.......................Para Sandra Laporta e Homero Paim Filho.
De vários fragmentos escritos em Londres em 1974 nasceu este diário, em parte verdadeiro, em parte ficção. Hesitei muito em publicá-lo — não parece 'pronto’ há dentro dele várias linhas que se cruzam sem continuidade, como se fosse feito de bolhas. De qualquer forma, talvez consiga documentar aquele tempo com alguma intensidade, e isso quem sabe pode ser uma espécie de qualidade?
27 de janeiro
Encontrei este caderno numa squatter-house em Victoria, ontem à noite. Foi enviado da Índia para Mr. John Schwyer Gummer, estava ainda dentro do envelope, mas o endereço na Índia manchou de umidade e mofo, só dá para ler “Calcutá”. Será um aviso? Sylvia diz que “a Índia está chamando”. Encontramos também um cara chamado Jack, especializado em squatters: e trambiques tipo instalações ilegais de luz, água e gás, que vai nos ajudar a descolar casa. Zé apelidou-o de “Jack, o Esquarteador”. Fala um cockney quase incompreensível. Espero que consiga mesmo a casa, a polícia nos deu um prazo até amanhã ao meio dia para sairmos da Bravington Road. Mas gostei do caderno. Reproduzo o desenho que Angie mandou da prisão. Fica sendo a epígrafe.
28 de janeiro
Hoje é dia de mudar de casa, de rua, de vida. As malas sufocam os corredores. Pelo chão restam plumas amassadas, restos de purpurina, frangalhos de echarpes indianas roubadas, pontas de cigarro (Players Number Six, o mais barato). Chico toca violão e canta London, London: no, nowhere to go. Poucos ainda sorriem e olham nos olhos. Hoje é dia, mais uma vez, de mudar de casa e de vida. Os olhos buscam signos, avisos, o coração resiste (até quando?) e o rosto se banha de estrelas dormidas de ontem, estrelas vagabundas encontradas pelas latas de lixo abundantes de London, London, Babylon City. Alguém pergunta: “O que é que se diz quando se está precisando morrer?” Eu não digo nada, é a minha resposta. Sento no chão e contemplo os escombros de Sodoma e Gomorra: brava Bravington Road, bye, bye. Amanhã é dia de nascer de novo. Para outra morte. Hoje é dia de esperar que o verde deste quase fim de inverno aqueça os parques gelados, as ruas vazias, as mentes exaustas de bad trips. Hoje é dia de não tentar compreender absolutamente nada, não lançar âncoras para o futuro. Estamos encalhados sobre estas malas e tapetes com nossos vinte anos de amor desperdiçado, longe do país que não nos quis. Mas amanhã será quem sabe o acerto de contas e Jesuzinho nos pagará todas as dívidas? Só que já não sei se ainda acredito nele. Tão completamente sento e espero que quase acredito ir além deste estar sentado no meio de escombros, here and now esperando Zé chegar com a noticia de que conseguiu a casa graças aos poderes de Jack na região de Victoria, Pimlico. Só espero, não penso nada. Tento me concentrar numa daquelas sensações antigas como alegria ou fé ou esperança. Mas só fico aqui parado, sem sentir nada, sem pedir nada, sem querer nada.
As crianças sujas e ranhentas da casa ao lado vêm perguntar se somos ciganos: are you gipsies? Sylvia mente que sim —from Yugoslavia, diz, agita no ar o pandeirinho com fitas e finge dançar e ler as linhas das mãos das crianças. Gosto tanto desse jeito que Sylvia tem de aliviar as coisas. Meu coração vai batendo devagar como uma borboleta suja sobre este jardim de trapos esgarçados em cujas malhas se prendem e se perdem os restos coloridos da vida que se leva. Vida? Bem, seja lá o que for isto que temos...
30 de janeiro
Metade dos moradores da Bravington Road nos traiu. Já haviam conseguido outra casa ali perto, em Ladbroke Grove, sem nos dizer nada. Felizmente a amizade de Zé com Jack, o Esquarteador, rendeu esta casa em Victoria. São cinco andares, contando o sótão onde fiquei, mas não há aquecimento e luz só no basement. Mas se não tivéssemos conseguido esta, ficaríamos na rua. Que amigos. E acompanharam todo nosso sofrimento, com as malas na calçada, na chuva, com medo da polícia. Disseram que Angie sai amanhã da prisão. E que irá para a casa de Ladbroke Grove, viver com Deborah.
31 de janeiro
(Carta do espaço sideral para não ser enviada a Angie)
“Vem, que eu quero te mostrar o papel cheio de rosas nas paredes do meu novo quarto, no último andar, de onde se pode ver pela pequena janela a torre de uma igreja. Quero te conduzir pela mão pelas escadas dos quatro andares com uma vela roxa iluminando o caminho para te mostrar as plumas roubadas no vaso de cerâmica, até abrir a janela para que entre o vento frio e empre um pouco sujo desta cidade. Vem, para subirmos no telhado e, lá do alto, nosso olhar consiga ultrapassar a torre da igreja para encontrar os horizontes que nunca se vêem, nesta cidade onde estamos presos e livres, soltos e amarrados. Quero controlar nervoso o relógio, mil vezes por minuto, antes de ouvir o ranger dos teus sapatos amarelos sobre a madeira dos degraus e então levantar brusco para abrir a porta, construindo no rosto um ar natural e vagamente ocupado, como se tivesse sido interrompido em meio a qualquer coisa não muito importante, mas que você me sentisse um pouco distante e tivesse pressa em me chamar outra vez para perto, para baixo ou para cima, não sei, e então você ensaiasse um gesto feito um toque para chegar mais perto, apenas para chegar mais perto, um pouco mais perto de mim. Então quero que você venha para deitar comigo no meu quarto novo, para ver minha paisagem além da janela, que agora é outra, quero inaugurar meu novo estar-dentro de- mim ao teu lado, aqui, sob este teto curvo e quebrado, entre estas paredes cobertas de guirlandas de rosas desbotadas. Vem para que eu possa acender incenso do Nepal, velas da Suécia na beira- da da janela, fechar charos de haxixe marroquino, abrir armários, mostrar fotografias, contar dos meus muitos ou poucos passados, futuros possíveis ou presentes impossíveis, dos meus muitos ou nenhuns eus. Vem para que eu possa recuperar sorrisos, pintar teu olho escuro com kol, salpicar tua cara com purpurina dourada, rezar, gritar, cantar, fazer qualquer coisa, desde que você venha, para que meu coração não permaneça esse poço frio sem lua refletida. Porque nada mais sou além de chamar você agora, porque tenho medo e estou sozinho, porque não tenho medo e não estou sozinho, porque não, porque sim, vem e me leva outra vez para aquele país distante onde as coisas eram tão reais e um pouco assustadoras dentro da sua ameaça constante, mas onde existe um verde imaginado, encantado, perdido. Vem, então, e me leva de volta para o lado de lá do oceano de onde viemos os dois.”
4 de fevereiro
Há tendas árabes pelos quartos, velas acesas nas escadas e a loucura arreganhando seus dentes de jade em cada canto da casa. Para não fazer parte disso, eu quis morrer, quis ir embora, quis perder para sempre a memória, estas memórias de sangue e rosas, drogas e arame farpado, príncipes e panos indianos, roubos e fadas, lixo e purpurina.
5 de fevereiro
Eu estava no alto da escada quando bateram à porta da rua. Comecei a descer enrolado no xale roxo das bad trips, não há aquecimento, faz muito frio fora dos quartos. Antes que eu descesse, empurraram a porta e entraram, estava aberta. Era um grupo grande, na frente deles Angie e Deborah, de mãos dadas. Eu continuei parado, eles vieram vindo pelo corredor. Mas talvez pelo ácido de ontem, ainda, ou pelo choque, não sei, quem sabe até pela fome — eu tinha a impressão de que quanto mais se aproximavam, mais se afastavam. Como se a cada passo que dessem o corredor aumentasse um pouco. Sem Angie, pensei, sem Angie não irei mais à Espanha. E não há nenhum sentido em estar aqui.
8 de fevereiro
Chorei três horas, depois dormi dois dias. Parece incrível ainda estar vivo quando já não se acredita em mais nada. Olhar, quando já não se acredita no que se vê. E não sentir dor nem medo porque atingiram seu limite. E não ter nada além deste amplo vazio que poderei preencher como quiser ou deixá-lo assim, sozinho em si mesmo, completo, total. Até a próxima morte, que qualquer nascimento pressagia.
11 de fevereiro
Segunda-feira, vida nova. Sylvia me acordou às quatro da manhã para irmos com Zé até Earl’s Court tentar conseguir trabalho na fábrica. Ninguém tinha dinheiro para café nem nada. Faz muito frio, os automóveis têm uma camada de gelo em cima. Compramos o ticket do metrô, essa hora é perigoso andar sem pagar, tem muita fiscalização. Eles passaram a roleta e me chamaram. Eu ia enfiar o ticket na máquina, mas foi então que percebi que não suportava mais. As pessoas me empurravam querendo passar, o trem chegou, Sylvia e Zé perguntavam do outro lado: “Você não vem? Você não vem?” Sem pensar, gritei: “Não, eu vou voltar para o Brasil”. Não planejei dizer aquilo, não planejei decidir nada. Quando vi, já tinha dito, já tinha decidido. No caminho de volta apanhei uma garrafa de leite numa porta. Um carro da polícia parou do lado. Meu passaporte está preso no Home Office, só tenho uma carta deles, toda rasgada. Quiseram saber mais, eu disse que era squatter ficaram excitadíssimos. Falei que era Brazilian e foi pior. O rato deu uma cuspida e rosnou: “Oh, Brazilian, South America? 1 know that kind o! people... “ Mandou que eu tirasse os tênis, as meias, me deixou completamente descalço no cimento gelado, me revistou inteiro. Fiquei puto e perguntei se ele não queria vir até aqui, disse que tínhamos montes de drogas, armas e bombas. Ligou um radinho, falou não sei com quem. Queria saber onde eu tinha comprado a garrafa de leite. Lembrei de um supermercado em Earl’s Court que fica aberto a noite toda, menti que tinha sido lá. Ele disse que àquela hora estava fechado. Garanti que não, sabia que não fecha nunca, no Natal costumávamos ir lá toda noite roubar macarrão. Ele pediu a nota de compra. Falei que tinha jogado fora. A humilhação durou quase uma hora. Enfim me soltou e mandou que saísse do país: “0ff’ You’re not ekome here!” Eu disse que estava justamente vindo pra casa escrever uma carta pedindo passagem de volta. Era verdade.
13 de fevereiro
Chico me deu uma chaleira daquelas que apitam quando a água está prestes a ferver, com um coador de metal dentro para o chá. E muito engraçada, redonda e solene, nós a batizamos de Rudolpha Elizabeth, the First. Tínhamos apanhado alguns móveis numa casa vizinha que parecia abandonada, a chaleira estava na cozinha. Estávamos tomando o primeiro Earl Grey preparado em Rudolpha quando chegaram o dono da tal casa, furioso, a polícia pedindo passaporte, cães pastores farejando tudo. Devolvemos os móveis, Rudolpha não. A polícia e os cães se foram, o homem não, parecia muito curioso com tudo. Tirou do bolso uma garrafinha de scotch e ficou bebendo e pedindo para que cantássemos Blue Moon. Cantamos várias vezes, ele cantava junto e sempre queria mais.
14 de fevereiro
Acho que foi efeito do homem que gostava de Blue Moon. Cantamos na rua em Piccadilly e Trafalgar Square. Deu vinte libras. Nosso maior sucesso é La Bamba, depois Preta, Pretinha, dos Novos Baianos. Toco maracas, Zé violão, Chico bongô e Sylvia o pandeirinho de fitas. La Baja dança e canta.
16 de fevereiro
Apareceu ópio, não sei de onde. Fumamos, alguns vomitaram. Fiquei deitado, imóvel. Tudo parecia perfeito. Mas qualquer movimento mais brusco ameaçava a perfeição, era preciso mover-se muito devagar. Acho que peguei o jeito, devo ter vocação para opiômano. Sem me mover, as mãos cruzadas no peito, havia às vezes como umas ondas de cetim envolvendo tudo, arabescos orientais no teto, nas paredes. Não era bom nem mau: era apenas perfeito, sem pensamentos nem aflições, eu poderia ficar para sempre ali naquela espécie não exatamente de morte, mas de vida suspensa. Mas depois inventaram de cheirar heroína e, claro, não resisti, cheirei também. Acabou a perfeição do ópio, veio a náusea. Vomitei loucamente e só, sem sentir nada além de mal-estar.
20 de fevereiro
Zé recebeu a indenização da fábrica, de quando tinha cortado a mão, pegou todo o dinheiro e, sem contar para ninguém, comprou uma passagem para o Brasil. Volta hoje, todo mundo está triste. De certa forma, era o melhor de nós. Sem Zé, não teremos mais fotos nem pão quente roubado de manhã cedo.
22 de fevereiro
Mona também se foi para Paris, vai tentar arrumar trabalho por lá. “Enchi desse miserê”, disse. Ficamos todos meio ofendidos. A casa inteira resfriada, O dinheiro vindo do Brasil dançou quase todo, ainda bem que eu tinha comprado bastante arroz integral. Com os palitos de madeira, mastigo trinta vezes cada porção. Dá para parar de pensar. Cacá me expulsou do quarto no sótão, Sylvia disse que posso ficar num canto do quarto dela, que é muito grande. Helô diz que Cacá anda transando com o demônio, fazendo trabalhos com espelhos. Jogou um Tarot para confirmar, mas não deu nada.
23 de fevereiro
Com tanta gente indo embora, ficou um quarto vazio em cima. Pensei em mudar para lá, mas me dou bem com Sylvia e vieram morar uns franceses heroinômanos, amigos não sei de quem. Andam sempre de preto, só saem à noite e não dá para saber ao certo quantos são. Não falam com ninguém, não fazem nenhum barulho, nunca. Parecem sombras.
25 de fevereiro
Essa morte constante das coisas é o que mais dói.
Não quero ser a carpideira do meu tempo. Mesmo encontrando todos os dias pelas escadas os devotos de Morfeu, com suas caras verdes, suas veias machucadas. Amanhã alguém nos cantará. Um rock de horror?
Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro.
Inverno aqui se escreve com F. E a gente entende por que todas aquelas histórias góticas, Frankenstein, Drácula, nasceram aqui. Na esquina, a igreja com o cemitério ao lado, cheio de lápides corroídas, é o perfeito cenário de um filme de horror. Roubamos do altar velas longas, amareladas, lindas.
Sem data
Deborah e Angie, me disseram, estão juntando dinheiro para ir para a Grécia.
Sem data
Grafitado num muro em St. Johns Wood: “Flower-power is died!”
Sem data
Escuta aqui, cara, tua dor não me importa. Estou cagando montes pras tuas memórias, pras tuas culpas, pras tuas saudades. As pessoas estão enlouquecendo, sendo presas, indo para o exílio, morrendo de overdose e você fica aí pelos cantos choramingando o seu amor perdido. Foda-se o seu amor perdido. Foda-se esse rei-ego absoluto. Foda-se a sua dor pessoal, esse seu ovo mesquinho e fechado.
Sem data
Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje?
Só quero ir indo junto com as coisas, ir sendo junto com elas, ao mesmo tempo, até um lugar que não sei onde fica, e que você até pode chamar de morte, mas eu chamo apenas de porto.
2 de março
Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo. Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, recuso todos os toques e .ignoro todas as tentativas de aproximação. Tenho vontade de gritar que esta dor é só minha, de pedir que me deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso.
A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que existe é a nossa incompreensão.
11 de março
Louco de speed, hash e solidão. Mudar, partir, ficar. Fomos despejados novamente, nos deram três dias de prazo. Vontade de ler Carlos Drummond de Andrade:
Tudo somado, devias precipitar-te — de vez — nas águas. Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
A casa agonizante. As pessoas andando pelo escuro, velas nas mãos, como fantasmas. Ou como crianças perdidas. Vontade de fugir para não ver esses — quantos? vinte, trinta? — olhos assustados pelas escadas, essas vozes baixas, esses sons ingleses, espanhóis, portugueses, franceses. Não ver, não ouvir, não tocar, não sentir.
O frio entra pelas frestas das portas e janelas. Tirados os panos das paredes e todos os disfarces, tudo fica feio, miserável. Alguém cagou dentro da banheira. Há montes de lixo pelas escadas e corredores. Fomos expulsos, não vale a pena arrumar mais nada, limpar mais nada. Esse lixo espalhado pela casa são os nossos sonhos usados, gastos, perdidos. Sinto ódio, não sei exatamente de quem ou de quê. O estômago vazio há mais de trinta horas, os cigarros filados aqui e ali, o dente quebrado em plena bad trip. Quero outra vez um quarto todo branco e um par de asas. Mesmo de papelão.
13 de março
Segundo dia na escola de belas-artes. Estou exausto. Keep still yourself— still like that— can you move your face?— turn lefl, please. Gentis e distantes, sou pouco mais que um objeto até o take a rest que recebo com alívio. Mr. Graham pediu que posasse das 18h às 21h, já tinha posado das 9h às 18h. Mas aceito, à noite pagam melhor. Precisávamos ir ver umas squatter-houses em Paddington, não vou aparecer nem tem telefone para avisar. Temos que mudar até amanhã. Tudo vai mal. Até arrumar este trabalho, Sylvia me pagou alguma comida. Só penso em voltar, lá não há liberdade, mas tem sol. E comida.
14 de março
A sensação é de estar afundando na areia movediça. No lodo.
O professor de desenho me vê com um livro de reproduções de Magritte na hora do almoço e diz que Magritte pintava sonhos, e que é impossível ter sonhos às seis da manhã numa estação de metrô. Me surpreendo arranjando energia para contestar. E digo no meu inglês péssimo que se a realidade nos alimenta com lixo, a mente pode nos alimentar com flores. Talvez porque eu mesmo tome metrô todo dia às seis da manhã para fazer todas as conexões e chegar a Aldgate, com Magritte embaixo do braço. Estamos sem casa. Saio daqui às quatro e encontro com Hermes na porta da casa velha de Victoria para irmos — onde? Minha aparência é péssima, a mente e o corpo exaustos. Mas existe uma tranqüilidade estranha. Não tenho mais nada a perder. Não sabia que o mundo era assim duro, assim sujo. Agora sei. Tenho apenas essa consciência, que só a loucura ou uma lavagem cerebral poderiam turvar. Sobrevivo todos os dias à morte de mim mesmo. Sinto como uma virilidade correndo no sangue.
15 de março
Sonhei. Há muito não sonhava. Havia uma festa. Era um lugar agradável, ao ar livre, um parque ou um jardim. Quando eu vinha embora Pablo pediu que esperasse por ele, mas eu estava interessado em outras coisas e não dei muita atenção. Era noite, eu vestia a capa preta marroquina. Na rua, um homem tentava voar numa máquina com asas, como aquelas engenhocas de Leonardo da Vinci. Havia um incêndio numa casa próxima, muitas pessoas corriam. Eu não estava interessado. Encontrei Deborah, empurrando um carrinho de bebê com um adulto dentro. Ela disse: “Vou embora para o Brasil. Angie vai ficar. Eu vou escrever de lá”. Eu continuei andando, preocupado com Pablo, se estaria me esperando ou não. Segurei as pontas da capa marroquina e comecei a correr como se quisesse voar. Era bom. As pessoas apontavam e diziam: “Look at him: he s tryng tofly!” De repente um policial me segurou pelo capuz e perguntou por que eu estava correndo. Respondi agressivo: “Just because 1 like it!” Ele sorriu e me soltou. Continuei correndo, tentando voar. No começo de uma colina parei e olhei para o céu. E vi a lua, em quarto-crescente, bem ao lado de Saturno. Era muito bonito. Fiquei maravilhado e pensei que coisas extraordinárias deveriam estar acontecendo com aquela conjunção. Nesse momento uma estrela caiu. Pensei em fazer um pedido, mas a estrela já sumira, e eu sabia que o pedido só valia enquanto ela estivesse visível. Mesmo assim, pedi: que Pablo ainda estivesse me esperando. Comecei a subir os degraus que levavam à nossa casa de Victoria, que estava no alto da colina. Os degraus de pedra eram irregulares e muito gastos, sobre eles havia várias velas, algumas acesas. Apanhei uma delas e entrei na casa. A sala estava cheia de móveis antigos, com aquela luz azulada da lua e de Saturno entrando pelas vidraças. De um andar superior vinha música, acho que era Angie, com Mick Jagger. Subi as escadas e encontrei um desconhecido sentado, lendo. Falei a ele sobre a lua e Saturno, mas não pareceu interessado. Então tomei-o pelo braço e levei-o até o terraço. Apontei o céu. Nesse momento algumas nuvens cobriram a lua, e ele não viu nada. Sacudiu os ombros, voltou a entrar, a sentar e a ler. Fiquei irritado, chamei-o de yourfiscking bastard! várias vezes, mas ele não me deu atenção. Não havia mais ninguém em casa. Pensei em Pablo, queria muito que estivesse me esperando para mostrar-lhe a lua e Saturno. Comecei a subir para meu quarto, procurando por ele. Acordei.
15 de março
Estou sozinho num flat recém-invadido. Um homem com uma arma queria nos mandar embora. Não fomos. São vários flats num prédio grande, há uma organização underground de squatters tentando invadi- los. Estão armados com pedaços de paus e pedras. Harrow Road, Westboume Park, uma zona velha e pobre, terrivelmente úmida. Atrás do flat há um canal de águas poluídas, vezenquando passam barcos. Chico saiu para comer, Hermes batalhar entrada para assistir Chick Corea no Rainbow, Cotrim foi lavar seus pratos no restaurante, Flávio desapareceu, Pablo e Sarah, também. Sylvia vai para um outro flat aqui no mesmo prédio. Rô, Helô e Little Sô foram parar numa squatter em Sutherland Avenue, aqui perto. Uma barra. Junkies pesados, heroína, morfina, polícia rondando, paredes quebradas, sujeira, miséria. E as três idiotas fascinadas com o horror, falando sem parar em Janis Joplin, Jimi Hendrix, um Morrison. Reconstituí o dente quebrado num dentista de Earl’s Court, passei na Biba depois, não roubei nada e vim “para casa”. Comprei maçãs, tenho algum dinheiro da escola. Acho que vou ao cinema. A partir das oito, no Classic de Nothing 11h11 Gate tem uma sessão quádrupla sensacional: Performance, Five Easy Pieces, Easy Rider e Drive, He Said. Acho que o dinheiro dá até para comer um sanduíche no intervalo. Luxo!
Aqui é muito feio. Nem aquecimento nem luz, como sempre, mas parece que é possível fazer uma ligação elétrica clandestina. Há uns irlandeses ótimos na parte do prédio onde está Sylvia, sabem fazer todas essas coisas. Hermes diz que devem ser terroristas do IRA, possivelmente são mesmo. Tem uma banheira na cozinha, está imunda. Estou sujo, barbudo, cansado. Sonho com banheiras limpas, shampoos, sabonetes, toalhas felpudas, lençóis brancos, café. Mais nada. Aqueles junkíes de Sutherland não me saem da cabeça. As peles, meu Deus, as peles gastas. Estarei assim?
19 de março
“Querida mãe:
A vida aqui anda agitada. Precisamos mudar de novo. Agora estou dividindo um apartamento com Hermes (acho que a senhora lembra dele, era o meu amigo professor de inglês do Yázigi). Fica numa zona antiga de Londres, tem uma igrejinha do século XVI perto e um riozinho que corre atrás do bloco de apartamentos. Não mando o endereço porque ainda não é certo que fiquemos aqui por muito tempo. Se ficarmos, talvez em seguida a gente possa mandar instalar um telefone, até poderíamos bater um papo, quem sabe?
Continua fazendo frio, mas agora tem um pouco mais de sol e a primavera começa depois de amanhã. Semana passada nevou um pouco. Foi lindo. Estou realmente bem. Não sei por que suas cartas vêm sempre tão cheias de medos e suspeitas. Hoje está soprando um vento, não lembro o nome, que os ingleses dizem vir do País de Gales. Todo mundo escancara portas e janelas para que o vento leve embora os maus-espíritos do inverno. É um vento mágico, dizem. Beijos para o pai e para todos.”
20 de março
Na Sir John Cass School of Art, posando desde nove da manhã. Hora do almoço, estou com muita fome e não tenho um maldito shilling. Preciso ficar até as 18h, é a hora que eles me pagam. Caminhei um pouco na rua para ver se esquecia a fome, mas faz muito frio e o gelo entra pelo pano dos tênis. Enfastiada, Mrs. Pountney come uma maçã ao meu lado, tem um sanduíche no colo. Sorri, não oferece nada. Sorrio também. Minha vingança é que é uma péssima pintora.
25 de março
Depois de muito tempo, encontro Angie em Portobelio no sábado. Nada a dizer entre nós. Está gasto, aparência suja e cansada. Sacaneou várias pessoas — pegou grana para comprar hash, não comprou nada nem devolveu a grana, inventou várias histórias, sujou com todos. Quando chega, saem de perto. Não consegui ver mais nele aquele menino recém-chegado de Firenze, que apareceu na nossa antiga casa de Olympia com uns olhos grandes e limpos, parecido com Rita Hayworth. As prisões, os roubos, as bad trips, os trabalhos duros, as humilhações e as fomes mataram aquele menino. Sobrou o trambiqueiro, o transador. Vapor barato. Há muitos assim. E ainda falam de paz-&-amor, boas-vibrações & alto-astral...
5 de abril
Pablo foi embora para Barcelona. Não conseguiu o passaporte falso, vai ter mesmo que enfrentar o serviço militar. Dei a ele a pulseira marroquina, provavelmente não vamos nos ver nunca mais. Mas não vou esquecê-lo, repetindo horas cada vez que tomava ácido “No es verdad... No es posible... No lo puedo creer..”
10 de abril
Duas cartas ao mesmo tempo, escritas quase no mesmo dia. Uma de Anita, a garota sueca que vendia sorvete ano passado no quiosque em Estocolmo, perguntando se não vou trabalhar lá este verão. A outra é de Clara, no Rio, dizendo que sim, que eu vá, que continua sempre a minha espera. E se eu mudasse meu destino num passe de mágica? Voltar a Estocolmo, casar com Anita, ganhar passaporte sueco, auxílio desemprego do governo, viajar para a Índia, Goa, Nepal, Katmandu. Não sei se conseguiria. Estranho, mas é sempre como se houvesse por trás do livre arbítrio um roteiro fixo, predeterminado, que não pode ser violado. Um roteiro interno que nos diz exatamente o que devemos ou não fazer, e obedecemos sempre, mesmo que nos empurre para aquilo que será aparentemente o pior. O “pior” às vezes é justamente o que deveria ser feito?
16 de abril
Quatro freaks no Holland Park, ao entardecer, embaixo de uma árvore toda vermelha, tocando flauta e cítara. Parecem uma pintura. Sentamos embaixo de outra árvore em frente, Hermes e eu, e ficamos olhando como se fôssemos nós mesmos num espelho, passados a limpo. Pareciam eternos. Sorriram para nós, mas de repente tive consciência do saco de papel todo amassado do supermercado de Earl’s Court nas minhas mãos suadas, me voltou a dor nas costas de posar imóvel para escultura. Levantamos, atravessamos o parque e de repente estávamos em Nothing Hili Gate e a cidade era confusa e suja e barulhenta.
20 de abril
Fui rever Midnight Cowboy depois da escola. Já havia visto no Brasil, mas naquela época era pura ficção. Agora não, parecia minha própria vida, só um pouco piorada. Fumei um e fiquei dando voltas no Hyde Park sem ter a menor idéia de onde estava, em que cidade, que país, só sabia que era num planeta sujo.
29 de abril
Na estação de Charing Cross um desconhecido todo vestido de couro negro me diz que quando o viajante interplanetário se aproxima de Saturno imediatamente sente a mudança das vibrações. Que a forma dos habitantes de Saturno darem boas-vindas é fazer amor com os visitantes. Disse que vinha de Saturno e me convidou a fazer amor com ele. Perguntou: “Posso atravessar as portas de seu templo?” Tá querendo me enrabar, traduzi. E caí fora. A loucura brilhava nos olhos dele. Bem, de qualquer forma foi a cantada mais cósmica que já recebi em toda a minha vida.
7 de maio
Pelo menos estou vivo. Em movimento, andando por aí, perdendo ou ganhando, levando porrada, passando fome, tentando amar. “De cada luta ou repouso me levantarei forte como um cavalo jovem”, onde foi que li isso? Sei: Clarice Lispector, meu Deus, foi em Perto do Coração Selvagem.
8 de maio
Daniel, o espanhol anarquista e escultor da Barrow Hili Studio, onde comecei a posar também, fala muito no poeta León Felipe. “Tenía cojones “, repete. Hoje me emprestou a Antologia Rota e copiei:
El mundo es una siot machine con una raflura en la frente del cielo, sobre ia cabecera dei mar (Se há parado la máquina se ha parado la cuerda.) El mundo es algo que funciona como ei piano mecánico de un bar (Se ha acabado la cuerda se há parado la máquina.)
Marinero, tu tienes una estrelia en ei bolsillo...
Drop a star!
Enciende con tu mano ia nueva música dei mundo, la canción marinera de maíiana, ei hymno venidero de los hombres...
Drop a star! Echa a andar otra vez en este barco vazio, marinero. Tu tienes una estrelia en ei bolsiilo...
Una estrelia nueva, de paiadío, de fósforo, de imãn.
13 de maio
Tentei durante quase uma semana, não consegui trabalho na fábrica. Isso quer dizer que voltarei ao Brasil sem dinheiro. Talvez nem possa passar no Rio para ver Clara. O flat está uma bagunça. Hermes e quase todos os outros vão para Estocolmo trabalhar durante o verão, ninguém mais se importa com nada. Sábado vamos para Swiss Cottage, para a casa de Charles, de lá parto para o Brasil.
16 de maio
Passamos a noite na delegacia de Earl’s Court.
Motivo: Hermes e eu fomos presos roubando uma biografia recém-lançada de Virginia Woolf escrita por Quentin Bel I, o filho de Vanessa. Ficamos rondando, eram dois volumes cheios de fotos, eu estava com a capa marroquina, Hermes com um casaco enorme. Enfim apanhamos um volume cada um e saímos para a High Street Kensington. Já estávamos quase no parque quando o cara da livraria veio correndo atrás. Chamaram a polícia, Hermes nervosíssimo, achando que seríamos deportados. Brinquei, dizendo que de agora em diante Virginia Woolf seria nossa padroeira, nossa fada-madrinha. E que anay era um roubo muito digno. Dormimos cada um em uma cela e de manhã cedo, sem café nem nada, nos levaram num carro cheio de pequenas celas individuais para Shepherd’s Bush, para apanhar mais presos. Conversei um pouco com um suíço ladrão de jóias, elegantíssimo, bigodes louros retorcidos para cima, a cara de Helmut Berger. Havia mais duas indianas pegas roubando roupas íntimas na Biba e umfreak holandês com uma mala enorme cheia de tijolos de haxixe. Todos odeiam a Inglaterra. Roubaram o mundo inteiro, diz uma das indianas, e agora não querem ser roubados? Fomos julgados na corte de Hammersmith, o mesmo lugar onde julgaram Angie das outras vezes. O juiz era uma mulher, cara muito fechada. Dissemos que éramos estudantes de literatura e não tínhamos grana para comprar livros. Não adiantou nada: trinta libras de multa para cada um. Merda, todo o dinheiro que eu pretendia levar para o Brasil. Hermes foi trabalhar arrasado. Vim para casa, deitei no meio do kaos com aquele xale roxo de fazer bad trip e fiquei esperando visitas. Essas notícias correm depressa, todo mundo já sabia, e também todo mundo já foi preso. Chico trouxe o violão e cantou, Helô jogou um Tarot para mim, mas sempre sai a Torre Fulminada pairando, ela fica insistindo que pode ter um bom significado, mas sei que é sempre péssimo. Sylvia trouxe um bolo e um maço de Players Number Six, vai depois de amanhã para Estocolmo. Suavíssimos, todos. Imagine se eu ia perder uma oportunidade rara dessas de ser bem-tratado.
22 de maio
Eu me fui, eu me sou, eu me serei em cada um dos girassóis do reino a ser feito. E as coisas terão que ser claras. Releio o que escrevi neste caderno, desde janeiro, revejo o que vivi. Tudo me conduziu para este here and now. Tudo terá que ser claro. How can I tell you?
25 de maio
Cartão de Estocolmo, Sylvia diz: “Índia is the way”. No fim do verão, há sempre caronas saindo de Amsterdam. Vai-se pelo Nepal, pela Armênia. O caminho terrestre para as Indias. Todo mundo está indo para lá, Sylvia garante. Vacilo, fico pensando: e se eu mudasse tudo e fosse também? Primeiro Estocolmo — tak, tak, inte pratte svenska, venta pomei —, um quarto em Kungshambra ou Freskati. Depois Katmandu em vez de Copacabana, budismo tibetano em vez de escola de samba.
26 de maio
Hermes me dá os poemas de Sylvia Plath. São febris, obsessivos, mórbidos, mas não consigo parar de ler. Fico tentando traduzir Fever 103, mas é difícil, já nos três primeiros versos tenho um problema:
Pure? What does it mean? The tongues ofhell Are duli, duil as the triple (...)
Os dois primeiros versos, tudo bem. E “labaredas” acho que fica melhor que “línguas”, é evidente que ela está se referindo ao fogo dos infernos. Mas como traduzir duli? Opacas, sujas, gordurosas? Sylvia Plath é sempre um mal-estar.
27 de maio
Hermes também partiu para Estocolmo, me deixou alguns cleanings. Com Charles, vim para um fim de semana em Chichester, na casa de Billy e Mike. É bonito aqui. A cozinha branca, o bule vermelho sobre a mesa de madeira, a janela aberta para o jardim cheio de rosas e trepadeiras, um dia de primavera nítido. As vozes de Charles, Billy e Mike lá fora, combinando assistirem Diana Dors no festival de teatro, à noite ela faz Seis Personagens em Busca de um Autor de Pirandello. Quando criança, eu colecionava fotos dela, de Jayne Mansfield e Mamie van Doren, todas as imitadoras de Marilyn Monroe. Agora, ela é uma senhora de idade, virou artista séria, a dois passos daqui. A vida é mesmo doida. Talvez eu já não esteja completamente aqui. Nem lá, seja onde for. Antes de viajar, fico pairando. Talvez a alma parta antes, e não saiba direito para onde ir sem o corpo. Na morte deve ser parecido.
Billy pergunta de Angie. Foi deportado, digo — é verdade, alguém me contou há alguns dias, não lembro quem. Sei que Deborah ficou em Londres, me disseram que estava trabalhando como scort-girl. Charles seca a Henna dos cabelos ao sol. Há tanto sol hoje, quase tanto quanto no Brasil todos os dias. Me revisito no inverno, subindo as escadas sujas no escuro, uma vela acesa na mão, sentindo fome, o dente quebrado. Quero esquecer completamente. E sei que nunca esquecerei.
28 de maio
Fui fazer meu último cleaning. Diálogo com Mrs. Simmons:
— What about rnyfears?
— Well, I neverpayfears to Hermes.
— Sorry, but I’m not Hermes. I came from Chichester today only to clean your house.
Fui ao banheiro lavar as mãos. Tinha que me dar dez pences. Uma inglesona redonda, rosada, busto enorme, corada, aquele ar de gentileza excessiva que esconde sempre o desprezo. Que povo. Quando saio do banheiro, ela me espera na escada com uma moeda de cinco pences na pata gorducha.
— That’s your money.
Fiquei puto, berrei:
— I don’t want it! I don’t need yourfucking money! I hate all the English ladies!
Fui saindo. Ela atrás, imperturbável, monstruosa:
— Please, could you take the rabbish to the basement?
— No! I can not! I’m going to my country!
29 de maio (no avião)
Problemas em Heathrow na hora de pesar a bagagem. Teria que pagar umas trinta libras de excesso, e eu só tinha cinco. Enfiei uns jeans dentro das mangas de um casaco, distribui outras coisas pelos bolsos, mas tive que deixar muita coisa com Charles. Ficaram todos os panos indianos, os livros de Tarot, Macrobiótica, Alquimia, Astrologia, o vaso chinês, as duas bonecas, a bailarina e a camponesa, a chaleira Rudolpha Elizabeth. E os diários todos da Espanha, França, Suécia, Holanda, os primeiros tempos de Londres. Fiquei pensando se não terei deixado o essencial — e o essencial eram as coisas que coloriram a minha vida nesses dois anos sem cor.
Vejo a Inglaterra de cima. Não sinto nada. Vazio. Agora tudo é passado. Meu presente é este vôo onde nada acontecerá. E o futuro branco. Londres fica para trás. Ainda está claro, dá para ver o canal da Mancha, a ilha de Wight ao longe. Fome. Vontade de conversar com alguém, mas perto só há uns italianos de ternos escuros falando muito rápido, parecem mafiosos. E devem ser.
Canapés e coca-cola. A aeromoça da Aerolineas Argentinas fala espanhol com os outros e inglês comigo. Deve ser o brinco na orelha esquerda, roubado do antiquário de Chichester, a bolsa indiana roubada na Biba, os óculos roubados em Portobeilo. E tudo roubado, carifio, puedes habiar espanhol.
Orly. Afinal, não voltei a Paris. Mas haverá tempo. Um crescente enorme no céu. Faço as contas, deve estar em Virgem. Reorganizar tudo no Brasil? Sobe um time inteiro de futebol ou algo assim, franceses. Cutucam-se, me olham, me filmam. Minha aparência destoa completamente de todo o resto. Começo a desconfiar que London, London, Babylon City é um lugar very, very special.
Peço à aeromoça algumas revistas ou jornais brasileiros. Ela me traz uma Manchete. Misses, futebol, parece horrível. Então sinto medo. Por trás do cartão postal imaginado, sol e palmeiras, há um jeito brasileiro que me aterroriza, O deboche, a grossura, o preconceito.
Saímos de Madri, Barajas. Dei uma voltinha pelo aeroporto. Uma caretice absolutamente inacreditável, é como se tivesse entrado numa máquina do tempo. Devo ter ficado tão acostumado às roupas e ao feeling londrino que simplesmente esqueci que, além da ilha, existem outras coisas. A memória é sempre muito sacana.
De dentro do caderno cai uma folha dobrada. É um poema que Clara encontrou, copiou e mandou do Rio, sobre Ícaro. Diz que é de Darwin, acho estranho. Mas leio outra vez e copio para não pensar:
Com a cera derretendo e oflo solto caiu o desgraçado Ícaro, sob inertes asas; direto através do céu medonho, com os membros torcidos e os cabelos em desalinho, sua plumagem espalhada dançou sobre a onda e, chorando-o, as nereidas ornaram sua sepultura aquática. Sobre seu pálido corpo deitaram suas flores de pérolas marinhas e espalharam musgo vermelho no seu leito de mármore e em suas torres de coral repicaram os sinos que ressoaram sobre o vasto oceano esse dobre.
Sobrevoamos o Atlântico, a grande asa sob minha janela. Escrevo, escrevo, O ronco dos motores, as narinas cheias de casquinhas de sangue endurecido. Penso em Sylvia, em Estocolmo, irá mesmo para a Índia? E eu não fui, agora é tarde. Tenho medo, desde Londres as palmas de minhas mãos estão encharcadas de suor. Meu Deus, não sou muito forte, não tenho muito além de uma certa fé — não sei se em mim, se numa coisa que chamaria de justiça-cósmica ou a-coerência-final-detodas- as-coisas. Preciso agora da tua mão sobre a minha cabeça. Que eu não perca a capacidade de amar, de ver, de sentir. Que eu continue alerta. Que, se necessário, eu possa ter novamente o impulso do vôo no momento exato. Que eu não me perca, que eu não me fira, que não me firam, que eu não fira ninguém. Livra-me dos poços e dos becos de mim, Senhor. Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre. Sinto uma dor enorme de não ser dois e não poder assim um ter partido, outro ter ficado com todas aquelas pessoas. Volta a pergunta maldita: terei realmente escolhido certo? E o que é o “certo”? Digo que todo caminho é caminho, porque nenhum caminho é caminho. Que aqui ou lá — London, London, Estocolmo, Índia — eu continuaria sempre perguntando. Minhas mãos transpiram, transpiram. O nariz seco por dentro. Não quero escrever mais nada hoje. Um casal transa em pé no corredor, sobre o Atlântico. O italiano a meu lado dorme com a mão no pau o tempo todo, será um costume latino?
A lua já se foi. As Plêiades, como dizia Safo, já foram se deitar. E eu vim me embora, meu Deus, eu vim-me embora.
27 de janeiro
Encontrei este caderno numa squatter-house em Victoria, ontem à noite. Foi enviado da Índia para Mr. John Schwyer Gummer, estava ainda dentro do envelope, mas o endereço na Índia manchou de umidade e mofo, só dá para ler “Calcutá”. Será um aviso? Sylvia diz que “a Índia está chamando”. Encontramos também um cara chamado Jack, especializado em squatters: e trambiques tipo instalações ilegais de luz, água e gás, que vai nos ajudar a descolar casa. Zé apelidou-o de “Jack, o Esquarteador”. Fala um cockney quase incompreensível. Espero que consiga mesmo a casa, a polícia nos deu um prazo até amanhã ao meio dia para sairmos da Bravington Road. Mas gostei do caderno. Reproduzo o desenho que Angie mandou da prisão. Fica sendo a epígrafe.
28 de janeiro
Hoje é dia de mudar de casa, de rua, de vida. As malas sufocam os corredores. Pelo chão restam plumas amassadas, restos de purpurina, frangalhos de echarpes indianas roubadas, pontas de cigarro (Players Number Six, o mais barato). Chico toca violão e canta London, London: no, nowhere to go. Poucos ainda sorriem e olham nos olhos. Hoje é dia, mais uma vez, de mudar de casa e de vida. Os olhos buscam signos, avisos, o coração resiste (até quando?) e o rosto se banha de estrelas dormidas de ontem, estrelas vagabundas encontradas pelas latas de lixo abundantes de London, London, Babylon City. Alguém pergunta: “O que é que se diz quando se está precisando morrer?” Eu não digo nada, é a minha resposta. Sento no chão e contemplo os escombros de Sodoma e Gomorra: brava Bravington Road, bye, bye. Amanhã é dia de nascer de novo. Para outra morte. Hoje é dia de esperar que o verde deste quase fim de inverno aqueça os parques gelados, as ruas vazias, as mentes exaustas de bad trips. Hoje é dia de não tentar compreender absolutamente nada, não lançar âncoras para o futuro. Estamos encalhados sobre estas malas e tapetes com nossos vinte anos de amor desperdiçado, longe do país que não nos quis. Mas amanhã será quem sabe o acerto de contas e Jesuzinho nos pagará todas as dívidas? Só que já não sei se ainda acredito nele. Tão completamente sento e espero que quase acredito ir além deste estar sentado no meio de escombros, here and now esperando Zé chegar com a noticia de que conseguiu a casa graças aos poderes de Jack na região de Victoria, Pimlico. Só espero, não penso nada. Tento me concentrar numa daquelas sensações antigas como alegria ou fé ou esperança. Mas só fico aqui parado, sem sentir nada, sem pedir nada, sem querer nada.
As crianças sujas e ranhentas da casa ao lado vêm perguntar se somos ciganos: are you gipsies? Sylvia mente que sim —from Yugoslavia, diz, agita no ar o pandeirinho com fitas e finge dançar e ler as linhas das mãos das crianças. Gosto tanto desse jeito que Sylvia tem de aliviar as coisas. Meu coração vai batendo devagar como uma borboleta suja sobre este jardim de trapos esgarçados em cujas malhas se prendem e se perdem os restos coloridos da vida que se leva. Vida? Bem, seja lá o que for isto que temos...
30 de janeiro
Metade dos moradores da Bravington Road nos traiu. Já haviam conseguido outra casa ali perto, em Ladbroke Grove, sem nos dizer nada. Felizmente a amizade de Zé com Jack, o Esquarteador, rendeu esta casa em Victoria. São cinco andares, contando o sótão onde fiquei, mas não há aquecimento e luz só no basement. Mas se não tivéssemos conseguido esta, ficaríamos na rua. Que amigos. E acompanharam todo nosso sofrimento, com as malas na calçada, na chuva, com medo da polícia. Disseram que Angie sai amanhã da prisão. E que irá para a casa de Ladbroke Grove, viver com Deborah.
31 de janeiro
(Carta do espaço sideral para não ser enviada a Angie)
“Vem, que eu quero te mostrar o papel cheio de rosas nas paredes do meu novo quarto, no último andar, de onde se pode ver pela pequena janela a torre de uma igreja. Quero te conduzir pela mão pelas escadas dos quatro andares com uma vela roxa iluminando o caminho para te mostrar as plumas roubadas no vaso de cerâmica, até abrir a janela para que entre o vento frio e empre um pouco sujo desta cidade. Vem, para subirmos no telhado e, lá do alto, nosso olhar consiga ultrapassar a torre da igreja para encontrar os horizontes que nunca se vêem, nesta cidade onde estamos presos e livres, soltos e amarrados. Quero controlar nervoso o relógio, mil vezes por minuto, antes de ouvir o ranger dos teus sapatos amarelos sobre a madeira dos degraus e então levantar brusco para abrir a porta, construindo no rosto um ar natural e vagamente ocupado, como se tivesse sido interrompido em meio a qualquer coisa não muito importante, mas que você me sentisse um pouco distante e tivesse pressa em me chamar outra vez para perto, para baixo ou para cima, não sei, e então você ensaiasse um gesto feito um toque para chegar mais perto, apenas para chegar mais perto, um pouco mais perto de mim. Então quero que você venha para deitar comigo no meu quarto novo, para ver minha paisagem além da janela, que agora é outra, quero inaugurar meu novo estar-dentro de- mim ao teu lado, aqui, sob este teto curvo e quebrado, entre estas paredes cobertas de guirlandas de rosas desbotadas. Vem para que eu possa acender incenso do Nepal, velas da Suécia na beira- da da janela, fechar charos de haxixe marroquino, abrir armários, mostrar fotografias, contar dos meus muitos ou poucos passados, futuros possíveis ou presentes impossíveis, dos meus muitos ou nenhuns eus. Vem para que eu possa recuperar sorrisos, pintar teu olho escuro com kol, salpicar tua cara com purpurina dourada, rezar, gritar, cantar, fazer qualquer coisa, desde que você venha, para que meu coração não permaneça esse poço frio sem lua refletida. Porque nada mais sou além de chamar você agora, porque tenho medo e estou sozinho, porque não tenho medo e não estou sozinho, porque não, porque sim, vem e me leva outra vez para aquele país distante onde as coisas eram tão reais e um pouco assustadoras dentro da sua ameaça constante, mas onde existe um verde imaginado, encantado, perdido. Vem, então, e me leva de volta para o lado de lá do oceano de onde viemos os dois.”
4 de fevereiro
Há tendas árabes pelos quartos, velas acesas nas escadas e a loucura arreganhando seus dentes de jade em cada canto da casa. Para não fazer parte disso, eu quis morrer, quis ir embora, quis perder para sempre a memória, estas memórias de sangue e rosas, drogas e arame farpado, príncipes e panos indianos, roubos e fadas, lixo e purpurina.
5 de fevereiro
Eu estava no alto da escada quando bateram à porta da rua. Comecei a descer enrolado no xale roxo das bad trips, não há aquecimento, faz muito frio fora dos quartos. Antes que eu descesse, empurraram a porta e entraram, estava aberta. Era um grupo grande, na frente deles Angie e Deborah, de mãos dadas. Eu continuei parado, eles vieram vindo pelo corredor. Mas talvez pelo ácido de ontem, ainda, ou pelo choque, não sei, quem sabe até pela fome — eu tinha a impressão de que quanto mais se aproximavam, mais se afastavam. Como se a cada passo que dessem o corredor aumentasse um pouco. Sem Angie, pensei, sem Angie não irei mais à Espanha. E não há nenhum sentido em estar aqui.
8 de fevereiro
Chorei três horas, depois dormi dois dias. Parece incrível ainda estar vivo quando já não se acredita em mais nada. Olhar, quando já não se acredita no que se vê. E não sentir dor nem medo porque atingiram seu limite. E não ter nada além deste amplo vazio que poderei preencher como quiser ou deixá-lo assim, sozinho em si mesmo, completo, total. Até a próxima morte, que qualquer nascimento pressagia.
11 de fevereiro
Segunda-feira, vida nova. Sylvia me acordou às quatro da manhã para irmos com Zé até Earl’s Court tentar conseguir trabalho na fábrica. Ninguém tinha dinheiro para café nem nada. Faz muito frio, os automóveis têm uma camada de gelo em cima. Compramos o ticket do metrô, essa hora é perigoso andar sem pagar, tem muita fiscalização. Eles passaram a roleta e me chamaram. Eu ia enfiar o ticket na máquina, mas foi então que percebi que não suportava mais. As pessoas me empurravam querendo passar, o trem chegou, Sylvia e Zé perguntavam do outro lado: “Você não vem? Você não vem?” Sem pensar, gritei: “Não, eu vou voltar para o Brasil”. Não planejei dizer aquilo, não planejei decidir nada. Quando vi, já tinha dito, já tinha decidido. No caminho de volta apanhei uma garrafa de leite numa porta. Um carro da polícia parou do lado. Meu passaporte está preso no Home Office, só tenho uma carta deles, toda rasgada. Quiseram saber mais, eu disse que era squatter ficaram excitadíssimos. Falei que era Brazilian e foi pior. O rato deu uma cuspida e rosnou: “Oh, Brazilian, South America? 1 know that kind o! people... “ Mandou que eu tirasse os tênis, as meias, me deixou completamente descalço no cimento gelado, me revistou inteiro. Fiquei puto e perguntei se ele não queria vir até aqui, disse que tínhamos montes de drogas, armas e bombas. Ligou um radinho, falou não sei com quem. Queria saber onde eu tinha comprado a garrafa de leite. Lembrei de um supermercado em Earl’s Court que fica aberto a noite toda, menti que tinha sido lá. Ele disse que àquela hora estava fechado. Garanti que não, sabia que não fecha nunca, no Natal costumávamos ir lá toda noite roubar macarrão. Ele pediu a nota de compra. Falei que tinha jogado fora. A humilhação durou quase uma hora. Enfim me soltou e mandou que saísse do país: “0ff’ You’re not ekome here!” Eu disse que estava justamente vindo pra casa escrever uma carta pedindo passagem de volta. Era verdade.
13 de fevereiro
Chico me deu uma chaleira daquelas que apitam quando a água está prestes a ferver, com um coador de metal dentro para o chá. E muito engraçada, redonda e solene, nós a batizamos de Rudolpha Elizabeth, the First. Tínhamos apanhado alguns móveis numa casa vizinha que parecia abandonada, a chaleira estava na cozinha. Estávamos tomando o primeiro Earl Grey preparado em Rudolpha quando chegaram o dono da tal casa, furioso, a polícia pedindo passaporte, cães pastores farejando tudo. Devolvemos os móveis, Rudolpha não. A polícia e os cães se foram, o homem não, parecia muito curioso com tudo. Tirou do bolso uma garrafinha de scotch e ficou bebendo e pedindo para que cantássemos Blue Moon. Cantamos várias vezes, ele cantava junto e sempre queria mais.
14 de fevereiro
Acho que foi efeito do homem que gostava de Blue Moon. Cantamos na rua em Piccadilly e Trafalgar Square. Deu vinte libras. Nosso maior sucesso é La Bamba, depois Preta, Pretinha, dos Novos Baianos. Toco maracas, Zé violão, Chico bongô e Sylvia o pandeirinho de fitas. La Baja dança e canta.
16 de fevereiro
Apareceu ópio, não sei de onde. Fumamos, alguns vomitaram. Fiquei deitado, imóvel. Tudo parecia perfeito. Mas qualquer movimento mais brusco ameaçava a perfeição, era preciso mover-se muito devagar. Acho que peguei o jeito, devo ter vocação para opiômano. Sem me mover, as mãos cruzadas no peito, havia às vezes como umas ondas de cetim envolvendo tudo, arabescos orientais no teto, nas paredes. Não era bom nem mau: era apenas perfeito, sem pensamentos nem aflições, eu poderia ficar para sempre ali naquela espécie não exatamente de morte, mas de vida suspensa. Mas depois inventaram de cheirar heroína e, claro, não resisti, cheirei também. Acabou a perfeição do ópio, veio a náusea. Vomitei loucamente e só, sem sentir nada além de mal-estar.
20 de fevereiro
Zé recebeu a indenização da fábrica, de quando tinha cortado a mão, pegou todo o dinheiro e, sem contar para ninguém, comprou uma passagem para o Brasil. Volta hoje, todo mundo está triste. De certa forma, era o melhor de nós. Sem Zé, não teremos mais fotos nem pão quente roubado de manhã cedo.
22 de fevereiro
Mona também se foi para Paris, vai tentar arrumar trabalho por lá. “Enchi desse miserê”, disse. Ficamos todos meio ofendidos. A casa inteira resfriada, O dinheiro vindo do Brasil dançou quase todo, ainda bem que eu tinha comprado bastante arroz integral. Com os palitos de madeira, mastigo trinta vezes cada porção. Dá para parar de pensar. Cacá me expulsou do quarto no sótão, Sylvia disse que posso ficar num canto do quarto dela, que é muito grande. Helô diz que Cacá anda transando com o demônio, fazendo trabalhos com espelhos. Jogou um Tarot para confirmar, mas não deu nada.
23 de fevereiro
Com tanta gente indo embora, ficou um quarto vazio em cima. Pensei em mudar para lá, mas me dou bem com Sylvia e vieram morar uns franceses heroinômanos, amigos não sei de quem. Andam sempre de preto, só saem à noite e não dá para saber ao certo quantos são. Não falam com ninguém, não fazem nenhum barulho, nunca. Parecem sombras.
25 de fevereiro
Essa morte constante das coisas é o que mais dói.
Não quero ser a carpideira do meu tempo. Mesmo encontrando todos os dias pelas escadas os devotos de Morfeu, com suas caras verdes, suas veias machucadas. Amanhã alguém nos cantará. Um rock de horror?
Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro.
Inverno aqui se escreve com F. E a gente entende por que todas aquelas histórias góticas, Frankenstein, Drácula, nasceram aqui. Na esquina, a igreja com o cemitério ao lado, cheio de lápides corroídas, é o perfeito cenário de um filme de horror. Roubamos do altar velas longas, amareladas, lindas.
Sem data
Deborah e Angie, me disseram, estão juntando dinheiro para ir para a Grécia.
Sem data
Grafitado num muro em St. Johns Wood: “Flower-power is died!”
Sem data
Escuta aqui, cara, tua dor não me importa. Estou cagando montes pras tuas memórias, pras tuas culpas, pras tuas saudades. As pessoas estão enlouquecendo, sendo presas, indo para o exílio, morrendo de overdose e você fica aí pelos cantos choramingando o seu amor perdido. Foda-se o seu amor perdido. Foda-se esse rei-ego absoluto. Foda-se a sua dor pessoal, esse seu ovo mesquinho e fechado.
Sem data
Claro, o dia de amanhã cuidará do dia de amanhã e tudo chegará no tempo exato. Mas e o dia de hoje?
Só quero ir indo junto com as coisas, ir sendo junto com elas, ao mesmo tempo, até um lugar que não sei onde fica, e que você até pode chamar de morte, mas eu chamo apenas de porto.
2 de março
Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo. Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, recuso todos os toques e .ignoro todas as tentativas de aproximação. Tenho vontade de gritar que esta dor é só minha, de pedir que me deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso.
A única magia que existe é estarmos vivos e não entendermos nada disso. A única magia que existe é a nossa incompreensão.
11 de março
Louco de speed, hash e solidão. Mudar, partir, ficar. Fomos despejados novamente, nos deram três dias de prazo. Vontade de ler Carlos Drummond de Andrade:
Tudo somado, devias precipitar-te — de vez — nas águas. Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.
A casa agonizante. As pessoas andando pelo escuro, velas nas mãos, como fantasmas. Ou como crianças perdidas. Vontade de fugir para não ver esses — quantos? vinte, trinta? — olhos assustados pelas escadas, essas vozes baixas, esses sons ingleses, espanhóis, portugueses, franceses. Não ver, não ouvir, não tocar, não sentir.
O frio entra pelas frestas das portas e janelas. Tirados os panos das paredes e todos os disfarces, tudo fica feio, miserável. Alguém cagou dentro da banheira. Há montes de lixo pelas escadas e corredores. Fomos expulsos, não vale a pena arrumar mais nada, limpar mais nada. Esse lixo espalhado pela casa são os nossos sonhos usados, gastos, perdidos. Sinto ódio, não sei exatamente de quem ou de quê. O estômago vazio há mais de trinta horas, os cigarros filados aqui e ali, o dente quebrado em plena bad trip. Quero outra vez um quarto todo branco e um par de asas. Mesmo de papelão.
13 de março
Segundo dia na escola de belas-artes. Estou exausto. Keep still yourself— still like that— can you move your face?— turn lefl, please. Gentis e distantes, sou pouco mais que um objeto até o take a rest que recebo com alívio. Mr. Graham pediu que posasse das 18h às 21h, já tinha posado das 9h às 18h. Mas aceito, à noite pagam melhor. Precisávamos ir ver umas squatter-houses em Paddington, não vou aparecer nem tem telefone para avisar. Temos que mudar até amanhã. Tudo vai mal. Até arrumar este trabalho, Sylvia me pagou alguma comida. Só penso em voltar, lá não há liberdade, mas tem sol. E comida.
14 de março
A sensação é de estar afundando na areia movediça. No lodo.
O professor de desenho me vê com um livro de reproduções de Magritte na hora do almoço e diz que Magritte pintava sonhos, e que é impossível ter sonhos às seis da manhã numa estação de metrô. Me surpreendo arranjando energia para contestar. E digo no meu inglês péssimo que se a realidade nos alimenta com lixo, a mente pode nos alimentar com flores. Talvez porque eu mesmo tome metrô todo dia às seis da manhã para fazer todas as conexões e chegar a Aldgate, com Magritte embaixo do braço. Estamos sem casa. Saio daqui às quatro e encontro com Hermes na porta da casa velha de Victoria para irmos — onde? Minha aparência é péssima, a mente e o corpo exaustos. Mas existe uma tranqüilidade estranha. Não tenho mais nada a perder. Não sabia que o mundo era assim duro, assim sujo. Agora sei. Tenho apenas essa consciência, que só a loucura ou uma lavagem cerebral poderiam turvar. Sobrevivo todos os dias à morte de mim mesmo. Sinto como uma virilidade correndo no sangue.
15 de março
Sonhei. Há muito não sonhava. Havia uma festa. Era um lugar agradável, ao ar livre, um parque ou um jardim. Quando eu vinha embora Pablo pediu que esperasse por ele, mas eu estava interessado em outras coisas e não dei muita atenção. Era noite, eu vestia a capa preta marroquina. Na rua, um homem tentava voar numa máquina com asas, como aquelas engenhocas de Leonardo da Vinci. Havia um incêndio numa casa próxima, muitas pessoas corriam. Eu não estava interessado. Encontrei Deborah, empurrando um carrinho de bebê com um adulto dentro. Ela disse: “Vou embora para o Brasil. Angie vai ficar. Eu vou escrever de lá”. Eu continuei andando, preocupado com Pablo, se estaria me esperando ou não. Segurei as pontas da capa marroquina e comecei a correr como se quisesse voar. Era bom. As pessoas apontavam e diziam: “Look at him: he s tryng tofly!” De repente um policial me segurou pelo capuz e perguntou por que eu estava correndo. Respondi agressivo: “Just because 1 like it!” Ele sorriu e me soltou. Continuei correndo, tentando voar. No começo de uma colina parei e olhei para o céu. E vi a lua, em quarto-crescente, bem ao lado de Saturno. Era muito bonito. Fiquei maravilhado e pensei que coisas extraordinárias deveriam estar acontecendo com aquela conjunção. Nesse momento uma estrela caiu. Pensei em fazer um pedido, mas a estrela já sumira, e eu sabia que o pedido só valia enquanto ela estivesse visível. Mesmo assim, pedi: que Pablo ainda estivesse me esperando. Comecei a subir os degraus que levavam à nossa casa de Victoria, que estava no alto da colina. Os degraus de pedra eram irregulares e muito gastos, sobre eles havia várias velas, algumas acesas. Apanhei uma delas e entrei na casa. A sala estava cheia de móveis antigos, com aquela luz azulada da lua e de Saturno entrando pelas vidraças. De um andar superior vinha música, acho que era Angie, com Mick Jagger. Subi as escadas e encontrei um desconhecido sentado, lendo. Falei a ele sobre a lua e Saturno, mas não pareceu interessado. Então tomei-o pelo braço e levei-o até o terraço. Apontei o céu. Nesse momento algumas nuvens cobriram a lua, e ele não viu nada. Sacudiu os ombros, voltou a entrar, a sentar e a ler. Fiquei irritado, chamei-o de yourfiscking bastard! várias vezes, mas ele não me deu atenção. Não havia mais ninguém em casa. Pensei em Pablo, queria muito que estivesse me esperando para mostrar-lhe a lua e Saturno. Comecei a subir para meu quarto, procurando por ele. Acordei.
15 de março
Estou sozinho num flat recém-invadido. Um homem com uma arma queria nos mandar embora. Não fomos. São vários flats num prédio grande, há uma organização underground de squatters tentando invadi- los. Estão armados com pedaços de paus e pedras. Harrow Road, Westboume Park, uma zona velha e pobre, terrivelmente úmida. Atrás do flat há um canal de águas poluídas, vezenquando passam barcos. Chico saiu para comer, Hermes batalhar entrada para assistir Chick Corea no Rainbow, Cotrim foi lavar seus pratos no restaurante, Flávio desapareceu, Pablo e Sarah, também. Sylvia vai para um outro flat aqui no mesmo prédio. Rô, Helô e Little Sô foram parar numa squatter em Sutherland Avenue, aqui perto. Uma barra. Junkies pesados, heroína, morfina, polícia rondando, paredes quebradas, sujeira, miséria. E as três idiotas fascinadas com o horror, falando sem parar em Janis Joplin, Jimi Hendrix, um Morrison. Reconstituí o dente quebrado num dentista de Earl’s Court, passei na Biba depois, não roubei nada e vim “para casa”. Comprei maçãs, tenho algum dinheiro da escola. Acho que vou ao cinema. A partir das oito, no Classic de Nothing 11h11 Gate tem uma sessão quádrupla sensacional: Performance, Five Easy Pieces, Easy Rider e Drive, He Said. Acho que o dinheiro dá até para comer um sanduíche no intervalo. Luxo!
Aqui é muito feio. Nem aquecimento nem luz, como sempre, mas parece que é possível fazer uma ligação elétrica clandestina. Há uns irlandeses ótimos na parte do prédio onde está Sylvia, sabem fazer todas essas coisas. Hermes diz que devem ser terroristas do IRA, possivelmente são mesmo. Tem uma banheira na cozinha, está imunda. Estou sujo, barbudo, cansado. Sonho com banheiras limpas, shampoos, sabonetes, toalhas felpudas, lençóis brancos, café. Mais nada. Aqueles junkíes de Sutherland não me saem da cabeça. As peles, meu Deus, as peles gastas. Estarei assim?
19 de março
“Querida mãe:
A vida aqui anda agitada. Precisamos mudar de novo. Agora estou dividindo um apartamento com Hermes (acho que a senhora lembra dele, era o meu amigo professor de inglês do Yázigi). Fica numa zona antiga de Londres, tem uma igrejinha do século XVI perto e um riozinho que corre atrás do bloco de apartamentos. Não mando o endereço porque ainda não é certo que fiquemos aqui por muito tempo. Se ficarmos, talvez em seguida a gente possa mandar instalar um telefone, até poderíamos bater um papo, quem sabe?
Continua fazendo frio, mas agora tem um pouco mais de sol e a primavera começa depois de amanhã. Semana passada nevou um pouco. Foi lindo. Estou realmente bem. Não sei por que suas cartas vêm sempre tão cheias de medos e suspeitas. Hoje está soprando um vento, não lembro o nome, que os ingleses dizem vir do País de Gales. Todo mundo escancara portas e janelas para que o vento leve embora os maus-espíritos do inverno. É um vento mágico, dizem. Beijos para o pai e para todos.”
20 de março
Na Sir John Cass School of Art, posando desde nove da manhã. Hora do almoço, estou com muita fome e não tenho um maldito shilling. Preciso ficar até as 18h, é a hora que eles me pagam. Caminhei um pouco na rua para ver se esquecia a fome, mas faz muito frio e o gelo entra pelo pano dos tênis. Enfastiada, Mrs. Pountney come uma maçã ao meu lado, tem um sanduíche no colo. Sorri, não oferece nada. Sorrio também. Minha vingança é que é uma péssima pintora.
25 de março
Depois de muito tempo, encontro Angie em Portobelio no sábado. Nada a dizer entre nós. Está gasto, aparência suja e cansada. Sacaneou várias pessoas — pegou grana para comprar hash, não comprou nada nem devolveu a grana, inventou várias histórias, sujou com todos. Quando chega, saem de perto. Não consegui ver mais nele aquele menino recém-chegado de Firenze, que apareceu na nossa antiga casa de Olympia com uns olhos grandes e limpos, parecido com Rita Hayworth. As prisões, os roubos, as bad trips, os trabalhos duros, as humilhações e as fomes mataram aquele menino. Sobrou o trambiqueiro, o transador. Vapor barato. Há muitos assim. E ainda falam de paz-&-amor, boas-vibrações & alto-astral...
5 de abril
Pablo foi embora para Barcelona. Não conseguiu o passaporte falso, vai ter mesmo que enfrentar o serviço militar. Dei a ele a pulseira marroquina, provavelmente não vamos nos ver nunca mais. Mas não vou esquecê-lo, repetindo horas cada vez que tomava ácido “No es verdad... No es posible... No lo puedo creer..”
10 de abril
Duas cartas ao mesmo tempo, escritas quase no mesmo dia. Uma de Anita, a garota sueca que vendia sorvete ano passado no quiosque em Estocolmo, perguntando se não vou trabalhar lá este verão. A outra é de Clara, no Rio, dizendo que sim, que eu vá, que continua sempre a minha espera. E se eu mudasse meu destino num passe de mágica? Voltar a Estocolmo, casar com Anita, ganhar passaporte sueco, auxílio desemprego do governo, viajar para a Índia, Goa, Nepal, Katmandu. Não sei se conseguiria. Estranho, mas é sempre como se houvesse por trás do livre arbítrio um roteiro fixo, predeterminado, que não pode ser violado. Um roteiro interno que nos diz exatamente o que devemos ou não fazer, e obedecemos sempre, mesmo que nos empurre para aquilo que será aparentemente o pior. O “pior” às vezes é justamente o que deveria ser feito?
16 de abril
Quatro freaks no Holland Park, ao entardecer, embaixo de uma árvore toda vermelha, tocando flauta e cítara. Parecem uma pintura. Sentamos embaixo de outra árvore em frente, Hermes e eu, e ficamos olhando como se fôssemos nós mesmos num espelho, passados a limpo. Pareciam eternos. Sorriram para nós, mas de repente tive consciência do saco de papel todo amassado do supermercado de Earl’s Court nas minhas mãos suadas, me voltou a dor nas costas de posar imóvel para escultura. Levantamos, atravessamos o parque e de repente estávamos em Nothing Hili Gate e a cidade era confusa e suja e barulhenta.
20 de abril
Fui rever Midnight Cowboy depois da escola. Já havia visto no Brasil, mas naquela época era pura ficção. Agora não, parecia minha própria vida, só um pouco piorada. Fumei um e fiquei dando voltas no Hyde Park sem ter a menor idéia de onde estava, em que cidade, que país, só sabia que era num planeta sujo.
29 de abril
Na estação de Charing Cross um desconhecido todo vestido de couro negro me diz que quando o viajante interplanetário se aproxima de Saturno imediatamente sente a mudança das vibrações. Que a forma dos habitantes de Saturno darem boas-vindas é fazer amor com os visitantes. Disse que vinha de Saturno e me convidou a fazer amor com ele. Perguntou: “Posso atravessar as portas de seu templo?” Tá querendo me enrabar, traduzi. E caí fora. A loucura brilhava nos olhos dele. Bem, de qualquer forma foi a cantada mais cósmica que já recebi em toda a minha vida.
7 de maio
Pelo menos estou vivo. Em movimento, andando por aí, perdendo ou ganhando, levando porrada, passando fome, tentando amar. “De cada luta ou repouso me levantarei forte como um cavalo jovem”, onde foi que li isso? Sei: Clarice Lispector, meu Deus, foi em Perto do Coração Selvagem.
8 de maio
Daniel, o espanhol anarquista e escultor da Barrow Hili Studio, onde comecei a posar também, fala muito no poeta León Felipe. “Tenía cojones “, repete. Hoje me emprestou a Antologia Rota e copiei:
El mundo es una siot machine con una raflura en la frente del cielo, sobre ia cabecera dei mar (Se há parado la máquina se ha parado la cuerda.) El mundo es algo que funciona como ei piano mecánico de un bar (Se ha acabado la cuerda se há parado la máquina.)
Marinero, tu tienes una estrelia en ei bolsillo...
Drop a star!
Enciende con tu mano ia nueva música dei mundo, la canción marinera de maíiana, ei hymno venidero de los hombres...
Drop a star! Echa a andar otra vez en este barco vazio, marinero. Tu tienes una estrelia en ei bolsiilo...
Una estrelia nueva, de paiadío, de fósforo, de imãn.
13 de maio
Tentei durante quase uma semana, não consegui trabalho na fábrica. Isso quer dizer que voltarei ao Brasil sem dinheiro. Talvez nem possa passar no Rio para ver Clara. O flat está uma bagunça. Hermes e quase todos os outros vão para Estocolmo trabalhar durante o verão, ninguém mais se importa com nada. Sábado vamos para Swiss Cottage, para a casa de Charles, de lá parto para o Brasil.
16 de maio
Passamos a noite na delegacia de Earl’s Court.
Motivo: Hermes e eu fomos presos roubando uma biografia recém-lançada de Virginia Woolf escrita por Quentin Bel I, o filho de Vanessa. Ficamos rondando, eram dois volumes cheios de fotos, eu estava com a capa marroquina, Hermes com um casaco enorme. Enfim apanhamos um volume cada um e saímos para a High Street Kensington. Já estávamos quase no parque quando o cara da livraria veio correndo atrás. Chamaram a polícia, Hermes nervosíssimo, achando que seríamos deportados. Brinquei, dizendo que de agora em diante Virginia Woolf seria nossa padroeira, nossa fada-madrinha. E que anay era um roubo muito digno. Dormimos cada um em uma cela e de manhã cedo, sem café nem nada, nos levaram num carro cheio de pequenas celas individuais para Shepherd’s Bush, para apanhar mais presos. Conversei um pouco com um suíço ladrão de jóias, elegantíssimo, bigodes louros retorcidos para cima, a cara de Helmut Berger. Havia mais duas indianas pegas roubando roupas íntimas na Biba e umfreak holandês com uma mala enorme cheia de tijolos de haxixe. Todos odeiam a Inglaterra. Roubaram o mundo inteiro, diz uma das indianas, e agora não querem ser roubados? Fomos julgados na corte de Hammersmith, o mesmo lugar onde julgaram Angie das outras vezes. O juiz era uma mulher, cara muito fechada. Dissemos que éramos estudantes de literatura e não tínhamos grana para comprar livros. Não adiantou nada: trinta libras de multa para cada um. Merda, todo o dinheiro que eu pretendia levar para o Brasil. Hermes foi trabalhar arrasado. Vim para casa, deitei no meio do kaos com aquele xale roxo de fazer bad trip e fiquei esperando visitas. Essas notícias correm depressa, todo mundo já sabia, e também todo mundo já foi preso. Chico trouxe o violão e cantou, Helô jogou um Tarot para mim, mas sempre sai a Torre Fulminada pairando, ela fica insistindo que pode ter um bom significado, mas sei que é sempre péssimo. Sylvia trouxe um bolo e um maço de Players Number Six, vai depois de amanhã para Estocolmo. Suavíssimos, todos. Imagine se eu ia perder uma oportunidade rara dessas de ser bem-tratado.
22 de maio
Eu me fui, eu me sou, eu me serei em cada um dos girassóis do reino a ser feito. E as coisas terão que ser claras. Releio o que escrevi neste caderno, desde janeiro, revejo o que vivi. Tudo me conduziu para este here and now. Tudo terá que ser claro. How can I tell you?
25 de maio
Cartão de Estocolmo, Sylvia diz: “Índia is the way”. No fim do verão, há sempre caronas saindo de Amsterdam. Vai-se pelo Nepal, pela Armênia. O caminho terrestre para as Indias. Todo mundo está indo para lá, Sylvia garante. Vacilo, fico pensando: e se eu mudasse tudo e fosse também? Primeiro Estocolmo — tak, tak, inte pratte svenska, venta pomei —, um quarto em Kungshambra ou Freskati. Depois Katmandu em vez de Copacabana, budismo tibetano em vez de escola de samba.
26 de maio
Hermes me dá os poemas de Sylvia Plath. São febris, obsessivos, mórbidos, mas não consigo parar de ler. Fico tentando traduzir Fever 103, mas é difícil, já nos três primeiros versos tenho um problema:
Pure? What does it mean? The tongues ofhell Are duli, duil as the triple (...)
Os dois primeiros versos, tudo bem. E “labaredas” acho que fica melhor que “línguas”, é evidente que ela está se referindo ao fogo dos infernos. Mas como traduzir duli? Opacas, sujas, gordurosas? Sylvia Plath é sempre um mal-estar.
27 de maio
Hermes também partiu para Estocolmo, me deixou alguns cleanings. Com Charles, vim para um fim de semana em Chichester, na casa de Billy e Mike. É bonito aqui. A cozinha branca, o bule vermelho sobre a mesa de madeira, a janela aberta para o jardim cheio de rosas e trepadeiras, um dia de primavera nítido. As vozes de Charles, Billy e Mike lá fora, combinando assistirem Diana Dors no festival de teatro, à noite ela faz Seis Personagens em Busca de um Autor de Pirandello. Quando criança, eu colecionava fotos dela, de Jayne Mansfield e Mamie van Doren, todas as imitadoras de Marilyn Monroe. Agora, ela é uma senhora de idade, virou artista séria, a dois passos daqui. A vida é mesmo doida. Talvez eu já não esteja completamente aqui. Nem lá, seja onde for. Antes de viajar, fico pairando. Talvez a alma parta antes, e não saiba direito para onde ir sem o corpo. Na morte deve ser parecido.
Billy pergunta de Angie. Foi deportado, digo — é verdade, alguém me contou há alguns dias, não lembro quem. Sei que Deborah ficou em Londres, me disseram que estava trabalhando como scort-girl. Charles seca a Henna dos cabelos ao sol. Há tanto sol hoje, quase tanto quanto no Brasil todos os dias. Me revisito no inverno, subindo as escadas sujas no escuro, uma vela acesa na mão, sentindo fome, o dente quebrado. Quero esquecer completamente. E sei que nunca esquecerei.
28 de maio
Fui fazer meu último cleaning. Diálogo com Mrs. Simmons:
— What about rnyfears?
— Well, I neverpayfears to Hermes.
— Sorry, but I’m not Hermes. I came from Chichester today only to clean your house.
Fui ao banheiro lavar as mãos. Tinha que me dar dez pences. Uma inglesona redonda, rosada, busto enorme, corada, aquele ar de gentileza excessiva que esconde sempre o desprezo. Que povo. Quando saio do banheiro, ela me espera na escada com uma moeda de cinco pences na pata gorducha.
— That’s your money.
Fiquei puto, berrei:
— I don’t want it! I don’t need yourfucking money! I hate all the English ladies!
Fui saindo. Ela atrás, imperturbável, monstruosa:
— Please, could you take the rabbish to the basement?
— No! I can not! I’m going to my country!
29 de maio (no avião)
Problemas em Heathrow na hora de pesar a bagagem. Teria que pagar umas trinta libras de excesso, e eu só tinha cinco. Enfiei uns jeans dentro das mangas de um casaco, distribui outras coisas pelos bolsos, mas tive que deixar muita coisa com Charles. Ficaram todos os panos indianos, os livros de Tarot, Macrobiótica, Alquimia, Astrologia, o vaso chinês, as duas bonecas, a bailarina e a camponesa, a chaleira Rudolpha Elizabeth. E os diários todos da Espanha, França, Suécia, Holanda, os primeiros tempos de Londres. Fiquei pensando se não terei deixado o essencial — e o essencial eram as coisas que coloriram a minha vida nesses dois anos sem cor.
Vejo a Inglaterra de cima. Não sinto nada. Vazio. Agora tudo é passado. Meu presente é este vôo onde nada acontecerá. E o futuro branco. Londres fica para trás. Ainda está claro, dá para ver o canal da Mancha, a ilha de Wight ao longe. Fome. Vontade de conversar com alguém, mas perto só há uns italianos de ternos escuros falando muito rápido, parecem mafiosos. E devem ser.
Canapés e coca-cola. A aeromoça da Aerolineas Argentinas fala espanhol com os outros e inglês comigo. Deve ser o brinco na orelha esquerda, roubado do antiquário de Chichester, a bolsa indiana roubada na Biba, os óculos roubados em Portobeilo. E tudo roubado, carifio, puedes habiar espanhol.
Orly. Afinal, não voltei a Paris. Mas haverá tempo. Um crescente enorme no céu. Faço as contas, deve estar em Virgem. Reorganizar tudo no Brasil? Sobe um time inteiro de futebol ou algo assim, franceses. Cutucam-se, me olham, me filmam. Minha aparência destoa completamente de todo o resto. Começo a desconfiar que London, London, Babylon City é um lugar very, very special.
Peço à aeromoça algumas revistas ou jornais brasileiros. Ela me traz uma Manchete. Misses, futebol, parece horrível. Então sinto medo. Por trás do cartão postal imaginado, sol e palmeiras, há um jeito brasileiro que me aterroriza, O deboche, a grossura, o preconceito.
Saímos de Madri, Barajas. Dei uma voltinha pelo aeroporto. Uma caretice absolutamente inacreditável, é como se tivesse entrado numa máquina do tempo. Devo ter ficado tão acostumado às roupas e ao feeling londrino que simplesmente esqueci que, além da ilha, existem outras coisas. A memória é sempre muito sacana.
De dentro do caderno cai uma folha dobrada. É um poema que Clara encontrou, copiou e mandou do Rio, sobre Ícaro. Diz que é de Darwin, acho estranho. Mas leio outra vez e copio para não pensar:
Com a cera derretendo e oflo solto caiu o desgraçado Ícaro, sob inertes asas; direto através do céu medonho, com os membros torcidos e os cabelos em desalinho, sua plumagem espalhada dançou sobre a onda e, chorando-o, as nereidas ornaram sua sepultura aquática. Sobre seu pálido corpo deitaram suas flores de pérolas marinhas e espalharam musgo vermelho no seu leito de mármore e em suas torres de coral repicaram os sinos que ressoaram sobre o vasto oceano esse dobre.
Sobrevoamos o Atlântico, a grande asa sob minha janela. Escrevo, escrevo, O ronco dos motores, as narinas cheias de casquinhas de sangue endurecido. Penso em Sylvia, em Estocolmo, irá mesmo para a Índia? E eu não fui, agora é tarde. Tenho medo, desde Londres as palmas de minhas mãos estão encharcadas de suor. Meu Deus, não sou muito forte, não tenho muito além de uma certa fé — não sei se em mim, se numa coisa que chamaria de justiça-cósmica ou a-coerência-final-detodas- as-coisas. Preciso agora da tua mão sobre a minha cabeça. Que eu não perca a capacidade de amar, de ver, de sentir. Que eu continue alerta. Que, se necessário, eu possa ter novamente o impulso do vôo no momento exato. Que eu não me perca, que eu não me fira, que não me firam, que eu não fira ninguém. Livra-me dos poços e dos becos de mim, Senhor. Que meus olhos saibam continuar se alargando sempre. Sinto uma dor enorme de não ser dois e não poder assim um ter partido, outro ter ficado com todas aquelas pessoas. Volta a pergunta maldita: terei realmente escolhido certo? E o que é o “certo”? Digo que todo caminho é caminho, porque nenhum caminho é caminho. Que aqui ou lá — London, London, Estocolmo, Índia — eu continuaria sempre perguntando. Minhas mãos transpiram, transpiram. O nariz seco por dentro. Não quero escrever mais nada hoje. Um casal transa em pé no corredor, sobre o Atlântico. O italiano a meu lado dorme com a mão no pau o tempo todo, será um costume latino?
A lua já se foi. As Plêiades, como dizia Safo, já foram se deitar. E eu vim me embora, meu Deus, eu vim-me embora.
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Um comentário:
Lindos Textos. 19 março "Querida Mãe" me emocionou!
Estou seguindo como uma neném ainda e procurando absorver toda essa substância cheia de conteúdo.
com amor e carinho,
Sílvia
Blog:http://silminhacolchaderetalhos.blogspot.com/
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