosas, assustadoras, O homem seguia sempre em frente. Meio de saia-justa, porque tinham dito pra ele (uns amigos najas) que mesmo chegando ao País das Fadas elas podiam simplesmente não gostar dele. E continuar invisíveis (o que era o de menos), ou até fazer maldades horríveis com o pobre. Assustado, inseguro, sozinho, cada vez mais faminto e triste, o homem que acreditava continuava caminhando. Chorava às vezes, rezava sempre. Pensava em fadas o tempo todo. E sem ninguém saber, em segredo, cada vez mais: acreditava, acreditava.

Um dia, chegou à beira de um rio lamacento e furioso, de nenhuma beleza. Alguma coisa dentro dele disse que do outro lado daquele rio ficava o País das Fadas. Ele acreditou. Procurou inutilmente um barco, não havia: o único jeito era atravessar o rio a nado. Ele não era nenhum atleta (ao contrário), mas atravessou. Chegou à outra margem exausto, mas viu uma estradinha boba e sentiu que era por ali. Também acreditou. E foi caminhando pela estradinha boba, em direção àquilo em que acreditava.

Então parou. Tão cansado estava, sentou numa pedra. E era tão bonito lá que pensou em descansar um pouco, coitado. Sem querer, dormiu. Quando abriu os olhos — quem estava pousada na pedra ao lado dele? Uma fada, é claro. Uma fadinha mínima assim do tamanho de um dedo mindinho, com asinhas transparentes e tudo a que as fadinhas têm direito. Muito encabulado, ele quis explicar que não tinha trazido quase nada e foi tirando dos bolsos tudo que lhe restava: farelos de pão, restos de papel, moedinhas. Morto de vergonha, colocou aquela miséria ao lado da fadinha.

De repente, uma porção de outras fadinhas e fadinhos (eles também existem) despencaram de todos os lados sobre os pobres presentes do homem que acreditava. Espantado, ele percebeu que todos estavam gostando muito: riam sem parar, jogavam farelos uns nos outros, rolavam as moedinhas, na maior zona. Ao toquezinho deles, tudo virava ouro. Depois de brincarem um tempão, falaram pra ele que tinham adorado os presentes. E, em troca, iam ensinar um caminho de volta bem fácil. Que podia voltar quando quisesse por aquele caminho de volta (que era também de ida) fácil, seguro, rápido. Além do mais, podia trazer junto outra pessoa: teriam muito prazer em receber alguém de que o homem que acreditava gostasse.

Era comum, que nem a gente. A única diferença é que ele era um Homem Que Acreditava.

De repente, o homem estava num barco que deslizava sob colunas enormes, esculpidas em pedras. Lindas colunas cheias de formas sobre o rio manso como um tapete mágico onde ia o barquinho no qual ele estava. Algumas fadinhas esvoaçavam em volta, brincando. Era tudo tão gostoso que ele dormiu. E acordou no mesmo lugar (o seu quarto) de onde tinha saído um dia. Era de manhã bem cedo. O homem que acreditava abriu todas as janelas para o dia azul brilhante. Respirou fundo, sorriu. Ficou pensando em quem poderia convidar para ir com ele ao País das Fadas. Alguém de que gostasse muito e também acreditasse. Sorriu ainda mais quando, sem esforço, lembrou de uma porção de gente. Esse convite agora está sempre nos olhos dele: quem acredita sabe encontrar. Não garanto que foi feliz para sempre, mas o sorriso dele era lindo quando pensou todas essas coisas — ah, disso eu não tenho a menor dúvida. E você?


O Estado de S. Paulo, 30/11/1988




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Para minha querida amiga, Alice.

Com carinho.

Suely

quarta-feira, 7 de julho de 2010

* Bem longe de Marienbad

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............................Para Claire Cayron
............................e Alain Keruzoré



1

São oito horas da noite, não há ninguém na estação. Não, não é exato. Para ser preciso o TGV chega pontualmente às 8h07 - e não há nada mais pontual que um TGV, exceto talvez aquele ônibus sueco de Kungshambra, faz tanto tempo, continuará assim? -, portanto não são bem oito horas da noite, mas um pouco mais, embora não muito. Se é que importa a hora em que tudo isto começa.
Suponhamos que eu tivesse levado três, no máximo cinco minutos para apanhar a mochila, essa bagagem típica e mínima de quem não se importa de andar de lá para cá o tempo todo sem paradeiro, saltar do trem e subir as escadas da plataforma até o corredor de saída, naquele passo meio desconfiado dos recém-chegados a algum lugar onde nunca estiveram antes. Suponhamos também que tenha olhado em volta à procura de K ou de qualquer outra pessoa inteiramente desconhecida e parada na estação deserta, segurando um cartaz com meu nome escrito,e talvez então tivesse me detido um momento a pensar vago que sempre foi um dos meus sonhos esse: desembarcar numa estação deserta e desconhecida para encontrar alguém igualmente desconhecido segurando meu nome num cartaz erguido bem alto, sobre todas as outras cabeças dos que partem ou chegam, pois essa é a estação que imagino, cheia de gente que sobe e desce escadas, carregada de malas, vindo ou indo para lugares, para outras gentes, e sobre as suas anônimas cabeças em trânsito meu nome seria o único escrito em grandes letras visíveis, talvez vermelhas, erguidas bem alto, as letras do meu nome. Mas suponhamos ainda que tivesse me distraído alguns segundos nas esquinas desse pensamento (vadio, reconheço, auto-referente, narcisista), de qualquer forma não mais que segundos que não chegaram sequer a minuto, porque não há ninguém lá, nem cartaz, nem gente viajante nem nada e paciência, querido, ainda não será desta vez que, conformado, começo a subir as escadas ou vou saindo das escadas para o corredor que leva até a rua, e nisso tudo, que não levaria mais que cinco, talvez sete ou nove minutos, embora possa parecer muito mais dito assim dessa maneira aqui, para ser preciso, para começar, ou quase, digamos finalmente que:

Não deve passar de oito horas e quinze minutos de uma noite de novembro quando, sozinho, na estação com minha mochila, olho em volta e não há ninguém a minha espera.

Lá embaixo, ainda na plataforma onde param os trens que chegam de Paris, um homem manco e velho, um tanto cansado e metido num sobretudo xadrez preto e branco, dirige-se lento às escadas para subir até onde estou. Não usa bengala ou muletas, o que me faz imaginar, talvez desejar, que tenha apenas um pé machucado ou algo assim, e portanto mancar seja uma coisa passageira, não um destino irremediável. Ele desaparece por instantes nessa espécie de túnel das escadas que ligam a plataforma de chegada do trem ao corredor onde estou, só com minha mochila e meu olhar. Olho disfarçado mas muito atentamente para seus pés quando ele emerge do túnel e vem vindo pelo corredor em minha direção. Trôpego, acostumado aos trancos, traz as mãos nos bolsos, o homem manco, e nenhuma bagagem. Então sorri ao passar por mim, esse homem velho, e leva dois dedos ao boné como se fosse retirá-lo num cumprimento, como se fazia antigamente, embora eu não seja uma senhora ou senhorita nem pareça, sejamos francos, digno desse tipo de respeito. Mas é só um gesto, um resto de gesto, quem sabe a nobreza que sobra a um velho manco. Não retira o boné, o homem cansado de faces vermelhas e olhos azuis, vejo melhor tão perto, e se vai em direção à cidade, arrastando a perna manca que bate no cimento da passarela, e me deixa só, e desta vez sim, é exato dizer desta maneira para continuar:

São pouco mais de oito horas da noite. Estou completamente só entre os guichês fechados desta estação numa cidade do Norte.

Espero o velho manco cansado ultrapassar com dificuldade a lama, os ferros, as telas cor de laranja das obras em frente à estação, depois desaparecer na primeira esquina. Então espero mais. Cuido os táxis que passam, como se K pudesse estar dentro de um deles e poderia sim, poderá quem sabe abrir a porta rápido para que eu entre, sem descer, apenas recuando um pouco para dentro, para me dar espaço a seu lado, nesse ninho morno do banco de trás, e diga o endereço ao motorista caprichando na pronúncia francesa para que eu o admire, embora isso não me importe agora, quero apenas encontrá-lo, e meio ao acaso, pouco depois, quando o carro recomeçasse a andar, tomar entre as suas uma das minhas mãos avermelhadas pelo frio e pelo peso da mochila, e afinal comece a falar sem parar naquela língua que ambos conhecemos bem e não ouvimos faz tempo, contando coisas engraçadas, estranhas ou até mesmo um tanto estúpidas, não importa. Não importará nada do que diga ou faça, desde que venha e tudo aconteça desta ou de outra maneira inteiramente diversa da que invento, parado na frente da estação desta cidade do Norte onde, dizem, existe também o mar.

Nenhum carro pára. K não vem e o tempo passa. Olho a cidade enlameada, varrida por ventos vindos quem sabe desse mar que por enquanto nem vejo. No meio do olhar, uma palavra me vem à mente: sinistrée. Não sei de onde vem, nem lembro, mas fico a mastigá-la em voz alta muitas vezes, feito um mantra demasiado longo, parado na frente da estação deserta: sinistrée, sinistrée, c’est une ville sinistrée.

São muito mais de oito horas da noite, talvez nove, meu relógio foi roubado numa aldeia africana ou numa metrópole da América do Sul. Não lembro, não sei. K não veio, não veio ninguém e ninguém mais poderia vir além dele. Fico tentado a dar a volta agora, em direção a Amsterdã, Katmandu ou Santiago de Compostela, mas sei que K está aqui, nesta cidade do Norte, e eu preciso encontrá-lo. Há um hotel na minha frente. Jogo a mochila nas costas e penso: sempre haverá um hotel ao alcance do olho e das pernas de alguém perdido, aqui ou em qualquer outro lugar do planeta, e isso sempre deve ser também uma espécie de solução, mesmo provisória. Como os próprios hotéis estão aí afinal para isso mesmo: o provisório.

Puxo o zíper da jaqueta de couro até o pescoço, enfio as mãos nos bolsos, os pés na lama, e atravesso a rua.

2

Não quero ficar justamente em frente a elas, mas todas as outras mesas no restaurante do hotel estão ocupadas. A menos que eu sentasse de costas para elas, portanto de frente para a cozinha, o que seria esquisito, suponho, no mínimo inconveniente. Nem tanto talvez, mas como ainda desconheço o limite de tolerância para com as esquisitices alheias neste lugar onde nunca estive antes, por delicadeza acabo sentando exatamente onde não suportaria ficar. Em frente ao aquário em que elas estão.

Esguias, sinuosas.

Claro que posso, em princípio, desviar meu olhar através da parte superior do vidro do aquário, e depois desse primeiro vidro, pelo segundo vidro da outra parede do aquário, e depois desses dois vidros entre os quais ainda não há água, ultrapassar um terceiro - o da janela voltada para a rua, a lama, os ferros em frente à estação. Posso também olhar para a direita, onde três escandinavos de gravatas coloridas falam uma língua cheia de consoantes, mas como continuo a desconhecer o limite de tolerância e etc. compreendo que não devo olhá-los tempo demais. E por delicadeza, outra vez, mudo meus olhos. Mas por mais que possa sempre olhar para a esquerda, em direção à portaria com a loura cinqüentona que me providenciou o quarto mais barato, para o teto ou a toalha da mesa, e até mesmo para a esquina lá fora, em que parece estar parado um homem velho, metido num sobretudo xadrez preto e branco, há um momento em que, como se nada mais houvesse no mundo para ser olhado, e por absoluta delicadeza, sou obrigado a encará-las de frente.

Negras, lisas.

Há duas enguias no aquário em minha frente. Há outros peixes menores também, nadando indiferentes em torno delas. Estão imóveis, duas serpentes viscosas preparando um bote sem pressa. Devem medir pelo menos quatro palmos, quase toda a extensão do aquário. Remotas, aceitam a exigüidade, amoldando o quieto horror de seus corpos pelas esquinas de vidro, apoiadas sobre as pedras do fundo, entre peixes menores tão distraídos que chegam a roçar nelas suas caudas, suas barbatanas. Mas não dão choque? - quero perguntar feito criança - e não devoram os outros peixes? - morro de curiosidade mórbida - e é verdade que são capazes de rastejar na lama feito cobras anfíbias? - mas não pergunto nada. Não demonstro sequer que sua presença me estremece. Entre paredes de vidro: expostas, obscenas. Sorrio para o garçom. Peço mais vinho, tão negro quanto a pele das enguias. E por monstruosa delicadeza, bebo sem espanto algum.

(... e bom, poderei comentar daqui a algum tempo, muito natural, dando outro gole no uísque ou acendendo mais um cigarro: “Então de repente uma noite lá estava eu naquela cidade desconhecida, bebendo vinho tinto cara a cara com aquelas duas enguias num aquário pequeno demais para elas”...)

Esse pensamento quase me salva, Digo quase porque, embora me jogue para a frente, para o tempo em que já não estarei aqui e agora olhando ad infinitum as enguias sem mais nada no mundo, não é exatamente esse, mas um outro que chega junto, talvez dentro dele, o realmente salvador. Se é que salva - pensamento, memória, fantasia - qualquer coisa que venha de dentro, não de fora. De dentro, isso que vem, ainda vago no começo, limita-se àquela palavra trágica que repito olhando fixo para as enguias, porque de alguma forma ajusta-se com perfeição aos seus lisos corpos negros esguios sinuosos: sinistrée.

A primeira vez que encontrei alguém que conhecia Saint-Nazaire e perguntei sobre a cidade, foi com essa palavra que me respondeu. “Sinistrée”, disse. “C’est une vilie sinistrée.” Chamava-se Alain, Jean-Paul, talvez François, em todo caso um desses nomes masculinos tipicamente franceses. Mas não estávamos na França. Era Ribeirão Preto, Presidente Prudente, talvez Piracicaba, em todo caso uma dessas cidades ricas do interior de São Paulo por onde eu andava, já naquele tempo, à procura de K. Enquanto Alain ou Jean-Paul, mais provavelmente François, e Deus sabe o que faria lá, num português difícil tentava contar uma longa história antiga de guerra, bunkers, bombardeios, nazistas, sem ouvi-lo direito eu mastigava a palavra - si-nís-tré-e -, rolando entre os dentes sua sonoridade dramática que me fazia pensar em sombras, gemidos. Escombros, ruínas. Fria chuva ácida e vento radioativo soprando sobre o sangue nas calçadas.

Quase peço mais vinho, então, enquanto os escandinavos levantam da mesa ao lado e o salão vai ficando pouco a pouco completamente vazio. Seria mais fácil permanecer aqui, me embebedando nesta pausa difícil, a mastigar palavras trevosas e a contemplar enguias até que alguém me mande embora, as portas se fechem e todos vão dormir. Mas não - penso de repente, um segundo antes de, por pura delicadeza, pedir outro vinho, porque são os atos e não as palavras que podem salvar -, quanto a mim: não.

Não há de ser por delicadeza que perderei minha vida - vou repetindo no mesmo ritmo em que afasto o vinho, levanto da mesa e decido, ainda esta noite e de qualquer maneira, sair à procura de K.

3

É fácil descobrir o endereço - dix-sept, rue du Port -, que me soa romântico com seus erres rascantes ditos pela loura cinqüentona da portaria. Mais difícil, e ela insiste, seria explicar por que me vou sem sequer passar uma noite aqui. Não pelo quarto, madame, pela comida ou qualquer outro desses detalhes dos hotéis, s‘il vous plaït, mas pelo horror imóvel das enguias em sua jaula de vidro associado ao outro horror também imóvel daquela palavra. Pelo risco da imobilidade eterna, madame, pelo perigo de eu mesmo permanecer para sempre aqui, igualmente imóvel, congelado em inúteis delicadezas enquanto tudo ou nada ou apenas qualquer coisa, mesmo insignificante, se agita e move e se perde em outro lugar, com certeza madame não compreenderia tanta ânsia tropical, bien súr.

Finjo que meu francês é pior do que na realidade é. Pago a conta, ela me estende um pequeno mapa da cidade. Aponta o caminho com a unha vermelha: “No building”, diz. E repete, batendo com a ponta da unha na ponta do papel até que eu compreenda a palavra inglesa com estranho acento francês: “No building”.

Avenue de la République, sempre em frente, e me perco um pouco quando a rua se divide em duas para contornar um prédio redondo onde as vitrines exibem sapatos, toca-fitas, vestidos e cristais, como todas as vitrines do mundo. Só depois de uma volta completa, cuidando sempre as placas, consigo chegar ao Hôtel de VilIe. Não passa muito da meia-noite, imagino, mas as ruas estão desertas como se a cidade tivesse sido evacuada.

Sirenes, não sei se lembro ou penso ou vejo, clarões no ar, depois a explosão e cacos, estilhaços na carne macia das crianças. A mochila pesa, o vento corta a cara: Sarajevo, gemo, como se estivesse lá e fosse eu. Às vezes me detenho e olho para trás, como se ouvisse passos mancos batendo e batendo contra o cimento das calçadas. Nunca há ninguém quando olho. Deve ser o eco de meus próprios passos, fantasmas desta ou de outra guerra emboscados nas esquinas, alguma lata soprada pelo vento.

Em frente ao Hôtel de Ville hesito um pouco mais, indeciso entre virar à esquerda ou à direita. Desdobro no ar o mapa que o vento tenta arrancar-me das mãos, e para que não o faça sou obrigado a voltar-me de costas para ele - para o vento, para o lugar de onde sopra, talvez o mar que não vejo - e nesse movimento rápido, no segundo em que protejo a folha de papel com minhas costas arqueadas, ao mesmo tempo em que abaixo o rosto para procurar a direção correta, por acaso meus olhos esbarram no edifício dos correios, pouco abaixo, na mesma rua. E tenho certeza de que alguém acabou de esconder-se entre as sombras das escadas. Loucura, ilusão, delírio.

A chuva é tão fina que nem chega a molhar, apenas gela. Tenho que ir em frente ao encontro de K, nesta ou em qualquer outra cidade do Norte ou do Sul, da Europa ou da América. Histórias como esta costumam acabar bem e, mesmo que não se viva feliz para sempre - afinal, não se pode ter tudo -, deve haver pelo menos algum lugar quente e seco para abrigar o final da noite.
À esquerda, decido - sempre à gauche -, em direção ao cais, pela rue Géneral De Gaulle, depois da igreja de tijolos expostos, cercada pelas folhas amarelas caídas desses plátanos que me fazem lembrar outras folhas, outros outonos, outras cidades. Tudo e cada coisa em qualquer lugar lembrará sempre e de alguma maneira outra coisa num lugar diverso, portanto é inútil me deter e sigo em frente. Cuido sempre as placas, prossigo até a altura em que a rua muda de nome para boulevard René Coty, falta pouco agora, posso sentir nos meus passos. No ritmo da caminhada, na minha respiração.

Quando vejo os barcos atracados à esquerda e, mais à frente, onde a rua termina, a ponte iluminada verde, cinza e branca que começa a levantar-se à medida que me aproximo - como num sinal, como se me desse boas-vindas -, começo a andar mais depressa sem olhar para trás, apesar dos passos mancos que continuam batendo às minhas costas. Estou certo de que é lá, onde esta rua se detém para que a ponte se eleve e os barcos entrem no cais, na curva exata onde o vento sopra mais forte.

Um navio começa a entrar no porto. Não presto atenção. Em vez de olhar para ele, antes de atravessar os arcos do edifício em direção à porta, prefiro olhar para cima em busca das janelas iluminadas atrás das quais K possa estar sentado, escrevendo ao lado de um cálice de calvados ou remy-martin, assistindo a qualquer programa exótico na televisão sobre as serpentes domésticas do Daomé ou as rumbas catalãs entrecortadas por ay! ay! ay! pungentes, e ouvindo então o movimento embaixo, abra uma fresta para espiar o navio que chega, e de repente me veja parado aqui embaixo, à sua procura, e sorria um sorriso que não verei, porque está muito alto e a luz que chega por trás não ilumina seu rosto, apenas seus contornos, mas de qualquer forma acene para mim, largamente, braço erguido contra o céu, para que eu suba sem demora ao encontro dele.

As janelas não abrem. Um vulto passa mancando atrás de mim.
Aperto várias vezes o botão com o número de seu apartamento. Espero, e enquanto espero tento me distrair acompanhando a chegada do navio. Mas ele não me interessa. Nada me interessa além do botão desse painel eletrônico que aperto e aperto outra e outra vez, até a ponta do meu dedo começar a doer. Ninguém responde. Lá dentro, lá em cima, lá longe. Experimento a porta de entrada, não chego a compreender por que ainda continua aberta a estas horas, o que seria impensável e arriscado nas cidades de onde venho. Empurro a porta, entro, chamo o elevador e até que chegue calculo o andar onde certamente K deve estar, nem escrevendo nem assistindo à televisão, mas apenas talvez dormindo esquecido de tudo, inclusive de mim, da minha chegada, e abrirá a porta um tanto mal-humorado, sem saber ao certo se faço parte de um sonho que não estava sonhando ou de uma realidade que ele mesmo inventou, tão distraído que depois esqueceu ou teve preguiça de esperar que acontecesse.

Deposito a mochila no chão do corredor, investigo os números das três portas deste andar. Em frente a uma delas há um estranho arranjo: uma mesa de madeira dessas das escolas de antigamente com pedras redondas polidas, a maioria cinzentas, em arranjos sinuosos sobre o tampo e pelo chão, como um código celta esotérico, talvez lógico para quem o armou, mas perfeitamente incompreensível para mim, que não entendo nada. Dirijo-me à outra porta, ao lado daquela, toco a campainha. Outra vez, várias vezes. E outra vez ninguém atende, e outra vez experimento a porta, e outra vez continuo a não compreender como possa estar aberta, à disposição de qualquer um e não apenas de mim.

Meu coração bate louco, tenho as palmas das mãos molhadas quando abro devagar a porta desse apartamento onde K com certeza estará. Puxo a mochila para dentro, sem ruído, antes que o vizinho celta possa entreabrir uma fresta para perguntar qualquer coisa difícil de responder. Fecho a porta atrás de mim, as luzes estão todas apagadas. Mas flutuando inconfundível na penumbra varada somente pelas luzes do porto além das janelas fechadas - como se eu fosse um animal, e ele outro - posso sentir perfeitamente nesse espaço o cheiro do corpo vivo de K.

4

De fora chega apenas o ruído do vento estremecendo as vidraças. Nem um grito no porto. Tiro as botas, prevenindo ruídos, tiro a jaqueta, coloco-as no chão ao lado da mochila e permaneço parado no pequeno corredor de entrada até que meus olhos se acostumem ao escuro. Não sei quanto tempo se passa assim, enquanto minhas pupilas se dilatam aos poucos para começar a perceber formas como as de um armário aberto e vazio à minha esquerda, e um pouco mais adiante a televisão desligada, com um botão vermelho que brilha sozinho na penumbra. Depois, começo a avançar pela sala.

As cortinas estão abertas sobre as vidraças altas, que tomam quase toda a extensão da parede que dá para fora. Através delas posso ver as calçadas e tetos molhados pela chuva nesse bairro do outro lado da rua, que me disseram chamar-se Petit Maroc. Um pequeno Marrocos, duvido, pois visto de cima não há nada nele que lembre arcos mouriscos, vielas tortuosas, punhais afiados, meninos descalços meio mendigos, meio prostitutos, e o vento que sopra por lá certamente não é o siroco nem vem do deserto. A massa escura de algo que só depois de algum tempo percebo que deve ser água, talvez o mar, abraça as casas desse pequeno Marrocos abandonado no outro lado da ponte.

Há alguém parado na esquina. Parece um homem velho, metido num sobretudo xadrez preto e branco. Olha para cima, para onde estou, mas não tenho tempo de me deter nele. Preciso encontrar K. Avanço mais, avanço sempre.

Em frente à televisão há um sofá e uma mesa baixa, retangular, alguns livros sobre o tampo de vidro. Tenho vontade de curvar-me, ver suas capas - Pessoa talvez, sempre Pessoa, alguma biografia maldita falando de fracassos, como ele gostava, e qualquer coisa inesperada feito um novo romancista búlgaro ou poeta letão de nome impronunciável -, mas tenho medo de esbarrar em algo e despertar K, que certamente dorme lá dentro. Eu continuo a avançar. Antes de chegar ao lado oposto da sala, onde há outra mesa redonda com apenas um grande vaso branco sem flores, passo pela porta aberta da cozinha.

E é então que, na área coberta que dá para o interior do prédio, esse que chamam building, acontece de súbito um ruído de asas.

Um grande pássaro branco, talvez uma gaivota, pousa na janela da cozinha e olha para dentro, para o interior escuro do apartamento onde estou parado e respiro lento, quieto, abafado, tentando não despertar nada vivo aqui dentro. Desvio-me da pequena mesa de madeira no centro da cozinha, nada sobre os balcões, a geladeira, vou vendo em câmara lenta, como se estivesse dentro de uma cápsula espacial e qualquer movimento mais brusco pudesse romper a força da gravidade e lançar-me suavemente para cima, pelos ares. Curvo-me em frente à janela e fico olhando, do outro lado da vidraça, para os olhos do grande pássaro quase totalmente branco, vejo melhor agora e assim de perto certas penas cinza-claras no seu dorso. Seus olhos cor de laranja vivo, fulvos, com pequenas pupilas negras encravadas no centro, olham sem medo algum para minhas pupilas dilatadas.

Curvo-me mais, ajoelho-me no chão, apóio o braço direito no metal gelado da pia, aproximo o rosto, comprimo a testa contra a vidraça. O pássaro vira o pescoço, me examina de perfil, o bico afiado. Mas antes que eu espalme a mão sobre o vidro e sequer comece a pensar que poderia talvez abrir a janela para deixá-lo entrar ou para que eu mesmo pudesse sair, quem sabe, acontece outra vez aquele ruído de asas e de repente o pássaro se foi.

Sou um homem de joelhos no chão de uma cozinha vazia, num apartamento com todas as luzes apagadas nesta cidade do Norte onde nunca estive antes. Tudo isso, que é nada, subitamente parece tão absurdo e patético e insano e monótono e falso e sobretudo tristíssimo, que levanto de um salto, dou a volta, saio da cozinha e vou entrando decidido pelo corredor que parte da sala para o interior do apartamento. As portas estão todas abertas. A privada, o banheiro, o escritório onde aparentemente não há nada além de uma mesa em frente à janela que dá para o porto e outra estante de livros. Ah, as inúteis delicadezas, digo em voz alta, sem me importar de fazer barulho, de despertar qualquer outra pessoa que possa não ser K e porventura durma atrás de uma dessas duas portas no final do corredor.

Estendo a mão e abro a porta à minha esquerda. É um quarto. Com as luzes de fora atravessando a janela, consigo ver uma mesa vazia e duas camas de solteiro dispostas em forma de L. Forço os olhos tentando divisar algum volume, alguma forma sobre qualquer uma delas. Estão perfeitas, intocadas. Frias, esticadas, desertas. Não há ninguém dormindo nelas.

Não quero pensar em nada, nem mesmo em voltar atrás, ao corredor de entrada, apanhar minhas botas, minha mochila, minha jaqueta, sem nunca mais olhar para trás, e partir enfim para Amsterdã, Katmandu, Santiago de Compostela. Ações, repito, ações são o que salva. Quero apenas estender minha mão no escuro, abrir a porta e entrar no quarto, mas não consigo deixar de ver a mim mesmo, ainda em silêncio, ainda agitado, sentando à beira da cama onde K deve dormir, e sem acender a luz de cabeceira, sentindo dentro do sono minha presença e meu cheiro, abriria os olhos antes que eu pudesse distender os dedos do braço que acabei de alongar em direção a seu rosto adormecido - então segura meus dedos abertos no ar, um segundo antes do gesto. Estou agitado e desfeito e confuso e não quero pensar absolutamente nada antes de abrir essa porta.

Para compor meu rosto, então, subo as mãos pelo espaço. Quero ajeitar os cabelos antes de vê-lo. E antes ainda, antes, porém, que elas alcancem a testa, sem saber por quê, uma canção antiga, dessas de roda, de jogo, uma cantiga de infância que ninguém lembra mais, muito menos eu, por isso me espanta tanto lembrá-la, me sobe estridente na memória. Detenho as mãos. Sem levá-las à testa, os dedos cobrindo por completo o rosto, pouco antes de abrir a porta canto no escuro em voz mais baixa que o vento lá fora:

Senhora dona Cândida,
coberta de ouro e prata,
descubra o seu rosto,
quero ver a sua graça.

Eu paro de cantar.

Eu abro a porta.

Eu estou sorrindo quando abro a porta do último quarto.

A cama de casal está feita. Mais além, as luzes amarelas do pequeno Marrocos varam o escuro. K não está no quarto, nem ninguém mais. Mergulho a cabeça nos lençóis à procura de seu cheiro, que também não está lá. Entranhado nos panos, guardado nas dobras. Lençóis limpos, cheiram apenas a limpeza. Água, sabão, detergente. Estou tão cansado, minha cabeça estala com passos mancos, estações desertas, enguias sinuosas, ruas vazias, chuva miúda, vento gelado, códigos celtas, gaivotas brancas, canções antigas. Sem pensar em nada mais, fecho os olhos para esquecer. Dorme, menino, repito no escuro, o sono também salva. Ou adia.

Pouco antes de dormir, percebo que ainda estou sorrindo. E que não sinto alegria. Afrouxo um por um os músculos do rosto, do corpo, da mente. Depois afundo.

5

Há um céu resplandecente lá fora.

Logo que abro os olhos, essa é a primeira coisa que vejo além da janela: o céu resplandecente lá fora. Mesmo antes de saber ao certo se estarei no sótão de alguma squatter-house em Brixton, naquele porão do cortiço turco em Kreuzberg ou num hotel barato perto da Puerta del Sol - sei do sol. Quando olho para dentro, as paredes brancas do quarto, o metal cor de vinho da armação da cama, uma reprodução azul de Salvador Dali na cabeceira, e quando olho para fora, a ponte que leva ao pequeno Marrocos, a outra ponte maior ao longe, que lembra a cauda de um dinossauro, e sobretudo a luz do estuário - tudo isso confirma: continuo em Saint-Nazaire.

Continuo nesta cidade estranha, e a ausência de K também continua dentro do apartamento, confirmo, e vou confirmando mais enquanto saio da cama e volto, um por um, sobre meus próprios passos da noite passada. Tudo permanece como quando cheguei: vazio. Apenas o grande pássaro quase todo branco não está mais atrás da janela da cozinha - só as manchas escuras de fezes endurecidas no chão de cimento, algumas penas brancas entre elas, testemunham a sua visita. Não há vestígio algum da passagem de K ou de qualquer outra pessoa por aqui. Abro todos os armários do apartamento, abro os armários dos quartos, toalhas, lençóis, cabides, abro os armários da cozinha, louças, panelas, talheres, copos e um vidro com restos de café solúvel, único indício de que alguém mais, além do pássaro e de mim, andou também por aqui.

Sinais, procuro. Rastros, manchas, pistas. Não encontro nada.

Misturo devagar os grãos envelhecidos do café à água fervente da torneira. Tem gosto de terra, de lã, de cinza e de não sei que mais, áspero e grosso. Bebo assim mesmo. Abro a porta de vidro, saio na sacada que dá para o porto. O vento despenteia meus cabelos, acendo um cigarro e fico a olhar o sol oblíquo, entre a chaminé de tijolos e o molhe de cimento com alguns barcos atracados. Há verdes e brancos do outro lado do estuário, talvez dessa cidade que me disseram chamar-se Saint-Brévin-les-Pins.
O céu é tão azul e sem nuvens que poderia ser abril, mas o vento gelado na minha cara e os galhos nus das árvores à beira d’água afirmam: é quase dezembro nesta cidade do Norte. Uma cidade tão luminosa agora pela manhã que não parece a mesma da noite anterior. Talvez pela luz, essa luz limpa e leve dos estuários onde os Oxuns encontram as lemanjás, talvez pelo vento, pelo gosto mofado do café na minha boca, pela vaga vertigem que um primeiro cigarro sempre deixa na cabeça - por tudo isso, quem sabe, ou porque não há outro jeito, se tudo foi tentado, de repente fico perfeitamente sereno.

Jogo o cigarro no espaço. Como de costume, repito e repito: bem, paciência, querido, ainda não será desta vez que. E com a mesma nitidez de todas essas coisas que vejo e faço neste momento, enquanto contemplo o sol sobre o estuário, parado na sacada como numa fotografia, na seqüência imediata deste momento que se move, decido ir embora de Saint-Nazaire.

Antes de entrar, percebo: o homem de sobretudo xadrez continua parado na esquina do Petit Maroc. Ao me ver, dá um passo à frente, e nesse movimento uma de suas pernas vacila um pouco, como se mancasse. Ele ergue o braço, parece que vai retirar o boné num cumprimento. Mas não espero que conclua o gesto. Preciso pegar minhas coisas e partir. Viajar, esquecer, talvez amar.

Estou quase feliz enquanto procuro as botas, a jaqueta e a mochila no corredor de entrada. Na estação certamente há trens para toda parte e a qualquer hora. Calço minhas botas com estrelas de metal cromado pensando vagamente que preciso de um banho e poderia quem sabe, mas não tenho vontade sequer de espiar os livros na mesa da sala nem de ficar mais um segundo neste lugar onde não há marcas da passagem de K. Exceto aquele vago cheiro, na noite passada, que logo se dissipou.

Tenho a mão estendida para abrir a porta, chamar o elevador. Descer, partir, viver.

Então, feito um soco no peito, lembro do escritório. E vou voltando atrás, rastros, eu atravesso a sala, pistas, eu vejo o tampo negro da mesa sob a janela, manchas, eu entro no escritório, sinais, eu me aproximo da mesa, indícios, eu vejo, a pasta roxa sobre a mesa, vestígios: eu sei que todas essas coisas estão dentro dela. O mapa, dentro da pasta roxa. Eu a prendo forte entre as mãos, como se pudesse escapar.

6

“Journal d’une ville sinistrée”, está escrito na capa, como se fosse um título. Letras negras, finas, quase anônimas de tão minuciosas, desenhadas cuidadosamente feito ideogramas chineses, como se alguém tivesse levado horas nesse trabalho que parece feito a bico de pena. Mesmo assim, nessa escritura frágil, tombada para a direita como se pudesse cair da página, sou capaz de reconhecer a letra de K. Logo abaixo desse título, feito uma epígrafe colada na parte inferior da capa e provavelmente recortada de algum livro, há este trecho:

Aún no sé si este es el sitio donde yo pueda vivir. Talvez para un desterrado - como la palabra lo indica - no haya sitio en la tierra. Solo quisiera pedirle a este cielo resplandeciente y a este mar, que por unos días aún podré contemplar, que acojan mi terror.

No final dessas palavras, com a letra muito miúda de K, está escrito o que suponho seja o nome de seu autor - Reinaldo Arenas -, que não conheço. Não paro para pensar, nem me detenho no sentido do que acabei de ler. Mesmo que a palavra resplandecente me surpreenda, apesar de o céu começar a fechar-se lá fora. Ainda não é suficiente, eu preciso de mais. Abro a pasta com tanto estabanamento que algumas folhas de papel caem ao chão. Há também cartões-postais, folhas secas, recortes. Começo a apanhá-los, não parece haver lógica entre essas folhas soltas. Num suplemento de jornal há fotos, entrevistas, cronologia e bibliografia de Jorge Luis Borges. Algo dito por ele, em francês, foi sublinhado com tinta vermelha:

[...] arc-en-cie c’est três beau, n ‘est-ce pas? C’est une architecture on construit un arc dans le cíel, c’est três beau; tandis que dans les autres langues, c ‘est plat; voyez arco-íris en espagnol, arcobaleno en italien; rainbow en anglais; cela n ‘a rien de particulier, tandis que arc-en-ciel, c ‘est de toute beauté. Qui a trouvé ça?

Procuro mais. Lá fora o céu acabou de fechar-se. Não há nenhum arco-íris e uma bruma lenta começa a atravessar as águas, vinda dos lados de Saint-Brévin. Há vários postais sem nada escrito atrás: um dólmen, uma dessas ruínas druídicas no centro de uma praça banhada pelo sol; o portal sul da catedral de Chartres, do século XIII; Chet Baker tocando sua clarineta no festival de jazz de Newport, em 1955; um violinista sentado numa janela, o violino e o arco nas mãos, olhando para fora, numa pintura chamada Der Geiger en Fenster, de Otto Scholderer, em 1861; uma cidade medieval cercada de muralhas, chamada Guérande; uma gárgula na fachada da igreja de Notre Dame; uma foto de Corinne Marchand em Cleo das 5 às 7 recortada de algum jornal, escrito embaixo “Je suis une maison vide sans toi... sans toi...”. Quando começo a me desesperar, algo que parece uma oração impressa em papel azul barato cai do meio dos papéis:

Notre-Dame des Flots,
les flots montants de la tendresse.
Notre-Dame des jlots tranquilles
‘abondance coulant à flots
et le coeur remis à flot.
Le flot débordant de la foie,
le soleil entrant à flots
et la paix à grands flots...

A bruma cobre por completo o cais. Cais das brumas, repito, sem lembrar quando nem onde li ou ouvi essa expressão: cais das brumas. Se há ondas na água além do farol em frente, a bruma ficou tão impenetrável que já não posso vê-las. Sento na cadeira e, disciplinadamente, coloco a pasta à minha esquerda enquanto vou empilhando à minha direita as coisas que já vi. E continuo a ver, coisas aparentemente sem nenhum nexo, nenhuma ligação:
um mapa da cidade de Praga com os nomes Daniela e Johana ao lado da palavra laska,* que não sei o que significa, escritos sobre ele com a mesma letra de K, em tinta fina e negra; o catálogo de um programa de leituras e palestras de escritores da Estônia, Lituânia e Letônia, com fotos de cada um dos escritores, mas apenas uma das fotos, a de uma mulher de olhos penetrantes e cabelos lisos, chamada Vizma Belsevica, cercada por uma moldura tão cuidadosamente desenhada quanto aquelas letras do título; um grosso catálogo de um festival de cinema em Nantes, sem nada assinalado; recortes de entrevistas com uma cantora do Cabo Verde, mulata e gorda, chamada Cesaria Evora, sem nada assinalado; e de repente, outra vez copiado na letra de K, algo que parece um fragmento da Ode marítima de Fernando Pessoa:

Ó meus peludos e rudes heróis da aventura e do [crime!
Minhas marítimas feras, maridos da minha [imaginação!
Amantes casuais da obliqüidade das minhas [sensações!
Queria ser Aquela que vos esperasse nos portos,
a vós, odiados amados do seu sangue de pirata nos [sonhos!

(*) “Amor”, em tcheco


No pequeno Marrocos, o restaurante acendeu seu neon azul. É a única coisa visível através da bruma que cobre o cais. Procuro algum navio atracado no porto, mas a bruma é tão branca e espessa que não consigo ver nada. E continuo a procurar, e procuro pelo menos a letra de K numa frase, numa palavra perdida no meio dos papéis que incluem recortes sobre o julgamento dos estupradores e assassinos da pequena Céline: caras escaveiradas das crianças negras da Somália; uma entrevista de Leonard Cohen, sem nada assinalado; bombardeios em Sarajevo; um mapa com as estatísticas da AIDS na África marcadas em tarjas negras; uma foto de Jeremy Irons e Juliette Binoche fazendo amor vestidos e em pé, apoiados no que parece a porta de uma igreja, em algum filme que não vi; a capa rasgada de um livro de bolso chamado Les nuits fauves, de Cyril Collard, que também não li, nem vi, nem sei e de repente uma página inteira quase completamente coberta pela letra de K cai no meu colo. Na parte superior, há uma foto de Brad Davis vestido de marinheiro, recortada e colada, e logo abaixo um texto sem crédito de ninguém e que, embora lembre Genet ou Fassbinder, parece ter sido escrito pelo próprio K:

A aposta está perdida. Querelle curva-se sobre a mesa. Desabotoa o cinto, as calças, mas não chega a abaixá-las. Apenas abre as pernas e debruça-se mais sobre a mesa. O negro vem por trás. Primeiro, com a mão direta, abaixa as calças do marinheiro até os pés. Com a esquerda, desabotoa as próprias calças. O negro lambe o dedo indicador e começa a introduzi-lo entre as nádegas de Querelle. Seu dedo desaparece na carne branca. Não há nenhuma resistência. O negro retira o dedo e, com um único movimento firme, introduz seu membro dentro de Querelle. Querelle não se move. Com as duas mãos, o negro escancara as nádegas do outro para entrar mais, e melhor. Quando entrou completamente, sobe as mãos pelo peito de Querelle até alcançar os mamilos duros perdidos entre os pêlos. É quando o negro tem a primeira suspeita. Move-se mais, entrando dentro de Querelle. Morde sua nuca, enfia a língua em seus ouvidos. Querelle continua imóvel. O negro desce as mãos dos mamilos do outro pelos pêlos da barriga, até seu sexo. Quando a palma de sua mão segura o sexo rijo de Querelle, ele tem certeza absoluta. O marinheiro não perdeu a aposta. Ao contrário, é o único vencedor. E tarde demais para o negro recuar dessa derrota enviesada. Ao longe uma voz rouca de mulher cantarola sempre: “Each man kills the things he loves”. O negro entra mais fundo, ao mesmo tempo em que sente a umidade do prazer de Querelle começando a molhar a palma de sua mão. Lá-rá-rá-lá-rá-rá-rá: o negro geme e goza dentro de Querelle. Querelle não geme nem se move. Apenas goza também, ao mesmo tempo, abundantemente, na palma branca da mão do negro. A aposta está ganha.

Brest: digo esse nome cortante feito faca. E recomponho na memória o mapa desse pequeno pedaço da França, qualquer coisa entre o que chamam Pays de la Loire e a Bretagne. A esquerda, pouco mais acima, pouco mais ao norte, naquela ponta do mapa que lembra uma cabeça de cão projetada sobre o Atlântico, fica a cidade de Brest. Procuro com os olhos além da ponte que lembra a cauda de um dinossauro - porque tudo, repito, sempre lembrará outra coisa. A bruma começou a dissipar-se, mas não o suficiente para que se possa ver a ponte maior, e muito menos o que existe além dela. Reviso as coisas que já examine várias vezes. Nada mais há entre elas que ainda não tenha visto.
Sacudo a pasta roxa no ar, parece vazia. Mas de repente uma pequena folha arrancada de um bloco de anotações cai de dentro dela. Apanho-a enquanto ainda flutua no ar. Nessa folha, com a letra frágil e tombada, clara e precisa de K, está escrito:

Este é o trigésimo dia. O ciclo está completo e não encontrei o Leopardo dos Mares. Já não sei ao certo se alguém me contou, se leram nas cartas, nas runas, mas estava certo de que ele estaria aqui e só por isso vim. Procurei-o no porto, nos cafés, na praia, pelas esquinas e barcos. Olhei tudo e todos muito atentamente. Sei que o identificaria por aquela tatuagem no braço esquerdo - um leopardo dourado saltando sobre sete ondas verdes espumantes. E mesmo que fizesse frio e eu não pudesse ver seus braços, reconheceria de longe seus olhos de jade. E, se usasse óculos escuros, eu assobiaria aquela canção até que me escutasse. Sem ele, não vejo sentido em continuar nesta cidade. Que todos me perdoem, mas escrever agora é recolher vestígios do impossível. Para encontrá-lo, e isso é tudo o que me importa, eu parto.
Embaixo, a data de ontem. Arrumo cuidadoso a folha de papel sobre as outras, à minha direita, bato-as juntas sobre a mesa para tentar certa ordem, certa harmonia. Depois pego a pasta, coloco tudo dentro e deixo exatamente como encontrei. Tudo isso é um tanto inútil porque, de toda maneira, ninguém saberá que estive aqui. Então, quando já quase parti, de dentro das dobras da contracapa cai um pequeno envelope fechado. Há um desenho sobre ele. Mas é tarde demais. A bruma dissipou-se, o céu começa a ficar outra vez lentamente azul, e eu preciso partir.

Fecho a pasta, deixo-a no centro do grande tampo negro da mesa em frente à janela. Da porta, olho-a pela última vez: é como se ninguém tivesse jamais tocado nela.

Atravesso a sala, o corredor de entrada, pego minhas coisas, olho os desenhos celtas do vizinho também pela última vez. Apontam para o Norte. Alcanço a rua, tudo é pela última vez agora e aqui, e só depois de dobrar a esquina é que, no bolso da jaqueta, aperto contra o coração o pequeno envelope que trouxe comigo.

Há um arco-íris desenhado atrás da ponte. Arc-en-ciel, arcobaleno, rainbow: preciso mesmo partir.

Não sei que horas são. A estação está completamente deserta. Mas não, não é exato. Sem saber se vejo realmente, porque o trem é veloz demais e uns restos de bruma ainda persistem no ar, tenho quase certeza de ver parado na estação vazia um homem um tanto velho, metido num sobretudo xadrez preto e branco, um boné, faces vermelhas e olhos azuis. Ele acena, ele tira o boné e acena como num cumprimento, não sei se para mim ou para qualquer outro dentro ou fora do trem. Mas isso não importa: estou certo de que, se pudesse voltar atrás e vê-lo melhor enquanto anda, poderia também ouvir o som de seus passos mancos batendo contra o cimento.

Estico as pernas, apóio os pés no banco da frente. Gosto de olhar minhas botas com estrelas cromadas de metal. Passo a mão pelas faces, a barba de três dias raspa a palma. Faz calor aqui dentro, neste vagão onde viajo quase sozinho, acompanhado apenas por três escandinavos com gravatas coloridas, falando uma língua cheia de consoantes. Tiro a jaqueta, depois a blusa de lã, fico apenas de camiseta. Não me importam mais aqueles limites de tolerância e etc. que desconheço nas terras estranhas.

Depois que o trem dobra a primeira curva e me sinto completamente à vontade, abro o envelope que trouxe comigo. Dentro, numa folha de papel arrancada de um bloco, igual àquela outra, K copiou algumas linhas que parecem versos de uma canção francesa que conheço muito bem. Tão bem e há tanto tempo que, enquanto leio, todo o resto me volta à memória, e cantarolo com facilidade:

Je me souvíens de vous
Et de vos yeux de jade,
Là-bas, à Marienbad,
Là-bas, à Marienbad.
Mais, où donc êtes-vous?
Avec vos yeux de jade,
Si loin de Marienbad,
Si loin de Marienbad.

Quero procurar entre as cassetes que guardo na mochila aquela que traz essa canção, que anda sempre comigo. Mas me detenho. Logo abaixo, na mesma folha de papel, K escreveu assim: “Aos caminhos, eu entrego o nosso encontro”.

Aos caminhos, repito, erguendo o envelope no ar. Como num brinde. Coloco a cassete no walkman, ajusto os fones nos ouvidos, vou cantando junto e sorrio. Arregaço as mangas da camiseta até os ombros. No meu braço esquerdo, acaricio a tatuagem de um leopardo dourado saltando sobre sete ondas verdes. Na face do pequeno envelope que aperto entre as mãos, como num sobrescrito para um único destinatário possível em seu endereço improvável, acaricio ao mesmo tempo o desenho de um leopardo igual, saltando sobre sete idênticas ondas verdes. Às minhas, às dele, às ondas espumantes dos sete mares. Como champanhe.

Afasto o rosto do vidro da janela do trem que corre pelo meio dos campos até conseguir ver minha imagem refletida. Embora as formas sejam vagas, trêmulas, mais diluídas ainda pela luz do crepúsculo que tomba, posso ver meus dois olhos flutuando no espaço. E apesar das sombras sinuosas que se dobram dentro deles, feito enguias num aquário pequeno demais, confirmo que são muito verdes. Como se fossem de jade.

Lá fora, o vôo de um grande pássaro quase totalmente branco, talvez uma gaivota, corta minha imagem refletida na vidraça.

Desvio o rosto, não devo me deter tempo demais em meus próprios olhos. Aumento o som da canção, olho para fora enquanto o trem dispara sobre os trilhos. Preciso ficar sempre atento. Ainda não anoiteceu, e alguns dizem que há castelos pelo caminho.


...........................................................Saint-Nazaire, dezembro de 92




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