Contos, crônicas e cartas

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domingo, 4 de julho de 2010

* Última carta para além dos muros

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Porto Alegre - Imagino que você tenha achado as duas cartas anteriores obscuras, enigmáticas como aquelas dos almanaques de antigamente. Gosto sempre do mistério, mas gosto mais da verdade. E por achar que esta lhe é superior te escrevo agora assim, mais claramente. Nem sinto culpa, vergonha, ou medo.

Voltei da Europa em junho me sentindo doente. Febres, suores, perda de peso, manchas na pele. Procurei um médico e, à revelia dele, fiz O Teste. Aquele. Depois de uma semana de espera agoniada, o resultado: HIV Positivo. O médico viajara para Jokorama, Japão. O teste na mão, fiquei três dias bem natural, comunicado à família, aos amigos. Na terceira noite, amigos em casa, me sentindo seguro - enlouqueci. Não sei detalhes. Por auto-proteção, talvez, não lembro. Fui levado para o pronto Socorro do Hospital Emílio Ribas com suspeita de um tumor no cérebro. No dia seguinte, acordei de um sono drogado num leito da enfermaria de infectologia, com minha irmã entrando no quarto. Depois, foram 27 dias habitados por sustos e anjos - médicos, enfermeiras, amigos, família, sem falar nos próprios - e uma corrente tão forte de amor e energia que amor e energia brotaram dentro de mim até tornaram-se uma coisa só. O de dentro e o de fora unidos em pura fé.

A vida me dava pena, e eu não sabia que o corpo ("meu irmão burro", dizia São Francisco de Assis) podia ser tão frágil e sentir tanta dor. Certas manhãs chorei, olhando através da janela os muros brancos do cemitério no outro lado da rua. Mas à noite, quando os néons acendiam, de certo ângulo a Dr. Arnaldo parecia o Boulevard Voltaire, em Paris, onde vive um anjo sufista que vela por mim. Tudo parecia em ordem, então. Sem rancor nem revolta, só aquela imensa pena de Coisa Vida dentro e fora das janelas, bela e fugaz feito as borboletas que duram só um dia depois do casulo. Pois há um casulo rompendo-se lento, casca seca abandonada. Após, o vôo do Ícaro perseguindo Apolo. E a queda?

Aceito todo dia. Conto para você, porque não sei ser senão pessoal, impudico, e sendo assim preciso te dizer: mudei, embora continue o mesmo. Sei que você compreende.

Sei também que, para os outros esse vírus de science fiction só dá me gente maldita. Para esse, lembra Cazuza: "Vamos pedir piedade, Senhor, piedade para essa gente careta e covarde". Mas para você, revelo humilde: o que importa é a Senhora Dona Vida, coberta de ouro e prata e sangue e musgo do tempo e creme Chantilly às vezes e confetes de algum carnaval, descobrindo pouco a pouco seu rosto horrendo e deslumbrante. Precisamos suportar. E beijá-la na boca. De alguma forma absurda, nunca estive tão bem. Armado com as armas de Jorge. Os muros continuam brancos, mas agora são de um sobrado colonial espanhol que me faz pensar em García Lorca; o portão pode ser aberto a qualquer hora para entrar ou sair; há uma palmeira, rosas cor-de-rosa no jardim. Chama-se Menino deus este lugar cantado por Caetano, e eu sempre soube que era aqui o porto. Nunca se sabe até que ponto seguro, mas - para lembrar Ana C., que me deteve à beira da janela - como não se pode ancorar um navio no espaço, ancora-se neste porto. Alegre ou não: ave Lya Luft, ave Iberê, Quintana e Luciano Alabarse, chê.

Vejo Dercy Gonçalvez, na Hebe, assisto A Falecida de Gabriel Villela no Teatro São Pedro; Maria Padilha conta histórias inéditas de Vicente Pereira; divido sushis com a bivariana Yolanda Cardoso; rezo por Cuba; ouço Bola de Nieve; gargalho com Déa Martins; desenho a quatro mãos com Laurinha; leio Zuenir Ventura para entender o Rio; uso a estrela do PT no peito (Who Knows?) ; abro o I Ching ao acaso : Shêng, a Ascensão; não perco Éramos Seis e agradeço, agradeço, agradeço.

A vida grita. E a luta, continua.


(O Estado de S. Paulo, 18/9/994)


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