Contos, crônicas e cartas

Blog ativado em: 16/maio/2010

segunda-feira, 31 de maio de 2010

* Infinitamente pessoal

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E o anjo pálido troca o mel pelo sal.

Começou a amanhecer. Não sei ao certo como soubemos que tinha começado a amanhecer: era tão escuro ali dentro que noite ou dia lá fora não faria a menor diferença. Por algumas frestas, frinchas — não importa—, tivemos certeza de que começara, claramente, a amanhecer. E por condicionamento, talvez, porque sempre com o amanhecer chega a hora de ir embora, começamos a ir embora. Feito vampiros às avessas — necessitados de luz, não de sombra.
Tinha roxo e rosa no céu. Até as latas cheias de lixo na rua deserta pareciam vagamente douradas. Fez com que caminhássemos a pé, para olharmos o céu. E enquanto eu olhava o céu limpo da cidade suja, interpunha entre nós seu primeiro muro de palavras. Confusas, atormentadas, sobre tudo e sobre nada: palavras amontoadas umas sobre as outras, como se amontoam tijolos para separar alguma coisa de outra coisa. Eu, mal sabendo que esse — que parecia seu jeito mais falso de ser — seria nas semanas seguintes seu jeito mais verdadeiro, às vezes único.
Quando o tempo passasse um pouco mais, nos surpreendendo ainda juntos em outra madrugada, minha cabeça repetiria tonta e lúcida «Éramos tão pálidos, e nos queríamos tanto”. Éramos muito pálidos naquela primeira manhã entre as latas de lixo da rua deserta, caminhando em direção ao dia de hoje — mas ainda não nos queríamos com este enorme susto no fundo dos olhos despreparados de querer sem dor.
Lembro que olhando para cima, descobri entre o roxo e o rosa das nuvens um anjo também pálido, magro e de barba por fazer, vestido de negro, com um leve sorriso nos lábios, vertendo uma gota de mel sobre nossas cabeças. Não prestei atenção nele. Me deixava levar, guiado apenas pelo jardim que entrevia pelas frestas dos tijolos, nos muros-palavras erguidos entre nós, com descuido e precisão. Viriam depois, mais muros que os de palavras, muros de silêncio tão espesso que nem mesmo os demorados exercícios de piano, as notas repetidas e os dedos distendidos, conseguiriam derrubar.

Errei pela primeira vez quando me pediu a palavra amor, e eu neguei. Mentindo e blefando no jogo de não conceder poderes excessivos, quando o único jogo acertado seria não jogar: neguei e errei. Todo atento para não errar, errava cada vez mais. Mas durante as ausências, olhando então para cima e abrindo a boca, recebia em cheio na garganta as gotas de mel do jarro de lata que aquele anjo pálido trazia ao ombro. Embora me recusasse a ver que o anjo parecia cada vez mais sombrio. Incapaz de perceber que em seu leve sorriso, bem no canto da boca, começava a surgir uma marca de sarcasmo, feito um tique cruel.
Passaram-se muitos dias. A lua deu mais de uma volta completa no Zodíaco. Ultrapassou Sagitário e caminhou até Áries, completando seu triângulo de fogo e paixão. Bati as mãos contra o muro, procurando brechas. Não havia mais. Espatifei as unhas, gritei por uma resposta qualquer. Nem uma veio de volta. Olhei para fora de mim e não consegui localizar ninguém no meio das vibrações da cidade suja. Olhei para dentro de mim e só havia sangue. Derramado, como nas cirandas.
Queria acordar, mas não era um sonho.
Então localizei outra vez aquele mesmo anjo parado entre nuvens. Estava de branco, agora, mas nenhum sorriso nos severos, em suas mãos havia um jarro de ouro. De dentro ele, chovia um mar de sal sobre a minha cabeça. Por quê?! — eu perguntei. O anjo abriu aboca. E não sei se entendo o que me diz.



O Estado de S. Paulo, 1/7/1986



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* Ao momento presente

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Deixe que ele respire, como uma coisa viva. E tenha muito cuidado: ele pode quebrar.
Como um bebê ou um cristal: tome-o nas mãos com muito cuidado. Ele pode quebrar, o momento presente. Escolha um fundo musical adequado — quem sabe, Mozart, se quiser uma ilusão de dignidade. Melhor evitar o rock, o samba-enredo, a rumba ou qualquer outro ritmo agitado: ele pode quebrar, o momento presente. Como um bebê, então, a quem se troca as fraldas, depois de tomá-lo nas mãos, desembrulhe-o com muito cuidado também. Olhe devagar para ele, parado no canto do quarto ou esquecido sobre a mesa, entre legumes, ou misturado às folhas abertas de algum jornal. Contemple o momento presente como um parente, um amigo antigo, tão familiar que não há risco algum nessa presença quieta, ali no canto do quarto. Como a uma laranja, redonda, dourada — mas sem fome, contemple o momento presente. Como a cinza de um cigarro que o gesto demorou demais, caída entre as folhas de um jornal aberto em qualquer página, contemple o momento presente. E deixe o vento soprar sobre ele.
Desligue a música, agora. Seja qual for, desligue. Contemple o momento presente dentro do silêncio mais absoluto. Mesmo fechando todas as janelas, eu sei, é difícil evitar esses ruídos vindos da rua. Os alarmes de automóveis que disparam de repente, as motos com seus escapamentos abertos, algum avião no céu, ou esses rumores desconhecidos que acontecem às vezes dentro das paredes dos apartamentos, principalmente onde habitam as pessoas solitárias. Mas não sinta solidão, não sinta nada: você só tem olhos que olham o momento presente, esteja ele — ou você — onde estiver. E não dói, não há nada que provoque dor nesse olhar.
Não há memória, também. Você nunca o viu antes. Tenha a forma que tiver — um bebê, um cristal, um diamante, uma faca, uma pêra, um postal, um ET, uma moça, um patim — ele não se parece a nada que você tenha visto antes. Só está ali, à sua frente, como um punhado de argila à espera de que você o tome nas mãos para dar-lhe uma forma qualquer — um bebê, um cristal, um diamante e assim por diante. E se você não o fizer, ele se fará por si mesmo, o momento presente. Não chore sobre ele. No máximo um suspiro. Mas que seja discreto, baixinho, quase inaudível. Não o agarre com voracidade — cuidado, ele pode quebrar. Não ria dele, por mais ridículo que pareça. Fique todo concentrado nessa falta absoluta de emoção. Não espere nada dele, nenhuma alegria, nenhum incêndio no coração. Ele nada lhe dará, o momento presente.
Deixe que ele respire, como uma coisa viva. Respire você também, como essa coisa viva que você é. Contemple-o de frente, igual àquela personagem de Clarice Lispector contemplando o búfalo atrás das grades da jaula do jardim zoológico. Você pode estender a mão para ele, tentar uma carícia desinteressada. Mas será melhor não fazer gesto algum.
Ele não reagirá, mesmo todo pulsante, ali à sua frente.
Respire, respire. Conte até dez, até vinte talvez. Daqui a pouco ele vai começar a se transformar em outra coisa, o momento presente. Qualquer coisa inteiramente imprevisível? Você não sabe, eu não sei, ele não sabe: os momentos presentes não têm o controle sobre si mesmos. Se o telefone tocar, atenda. Se a campainha chamar, abra a porta. Quando estiver desocupado outra vez, procure-o novamente com os olhos. Ele já não estará lá. Haverá outro em seu lugar. E então, como a um bebê ou a um cristal, tome-o nas mãos com muito cuidado. Ele pode quebrar, o momento presente. Experimente então dizer “eu te amo”. Ou qualquer coisa assim, para ninguém.



O Estado de S. Paulo, 11/3/1987

(Pequenas Epifanias)

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* Por trás da vidraça

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Cá entre nós: fui eu quem sonhou que você sonhou comigo?

Ou teria sido o contrário?

Sonhei que você sonhava comigo. Mais tarde, talvez eu até ficasse confuso, sem saber ao certo se fui eu mesmo quem sonhou que você sonhava comigo, ou ao contrário, foi quem sabe você quem sonhou que eu sonhava com você. Não sei o que seria mais provável. Você sabe, nessa história de sonhos — falo o óbvio —, nunca há muita lógica nem coerência. Além disso, ainda que um de nós dois ou os dois tivéssemos realmente sonhado que um sonhava com o outro, também é pouco provável que falássemos sobre isso. Ou não? Sei que o que sei é que, sem nenhuma dúvida:
Sonhei que você sonhava comigo. Certo? Não, talvez não esteja nada certo. Também não era isso o que eu queria ou planejava dizer. Pelo menos, não desse jeito embaçado como uma vidraça durante a chuva. Por favor, apanhe aquele pequeno pedaço de feltro que fica sempre ali, ao lado dos discos. Agora limpe devagar a vidraça — quero dizer, o texto. Vá passando esse pedaço de feltro sobre o vidro, até ficar mais claro o que há por trás. Lago, edifício, montanha, outdoor, qualquer coisa. Certamente molhada, porque só quando chove as vidraças embaçam. Será? Não tenho certeza, mas o que quero dizer, disso estou certo, começa assim:

Sonhei que você sonhava comigo. Agora penso que é também provável que — se realmente fui mesmo eu a sonhar que você sonhou comigo; e não o contrário — eu não estivesse sonhando. Nada de sono, cama, olhos fechados. É possível que eu estivesse de olhos abertos no meio da rua, não na cama; durante o dia, não à noite — quando aconteceu isso que chamo de sonho. Embora saiba que — se foi dessa forma assim, digamos, consciente — então não seria correto chamá-la de sonho, essa imagem que aconteceu —, mas de imaginação ou invento até mesmo delírio, quem sabe alucinação. Mas não, não é isso o que quero contar, O que quero contar, sei muito bem e sem nenhuma hesitação, começa assim:

Sonhei que você sonhava comigo. Parece simples, mas me deixa inquieto. Cá entre nós, é um tanto atrevido supor a mim mesmo capaz de atravessar — mentalmente, dormindo ou acordado — todo esse espaço que nos separa e, de alguma forma que não compreendo, penetrar nessa região onde acontecem os seus sonhos para criar alguma situação onde, no fundo da sua mente, eu passasse a ter alguma espécie de existência. Não, não me atrevo. Então fico ainda mais confuso, porque também não sei se tudo isso não teria sido nem sonho, nem imaginação ou delírio, mas outra viagem chamada desejo. Verdade eu queria muito. Estou piorando as coisas, preciso ser mais claro. Começando de novo, quem sabe, começando agora:

Sonhei que você sonhava comigo. Depois que sonhei que você sonhava comigo, continuei sonhando que você acordava desse sonho de sonhar comigo — e era um sonho bonito, aquele —, está entendendo? Você acordava, eu não. Eu continuava sonhando, mas na continuação do meu sonho você tinha deixado de sonhar comigo. Você estava acordado, tentando adequar a imagem minha do sonho que você tinha acabado de sonhar à outra ou à soma de várias outras, que não sei se posso chamar de real, porque não foram sonhadas. Mas, se foi o contrário, então era eu, e não você, quem tentava essa adequação — nessa continuação de sonho em que ou eu ou você ou nós dois sonhamos um com o outro. Nos víamos? Quase consegui, agora. Preciso simplificar ainda mais, para começar de novo aqui:

Sonhei que você sonhava comigo. Depois, fiquei aflito. E quase certo de que isso não tinha acontecido. O que aconteceu, sim, é que foi você quem sonhou que eu sonhava com você. Mas não posso garantir nada. Sei que estou parado aqui, agora, pensando todas essas coisas. Como se estivesse — eu, não você — acordando um pouco assustado do bonito que foi ter tido aquele sonho em que você sonhava comigo. Tão breve. Mas tudo é muito longo, eu sei. Estou ficando cansativo? Cansado, também. Está bem, eu paro. Apanhe outra vez aquele pedaço de feltro: desembace, desembaço. Choveu demais, esfriou. Mas deve haver algum jeito exato de contar essa história que começa e não sei se termina ou continua assim:

Sonhei que você sonhava comigo. Ou foi o contrário? Seja como for, pouco importa: não me desperte, por favor, não te desperto.



O Estado de S. Paulo, 9/12/1987



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terça-feira, 25 de maio de 2010

* A quem interessar possa

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Eu não tenho culpa Não fui eu quem fez as coisas ficarem assim desse jeito que não entendo, que não entenderia nunca Você também não tem culpa, vou chamá-lo de você porque ninguém nunca ficará sabendo, nem era preciso, a culpa é de todos e não é de ninguém. Não sei quem foi que fez o mundo assim horrível às vezes quando ainda valia a pena eu ficava horas pensando que podia voltar tudo a ser como antes muito antes dos edifícios dos bancos da fuligem dos automóveis das fábricas das letras de câmbio e então quem sabe podia tudo ser de outra forma depois de pensar nisso eu ficava alegre quem sabe quem sabe um dia aconteceria mas depois pensava também que não ia adiantar nada e tudo começaria a ficar igual de novo no momento que um homem qualquer resolvesse trocar duas pedras por um pedaço de madeira porque a madeira valia mais e de repente outra vez iam existir essas coisas duras que vejo da janela na televisão no cinema na rua em mim mesmo e que eu ia como sempre sair caminhando sem saber aonde ir sem saber onde parar onde pôr as mãos os olhos e ia me dar aquela coisa escura no coração e eu ia chorar chorar durante muito tempo sem ninguém ver é verdade tenho pena de mim e sou fraco nunca antes uma coisa nem ninguém me doeu tanto como eu mesmo me dôo agora mas ao menos nesse agora eu quero ser como eu sou e como nunca fui e nunca seria se continuasse me entende eu não conseguiria não você não me entendeu nem entende nem entenderia você nem sequer soube sabe saberá amanhã você vai ler esta carta e nem vai saber que você poderia ser você mesmo e ainda que soubesse você não poderia fazer nada nem ninguém eu já não acredito nessas coisas por isso eu não te disse compreende talvez se eu não tivesse visto de repente o que vi não sei no momento em que a gente vê uma coisa ela se torna irreversível inconfundível porque há um momento do irremediável como existem os momentos anteriores de passar adiante tentando arrancar o espinho da carne há o momento em que o irremediável se torna tangível eu sei disso não queria demonstrar que li algumas coisas e até aprendi a lidar um pouco com as palavras apesar de que a gente nunca aprende mas aprende dentro dos limites do possível acho não quero me valorizar não sou nada e agora sei disso eu só queria ter tido uma vida completa elas eram horríveis mas não quero falar nisso podia falar de quando te vi pela primeira vez sem jeito de repente te vi assim como se não fosse ver nunca mais e seria bom que eu não tivesse visto nunca mais porque de repente vi outra vez e outra e outra e enquanto eu te via nascia um jardim nas minhas faces não me importo de ser vulgar não me importa o lugar-comum dizer o que outros já disseram não tenho mais nada a resguardar um momento à beira de não ser eu não sou mais tudo se revelou tão inútil à medida em que o tempo passava tudo caía num espaço enorme amar esse espaço enorme entre mim e você mas não se culpe deixa eu falar como se você não soubesse não se culpe por favor não se culpe ainda que esse som na campainha fosse gerada pelos teus dedos eu não atenderia eu me recuso a ser salvo e é tão estranho o entorpecimento começa pelos pés aquela noite eu ainda esperava quase digo sem querer teu nome digo ou escrevo não tem importância vou escrevendo e falando ao mesmo tempo com o gravador ligado é estranho me desculpa saí correndo no parque e me joguei na água gelada de agosto invadi sem ter direito a névoa dos canteiros destaquei meu corpo contra a madrugada esmaguei flores não nascidas apertei meu peito na laje fria do cimento a névoa e eu o parque e eu a madrugada e eu costurado na noite cerzido no escuro porque me dissolvia à medida em que me integrava no ser do parque e me desintegrava de mim mesmo preenchendo espaços aqueles enormes espaços brancos terrivelmente brancos e você não teve olhos para ver que o parque era você a água você a névoa você a madrugada você as flores você os canteiros você o cimento você não teve mãos para mim só aquela ternura distraída a mesma dos edifícios e das ruas mas eles me desesperavam você me desesperava eu não quero falar nelas mas elas estão na minha cabeça como os meus cabelos e as vejo a todo instante cantando aquela canção de morte a minha carne dilacerada e eu ridículo queria ter uma vida completa você não se parecia com Denise tinha os olhos de mangaba madura os mesmos que tive um dia e perdi não sei onde não sei por que e de repente voltavam em você nos cabelos finos muito finos finos como cabelos finos minto que me bastaria tocá-los para que tudo fosse outra vez mas não toquei eu não tocaria nunca na carne viva e livre eles me rotularam me analisaram jogaram mil complexos em cima de mim problemas introjeções fugas neuroses recalques traumas e eu só queria uma coisa limpa verde como uma folha de malva aquela mesmo que existiu ao lado do telhado carcomido do poço e da paineira mas onde me buscava só havia sombra eu me julgava demoníaco mas não pense que estou disfarçando e pensando como-eu-sou-bonzinho-porque-ninguém-me-ama eu me achava envilecido me sentia sórdido humilhado uma faixa de treva crescia em mim feito um câncer a minha carne lacerada estou dentro dessa carne lacerada que anda e fala inútil a carne conjunta das xifópagas e o vento um vento que batia nos ciprestes e me levava embora por sobre os telhados as cisternas as varandas os sobrados os porões os jardins o campo o campo e o lago e a fazenda e o mar eu quero me chamar Mar você dizia e ria e ríamos porque era absurdo alguém querer se chamar Mar ah mar amar e você dizia coisas tolas como quando o vento bater no trigo te lembrarás da cor dos meus cabelos você não vai muito além desses príncipes pequenos suas palavras todas não tenho culpa não tenho culpa eram de quem pedia cativa-me eu já não conseguiria bem lento eu não conseguiria eu não sei mais inventar a não ser coisas sangrentas como esta a minha maneira de ser um momento à beira de não mais ser não me permite um invento que seja apenas um entrecaminho para um outro e outro invento mesmo a destruição tem que ser final e inteira qualquer coisa tem que ser a última uma era inteira e a outra nascia da cintura e existia só da cintura para cima como um ipsilone mole esponjosa uma carne vil uma carne preparada por toda uma estrutura de guerras epidemias pestes ódios quedas eu me sentia culpado ao vê-las assim nosso podre sangue a humanidade inteira nelas que não riam e cantavam aquela sombria canção de morte brutalmente doce elas cantavam e minhas costas doíam como se eu sozinho as sustentasse e não uma à outra mas eu eu com este sangue apodrecido que assassina crianças de fome droga adolescentes bombardeia cidades e também você e todos nós grudados indissoluvelmente grudados nojentos mas me recuso a continuar ninguém sofrerá por mim sem mim chorar ninguém entende nem precisa nem você nem eu o anel que tu me deste sobre a folha que me contém sem compreender sem compreender que você carrega toda uma culpa milenar e imperdoável a História como concreto sobre os teusmeusnossos ombros Cristo sobre nossos ombros todas as cruzes do mundo e as fogueiras da inquisição e os judeus mortos e as torturas e as juntas militares e a prostituição e doenças e bares e drogas e rios podres e todos os loucos bêbados suicidas desesperados sobre os teus meus nossos ombros leves os teus porque não sabes sim sim eu tenho culpa não é de ninguém esse desgosto de lâmina nas entranhas não é de ninguém esse sangue espantado e esse cosmos incompreensível sobre nossas cabeças não posso ser salvo por ninguém vivo e os mortos não existem a fita está acabando começo a ficar tonto a dormência chegou quem sabe ao coração talvez eu pudesse eu soubesse eu devesse eu quisesse quem sabe mas não chore nem compreenda te digo enfim que o silêncio e o que sobra sempre como em García Lorca solo resta el silêncio un ondulado silêncio os espaço de tempo a nos situar fragmentados no tempoespaçoagora não sei onde fiquei onde estive onde andei nada compreendi desta travessia cega a mesma névoa do parque outra vez a mesma dor de não ser visto elas gritam sua canção de morte este sangue nojento escorrendo dos meus pulsos sobre a cama o assoalho os lençóis a sacada a rua a cidade os trilhos o trigo as estradas o mar o mundo o espaço os astronautas navegando por meu sangue em direção a Netuno e rindo não não quebres nunca os teus invólucros as tuas formas passa.

Lentamente a mão do anel que eu te dei e era vidro depois ri ri muito ri bêbado ri louco ri até te surpreenderes com a tua não dor até te surpreenderes com não me ver nunca mais e com a desimportância absoluta de não me ver nunca mais e com minha mão nos teus cabelos distante invisível intocada no vento.

Perdida a minha mão de espuma abrindo de leve esta porta assim.




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* Os cavalos brancos de Napoleão

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A princípio os cavalos eram mansos. Inofensivos como moças antigas fazendo seu footing na tarde de domingo. Foi só depois de certa convivência, ganhando intimidade, que começaram a tornar-se perigosos, passando da mansidão à secura e da secura à agressividade. Quando isso aconteceu, já tudo estava perdido. Na verdade talvez estivesse desde sempre, pois convenhamos, ver cavalos, e ainda por cima brancos -não é muito normal. E quem sabe a doçura do início fosse apenas um estratagema: se de imediato os cavalos tivessem se mostrado como realmente eram, é provável que Napoleão não os recebesse. E onde eles, pobres cavalos brancos rejeitados, encontrariam outro alguém para seduzir e atormentar? Outra hipótese é que não teriam sido propriamente um mal: Napoleão os teria trazido consigo, latentes, desde o útero materno, e só de repente vieram à tona. Como se aguardassem circunstâncias mais propícias para atacar. Pois eram inteligentes. E prudentes, também.

Antes, antes de tudo, Napoleão era advogado. Carregava consigo um sobrenome tradicional e as demais condições não menos essenciais para ser um bom profissional. Sua vida se arrastava juridicamente, como se estivesse destinado à advocacia. Em sua própria casa, à hora das refeições, todos dias sempre se desenrolavam movimentadíssimos julgamentos.

Dos quais ele era o réu. Acusado de não dar um anel de brilhantes para a esposa nem um fusca para o filho nem uma saia maryquantiana para a filha. Eventuais visitas faziam corpo de jurados, onde às vezes colaboravam criados mais. Íntimos, sempre concordando com a esposa, promotora tenaz e capciosa. Treinado desse jeito, diariamente e com a vantagem de estar na doce intimidade do dulcíssimo lar, não era de admirar que fosse advogado competente. Sobretudo, experiente. Entre papéis de defensor e acusado, dividia-se em paciência. Nome nos jornais, causas vitoriosas, vezenquando faziam-no sorrir gratificado, pensando que, enfim, nem tudo estava perdido, ora. Mas estava. Embora ele não soubesse. Ou quem sabe estava tudo achado e não perdido, de tal maneira estão bem e mal interligados? O fato é que ele não sabia. Não sabendo, não podia lutar. Não podendo lutar, não podia vencer. Não podendo vencer, estava derrotado. Um derrotado em potencial, pois ele viu pela primeira vez.

Deu-se nas férias, na praia, quando olhou para as nuvens. E o fato de ter visto exatamente cavalos ainda mais exatamente, brancos -talvez tivesse mesmo a ver com seu nome, como mais tarde insinuaram os psiquiatras. Se se chamasse Ali ou Mustafá, provavelmente teria visto camelos? ou touros, se seu nome fosse Juan ou Pablo? Mas na primeira visão isso não teve importância. Simplesmente viu, com a simplicidade máxima que há no primeiro movimento do ato de ver. Tão natural achou que cutucou a esposa deitada ao lado, apontando, olha só, Marta, cavalos brancos nas nuvens. Não havia espanto nem temor nas suas palavras. Apenas a reação espontânea de quem vê o belo: mostrar. Marta disse não enche, Napoleão, coisa chata cutucar com este calor.

Como ele insistisse, afastou os raybans e deu uma espiada. Achou que as nuvens tinham mesmo certo jeito de cavalos. Tranqüilizada, passou um pouco mais de bronzeador argentino nas coxas. O que ela não percebia é que os animais estavam além (ou aquém) das nuvens. E entre elas passavam, ora galopantes, ora trotando, uma brancura, uma pureza tão grande equinidade absoluta nos movimentos. Tanta que Napoleão piscou, comovido. E começou a afundar. Porque ver é permitido, mas sentir já é perigoso. Sentir aos poucos vai exigindo uma série de coisas outras, até o momento em que não se pode mais prescindir do que foi simples constatação. Em breve os cavalos se diluíram no azul. Napoleão voltou à sua Agatha Christie.

Nesse dia, nuvens dissipadas, no céu de um azul sem mágoa não havia mais espaço para os cavalos. Só no nublado da manhã seguinte eles voltaram a aparecer. Desta vez, já com o egoísmo de quem intui que a coisa começa a significar, Napoleão não quis dividi-los com ninguém. Afundou neles, corpo despregado e da areia, levíssima levitação, confundindo-se com as nuvens, tão macias as carnes reluzentes, as crinas sedosas, os cascos marmóreos, relinchos bachianos brotando das modiglianescas gargantas, ricos como acordes barrocos. Estendeu as mãos para tocá-los, mas eles se esquivaram pudicos e desapareceram. De volta à areia, Napoleão olhou com certa superioridade para a esposa, achando-a vulgar naquela falsa moreneza tão oposta à brancura dos cavalos.

Começou a cultivá-los. Percebendo-os tímidos, passou a fazer longas caminhadas solitárias pela praia. Percebendo-os líricos, escolheu a hora do pôr-do-sol para seus furtivos encontros. E eles vinham. Agora se deixavam afagar, focinhos abaixados com sestro e brejeirice. Variavam em quantidade, nunca de cor. Como moças-de-respeito, jamais o encontravam sozinhos, embora, imaculadamente brancos. Brancos ou brancas? Éguas ou garanhões? Na verdade Napoleão jamais saberia especificar-lhes o sexo. E que importância tinha? Embora apaixonado, não pretendia dormir com eles(as), portanto era indiferente sua sexualidade. Afagava-os como afagaria uma rosa, vivesse metido em jardins ao invés de tribunais. Como antigos vasos de porcelana, tapetes persas, preciosidades às quais apenas se ama, na tranqüilidade de nada exigir em troca. Tranqüilo, então, ele os(as) amava. Voltava banhado em paz, rosto descontraído, sorrindo para os animais alojados no fundo de suas próprias pupilas. Mulher, filhos, criados, visitas, vizinhos surpreendiam-se ao vê-lo crescer dia a dia em segurança e força. Os habituais júris não mais o perturbavam. Pairava agora infinitamente acima de qualquer penalidade ou multa. Tanto que a esposa chegou a pensar seriamente em perguntar-lhe: o que é a Verdade? pois dessa nem Cristo escapara ileso. Calou -um pouco por ser demasiado católica, medrosa do sacrilégio, mas principalmente por senti-lo ainda além daquela pergunta, embora, orgulhosa, não o confessasse a si mesma.

Voltando à cidade, fim de férias, ele temeu que os cavalos o tivessem abandonado. Realmente, durante dois dias eles desapareceram. Napoleão esqueceu júris, processos, representações, dedicado somente à ausência dos amigos, ponto branco dolorido no seu taquicárdico coração. Fez então o primeiro reconhecimento: eles haviam assumido vital importância. Não podia mais viver sem os cavalos. Dessa certeza, partiu para uma segunda: eram a única coisa realmente sua que jamais tivera em toda a vida.

Mas eles voltaram. Entraram pela janela aberta do tribunal num dia em que ele estava especialmente inflamado na defesa de um matricida. A princípio ainda tentou prosseguir, fingiu não os ver, traição, opção terrível, entre o amor e a justiça, como na telenovela a que sua mulher assistia. Eles não estavam doces. Depois de entrarem pela janela, instalaram-se ríspidos entre os jurados. De onde observavam, secos, inquisidores. Sem sentir, Napoleão começou a falar cada vez mais baixo, mais lento, até a voz esfarelar-se num murmúrio de desculpas, em choque como murmúrio de revolta crescendo dos parentes do réu. Napoleão olhou ansioso para os cavalos, que não fizeram nenhum gesto de aprovação ou ternura. Rígidos, álgidos: esperavam.

O quê? foi a pergunta que ele se fez em pânico escavando o cérebro. Sem resposta, manteve-se encolhido e quieto até o final do julgamento. Estariam zangados?

Por que oh meu Deus, por quê? Mesmo assim acompanharam-no até a porta de casa instalados no banco traseiro do automóvel. Mudos. Napoleão entrou devagar na sala quase escura, criados indecisos entre aproveitar a luz mortiça do entardecer ou acender a luz elétrica. Confuso, enterrou a cabeça nas mãos. Nesse instante, a luz acendeu e um amigo, também advogado, entrou acompanhado de Marta.

AMIGO (carinhoso e complacente) -Não há de ser nada, Napoleão. Isso acontece até com os melhores. Você não deve se desesperar. As coisas voltam a ser como antes.

MARTA (pousando a mão no ombro de Napoleão) -Afinal, foi a primeira vez, meu bem.

NAPOLEÃO (encarando-os, agradecido) –Vocês viram, então? Viram? Ah, eu não sei como explicar Parecia tudo tão bem, tão completo. Eu não entendo o que houve.

AMIGO - Isso acontece, Napoleão.

MARTA - Não se desespere, querido.

AMIGO - Você não teve culpa.

MARTA - Você estava nervoso.

NAPOLEÃO (obsessivo) - Mas vocês repararam na atitude deles? Repararam mesmo?

AMIGO (conciliador) - Natural que ficassem revoltados, Napoleão. Afinal, são parentes, clientes, pagaram os tubos. Queriam um serviço bem feito.

MARTA - Claaaaaro. E, enfim, o cara pegou só sete anos. Não é tanto assim, você pode apelar, pedir o tal de habeas-corpus.

NAPOLEÃO (erguendo-se brusco da poltrona) - Parentes? Clientes? Réu? Habeas-corpus? Mas eu estou falando é dos cavalos, entendem? Dos cavalos, caralho! Os parentes, os réus, os jurados, que se fodam, entendem? Que se fodam. Sem vaselina! O que me interessa são os cavalos!
Marta e o amigo se surpreenderam. E revezaram-se em desculpas, a cólera de Napoleão crescendo, meu Deus, ficou perturbado com o fracasso, Maria, traz um copo d'água, o coração, Napoleão, olha o infarto, uma aspirina, minha filha, calma, Napoleão, pelo amor de Deus, criatura!

Acalmou-se. Pelo menos até os cavalos voltarem, no dia seguinte. Ainda indiferentes remotos. A ira cresceu de novo, medo de perder seu único motivo, seu único apoio. Chamaram o médico. Deu-lhe injeções, calmantes, barbitúricos. Entre períodos de inércia e desespero, Napoleão se dividia. Veio psiquiatra. Devassou a sua vida, fazendo-o corar de vergonha e raiva e indignação. Nunca pensou em dormir com sua mãe? Já teve relações homossexuais? Em caso afirmativo, ativas ou passivas? Já pensou em estrangular a sua esposa? E em dormir com sua filha? Que sensação experimenta quando está defecando? Gosta de sentir dor? Em caso afirmativo, provocada por homem ou mulher?

Complexos de Édipo, Orestes, Agamemnon, Jocasta, Hipólito, Ifigênia, Prometeu, Clitemnestra -toda a mitologia grega foi colocada em função de sua doença.Em apenas dois dias, foi obrigado a ler toda a obra de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes para descobrir quando devia ou não se ofender. Rótulos como sadomasoquista, pederasta, esquizofrênico, paranóico, comunista, ateu, hippie, narcisista, psicodélico, maconheiro, anarquista, catatônico, traficante de brancas (ou brancos?) foram-lhe impostos sucessivamente pelos psicanalistas.

Paciente, passivo, aceitava tudo sem sequer tentar compreender. Da psicoterapia individual passou à de grupo, e desta ao psicodrama, sonoterapia, eletrochoques -submetendo-se inclusive a um novíssimo método: a cavaloterapia, criado especialmente para ele.

Consistia em permanecer durante duas horas diárias no meio de cavalos reais. Exclusivamente pretos, e os mais cavalares possíveis, isto é, malcheirosos, despudorados, arrogantes, etc. Nada conseguia curá-lo. Passava de psicólogo a psiquiatra, a psicanalista; de sanatório a casa de saúde, a hospício. E nada. Enquanto isso, os cavalos mostravam-se cada vez mais agressivos, chegando mesmo à ousadia de investir contra ele. Melancólico, chorava noites inteiras, buscando explicações para a atitude cada vez mais inexplicável de seus antigos companheiros. Os psiquiatras, a esposa, os filhos, os criados, os colegas -todos cresciam em exigências, magoando-o com dúvidas e perguntas suspeitas. Napoleão diminuía em ânimo e saúde. Nervos à flor da pele, recusava-se a comer ou beber e, nos últimos tempos, inclusive em responder às perguntas dos analistas.

Numa noite, deu-se o desfecho. Que, aliás, se armara inevitável desde o princípio. Mais tarde, os enfermeiros comentaram terem ouvido risos, segundo alguns, ou lágrimas, segundo outros. Mas ao certo mesmo, ninguém ficou sabendo como Napoleão morreu. Quando o médico entrou no quarto pela manhã, deparou com o corpo dele rígido sobre a cama. Parada-cardíaca-provocada-por-inanição, atestou logo entre alívio e piedade. Mandou chamar a esposa, filhos, colegas, criados, que vieram em tardias lágrimas inÚteis. Sobre a mesinha de cabeceira, em tinta azul, ficava sua última (ou talvez primeira) exigência. Queria ser conduzido para o cemitério num coche puxado por sete cavalos. Brancos, naturalmente. Foi. Culpada, a esposa gastou no enterro quase todo o seguro prévia e prudentemente feito. Sete palmos, Napoleão foi enterrado. Tivessem aberto o caixão, talvez notassem qualquer coisa como um vago sorriso transcendendo a dureza dos maxilares para sempre cerrados. Ninguém abriu. Tempos depois o zelador espalhou pelas redondezas que vira um homem estranho, nu em pêlo, cabelos ao vento, galopando em direção ao Crepúsculo montado em amáveis cavalos. Brancos, naturalmente.



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* Mel e girassóis





1

Como naquele conto de Cortázar ― encontraram-se no sétimo ou oitavo dia de bronzeado. Sétimo ou oitavo porque era mágico e justo encontrarem-se, Libra, Escorpião, exatamente nesse ponto, quando o eu vê o outro. Encontraram-se, enfim, naquele dia em que o branco da pele urbana começa a ceder território ao dourado, o vermelho diluiu-se aos poucos no ouro, então dentes e olhos, verdes de tanto olharem o sem fim do mar, cintilam feito os de felinos espiando entre moitas. Entre moitas, olharam-se. Naquele momento em que a pele entranhada de sal começa a desejar sedas claras, algodões crus, linhos brancos, e a contemplação do próprio corpo nu revela espaços sombrios de pêlos onde o sol não penetrou. Brilham no escuro esses espaços, fosforescentes, desejando outros espaços iguais em outras peles no mesmo ponto de mutação. E lá pelo sétimo, oitavo dia de bronzeado, passar as mãos nessas superfícies de ouro moreno provoca certo prazer solitário, até perverso, não fosse tão manso, de achar a própria carne esplêndida.

Olharam-se entre palmeiras ― carnívoros, mas saciados, portanto serenos ― pela primeira vez. Quase animais no meio das moitas sombrias em que de repente tornou-se o céu azul redondo, de cetim, o mar verde, pedra semipreciosa, quando se olharam. Ela boiava além da arrebentação, onde a espuma das ondas não atrapalha mais quem tem vontade de contemplar os próprios pés confundidos com a areia branca do fundo do mar. Olhos fechados, deitada de costas na água, maio preto, cabelos espalhados em volta, mãos abertas, pernas abertas, como se trepasse com o sol. Apenas a boca cerrada revelava alguma dureza, mas essa boca se abriu assustada quando ele veio nadando desde a praia, cabeça afundada na água ― e sem querer esbarrou nela.

Foi assim: ela boiava toda aberta, viajando mais longe que aqueles navios cruzando de tardezinha o horizonte, ninguém sabia em direção a onde. Então ele veio, braço após braço, meio tosco, meio selvagem, e de repente num braço estendido à frente do outro a mão desse braço tocou sem querer, por isso mesmo meio bruscamente, a coxa dela. A moça contraiu-se, esponja ferida, projetou o busto e abriu uns olhos meio injetados de sal, de mar, de luz. A mão dele também contraiu-se, e ficaram os dois se olhando, completamente molhados, direto nos olhos, quase meio-dia de sol abrasador, verão a mil. Você sabe, susto de onça, leopardo, nesse olhar que, além dele ou dela, só abarcava um mar imenso. Até que ele falou:

― Desculpe. Ela disse:

― Não foi nada.

Como se não tivessem levado um susto. Hipócritas, sociais, duas pessoas passando quinze dias de férias numa praia qualquer do Havaí ou Itaparica, sorriram amavelmente um para o outro, embaixo dos cabelos encharcados, fingiram que estava tudo bem. E estava, sério. Ele nadou para longe. Ela continuou boiando. Indiferentes. Nadando para longe, em direção àqueles veleiros que não eram reais, mas uma paisagem desenhada e até meio cafona, exatamente do gênero desta que traço agora ― ele olhou para trás e a viu assim como ela estava antes, só que artificialmente agora, depois que ele a vira: olhos fechados, braços e pernas abertos, entregue como se trepasse com o sol. Enquanto ele nadava para longe, meio tosco, meio selvagem, braço após braço, cara afundada na água, ela também abriu um dos olhos. E espiou. Ele nadava para longe dela, uma pedra no meio do caminho, ela pensou, que tinha algumas leituras, sim. Mas uma pedra, supôs, que afastaria com a ponta do sapato, não estivesse de pés nus, afundados na água. Ela agitou os pés nus dentro da água morna afundados. Lugar-comum, sonho tropical: não é excitante viver?


2

Encontraram-se novamente na mesma noite. Desta vez foi diferente. Ele demorou-se um pouco mais na frente do espelho, tramando sobre o corpo de banho tomado a camisa branca, a calça azul-clarinho, bem largas as duas. Mas de maneira alguma pensou nela nem em ninguém mais, enquanto se olhava, garanto. Então foi jantar no restaurante do hotel, aquela coisa de bananas & abacaxis decorando saladas, araras & tucanos empoleirados sobre suflês, como um filme meio B, até mesmo meio C, e de repente houvesse um número rápido com Carmen Miranda nas escadarias, não espantaria.

Ela não se demorou. Urbana fiel ao preto, jogou a seda de uma blusa sobre o velho jeans meio arrebentado, e só entregou certa expectativa ― naquele momento, honestamente, nem ela saberia de quê ― quando acrescentou um pequeno fio de pérolas, quase invisível. E jogou o cabelo comprido para o lado, num gesto rápido de mulher, tão de mulher que é desses preferidos pelos travestis. Então desceram. Só uma forma de dizer, porque não, não havia escadarias. Também, não cheguemos a tanto. Eram como bangalôs dispostos lado a lado, e para chegar ao restaurante você vinha por uma espécie de corredor-varanda coberto de tralhas artesanais, redes penduradas entre colunas em arco. Se você quer saber, havia sim cestos de palha, peixes empalhados pendurados nas paredes caiadas de branco, além de grandes vasos de cerâmica ― que, inevitável, faziam lembrar que Morgana e Ali Babá ― estrategicamente espalhados no percurso. Morenos de calças brancas e peito nu tocando violão jogados em redes, também havia. E moças morenas de cabelos soltos, vestidos estampados de flores miudinhas, caminhando tão naturais entre as cerâmicas que tudo aquilo parecia de verdade. Aquela coisa rústica: todos morenos, ardentes, arfantes, ecológicos, contratados pelo hotel. Vieram caminhando por esse corredor, ele de branco, ela de preto, até entrarem no que chamavam, certa pompa só medianamente convincente, de O Grande Salão.

Não se encontraram de imediato. Ela ficou numa mesa do lado esquerdo, com a Professora Secundária Recuperando-se Do Amargo Desquite, a Secretária Executiva Louca Por Uma Transa Com Aqueles Garotões Gostosos e a Velha Tia Solteirona Cansada De Cuidar Dos Sobrinhos. Ele sentou numa mesa à extrema direita ― nada ideológico ― junto do Casal Em Plena Segunda Lua De Mel Arduamente Conquistada e o Jogador De Basquete Em Busca De Uma Vida Mais Natural. Conversando, durante o suflê de camarão e o ponche de champanha, que era um hotel cinco estrelas, com certo sucesso ela citou Ruth Escobar, Regina Duarte, uma matéria da revista Nova e arriscou Susan Sontag, mas ninguém entendeu. Enquanto ele amassava o segundo maço de Marlboro e tinha um pouco de preguiça de defender Paulo Francis, mas concordou que os ministérios, tanto para a cultura quanto para o esporte ou a educação, não eram lá essas coisas. Além do mais, tinha saudade, sim, dos Aero Willys.

Encararam-se mesmo foi na hora do doce de coco em lascas com banana amassada. Desta vez, foi ela quem esbarrou nele. Então ele olhou-a com aqueles olhos meio fatigados de quem está suportando uma noite extremamente chata, para ver uma moça que já tinha visto antes. Cabelos presos na nuca, blusa de seda preta, jeans arrebentados, uma moça com olhos de quem está suportando, na boa, uma noite extremamente chata, e só lembrou vagamente que a conhecia de algum lugar. Mas ela localizou naquele homem moreno, nariz descascando um pouco na ponta, exatamente o cara que tinha esbarrado nela na praia, só que de cabelos secos, vestido. Ela sorriu, porque tinha esses lances assim, meio provocantes, e disse:

― Agora estamos quites.

Meio pateta, como costumam ser os homens, em férias ou não, ele rosnou:

― Hã?

E quando ela pediu com-licença e ele se afastou um pouco foi que, vendo-a pelas costas, eretas demais, um tanto tensas, reconheceu a-moça-da-bóia e falou:

― Tudo bem? Ela disse:

― Jóia.

Depois serviram-se, comeram, entediaram-se pelo resto da noite, que não era muito longa ― a não ser que você quisesse chafurdar em pântanos de daiquiri para depois chamar, também podia, por telefone, um daqueles rapazes de calças brancas, sem o violão, naturalmente, ou uma daquelas moças de vestido estampado. Então inventar qualquer história que resultaria num cheque a menos no talão e, quem sabe, alguma espécie de prazer suarento e, esperava-se, totalmente ― ou pelo menos um pouco ― selvagem. Eles não queriam isso. Nessa noite, nessa altura, nesta história decididamente: não. De longe, olharam-se distraídos, tomaram seus cafés, fumaram seus cigarros, pediram licença, debruçaram-se um pouco pelas varandas ao som de é-doce-morrer-no-mar ou minha-jangada-vai-sair-pro-mar. Depois, delicadamente foram dormir. Sozinhos.

3

Antes de dormir, ele fumou três Marlboro. Ela tomou meio Dienpax. Ele folheou uma biografia de Dashiell Hammett, tão fodido coitado, pensou, e Lilian Hellman seria mesmo uma naja? e apagou a luz, virou pro outro lado, tentou ficar de pau duro entre os lençóis cheirando pensou que a algas, mas alga não tem cheiro, qualquer coisa verde, enfim, então dormiu no meio de uma punheta sem objeto, mera mania. Ela abriu Margaret Atwood, mas que coisa mais lenta toda aquela história de mulheres vestidas de vermelho, depois Doris Lessing, mas era meio porco aquele negócio da velha morando num basement, então apagou a luz e sem querer pensou Carlos, mas não vinha mais nem um sinal de emoção, aí dormiu aconchegada na própria pele queimada de sol. Tão maravilhoso & repousante, os dois pensaram pouco antes de dormir.

Manhã seguinte, estendendo a toalha, nota gigante felpuda de um dólar, ela espiou por baixo dos raibans gatinho em todas as direções, não que procurasse alguém, até localizá-lo, sem planejar, a poucos metros. Um homem, verdade, com certa barriga, nada de grave, mas ombros largos, pernas fortes, mãos na cintura, atrevidamente solitário. Ele olhava para ela, pura coincidência. Ela sorriu, pavloviana. Ele levantou a mão. Ela também levantou a mão. Paradas assim no ar, por um momento as mãos dele e dela diziam qualquer coisa como oi, você aí. Qualquer coisa assim, nada a ver. Meticulosa, pós-naturalista, ela passou o urucum na pele, depois deitou-se de costas ao sol. Enquanto ele, sem creme nem óleo, deitava-se de bruços na areia pura (e tantos parasitas, micoses, meu Deus), que os homens são assim, ela pensou, tão rudes. E teve um arrepio. Foi nesse arrepio que soube.

Ele soube quando, deitado de bruços, por baixo do fio sintético do calção preto, o pau ficou mais duro. Ele mexeu devagar a bunda, sem ninguém perceber, num movimento de entra e sai, você sabe, de alguma coisa úmida. Enquanto isso, olhavam-se. Ela, por trás dos rai¬bans gatinho; ele, das sobrancelhas franzidas, das pálpebras apertadas por causa do sol cada vez mais forte. Oblíquos, cada um à sua maneira, começavam a saber.

Passou um negrão vendendo coisas. Ele tomou uma latinha de cerveja, ela achou brega. Ela tomou um suco de limão, ele achou chique, mesmo em copo de plástico. Então ela quase começou a dormir no sol mais e mais quente, umas memórias misturavam-se às fantasias, e ia até resistir ao sono quando viu a Secretária Executiva aproximando-se com uma Estonteante Tanga Tigrada, e preferiu afundar de vez naquela bobeira suada que lhe trazia de volta um nome de homem, certas amarguras, espantos, flashes-backs, ela de saia pregueada azul-marinho, uma professora de nariz enorme dizendo você vai longe, menina. Ela ia longe, sim ― para Madagascar ou Bali, onde escreveria um livro definitivo sobre A Sabedoria Que As Mulheres Ocidentais Conquistaram Depois Da Grande Desilusão De Tudo Inclusive Dos Homens.

De repente, porque algo acontecera no seu campo de visão, abriu os olhos. Coberta de suor, atordoada como uma menina de saia pregueada azul-marinho, livros apertados contra os pequenos seios. Por entre duas coxas masculinas, peludas, musculosas, ela viu primeiro a crista do mar e um surfista cavalgando ondas, mas como se estivesse enquadrado por aquele limite que, só depois de algum tempo, passando a mão na testa, percebeu que eram duas coxas masculinas. Ela olhou para ele: hein?

Ele estava parado ao lado dela. Mão esquerda na cintura, direita sobre os olhos para proteger-se do sol, ele olhava para ela. Aquela mulher não muito jovem, estendida de costas sobre uma toalha branca, encarando de frente o sol. Era a segunda vez que ele a via assim, encarando de frente o sol. Quando ele percebeu que ela olhava para ele, flexionou as coxas e foi-se apoiando aos poucos nos próprios pés dobrados, até ficar quase ao nível dela, deitada na areia. Meio sem jeito, meio óbvio demais, mas tudo era verão, meio sem assunto e sem saber direito por quê, ele perguntou assim:

— Como vai? Ela disse:

― Legal. E você?


4

Conversaram, no oitavo ou nono dia. Nadaram juntos na praia, primeiro. Depois ela sentiu sede, ele pagou outro suco de limão, tomou outra cerveja. Deitados na areia, lado a lado, falaram. Se você quer que eu conte, repito, mas não é nada original, garanto. Ela era qualquer coisa como uma Psicóloga Que Sonhava Escrever Um Livro; ele, qualquer coisa como um Alto Executivo Bancário A Fim de Largar Tudo Para Morar Num Barco Como O Amir Klink. Ela, que quase não fumava, aceitou um cigarro. E disse que gostava de Fellini. Ele concordou: demais. Para surpresa dela, ele falou em Fassbinder. Ela foi mais além, rebateu com Wim Wenders. Ele então teve um pouco de medo, recuou e contemporaneizou em Bergman. Ela disse ah, mas avançou ainda mais e radicalizou em Philip Glass. Ele disse não vi o show, e começou a discorrer sobre minimalismo: um a zero para ele. Ela aproveitou para fazer uma extensa, um tanto tensa, digressão sobre qualquer coisa como Identidades Da Estética Minimalista Com O Feeling Da Bossa-Nova. Ele ouviu, espantado: um a zero para ela.

Empatados, encontraram-se em João Gilberto, que ouviam sozinhos em seus pequenos mas bem decorados apartamentos urbanos, quando queriam abrir o gás, jogar-se pela janela ou cortar os pulsos, e não tinham ninguém na madrugada. Encontraram-se tanto que, mais de meio-dia, ela aceitou também uma cerveja. Meio idiotas, mas tão felizes, ficaram cantando O Pato, enquanto todos aqueles Atletas Dispostos A Tudo Por Um corpo Mais Perfeito, Gays Fugindo Da Paranóia Urbana Da Aids, Senhoras Idosas Porém Com Tudo Em Cima, e por aí vai, retiravam-se em busca do almoço. O sol queimava queimava. Então ele viu um barquinho a deslizar, no macio azul do mar, mostrou para ela, que viu também, e apontaram, e riram, e o sol não parecia tão ardente ― era o oitavo ou nono dia de bronzeado. Aquele, quando o moreno já dominou a pele e você pode, sem susto, tirar os raibans, como ela tirou, para encarar a ele ou a qualquer um outro, direto nos olhos. Que sorriam. Tudo era tão tropical, estavam de férias, morreram de rir, falaram a gente se vê, sem pressa, ao se despedirem na porta dos bangalôs, o dela era o número 19, ele marcou na cabeça. E foram cada um tomar seu banho de água doce.

Descobriram à noite, dançando Love is a Many Splendored Thing. No começo afastados, depois cada vez mais próximos, à medida que o maestro do conjuntinho enveredava por ciladas como Beatles, Caetano ou Roberto Carlos. Cantaram juntos Eleanor Rigby, tinham os dois mais de trinta, e ela de repente ficou toda arrepiada com vou-cavalgar-por-toda-a-noite, encostou a cabeça no ombro dele. Ele apertou mais forte na cintura dela. E foram assim, rodando meio tontos, às vezes sentando para falar de Pessoa, Maísa ou Clarice. Aos poucos descobrindo, localizando, sitiando.

Ele tentava esquecer uma mulher chamada Rita. Conforme o uísque diminuía na garrafa, Rita misturava-se aos poucos com outra chamada Helena, ele repetia como-amei-aquela-mulher-nunca-mais-nunca-mais, enquanto ela sentia algum ódio, mas não dizia nada, toda madura repetindo isso-passa-questão-de-tempo-tudo-bem. Para espanto dele, ela falou o nome daquele homem de antes, de outros também, Alexandre, Lauro, Marcos, Ricardo ― ah os Ricardos: nenhum presta ― e ele também sentiu certo ódio, nada de grave, normal, tempos modernos, mero confronto de descornos. Falaram então sobre as paixões, os enganos, as carências e todas essas coisas que acontecem no coração da gente e tudo, e nada. Dançaram de novo. Ele achava tão bom debruçar o rosto naquela curva do pescoço dela. Ela achava um pouco forte estar se exibindo assim com um homem afinal desconhecido debruçado desse jeito no pescoço dela, mas encostava mais e mais a bacia na bacia dele ― a pelve, a pelve, repetia, mentalmente ensaiando passos de dança e-um-e-dois-e-três ―, um homem tão abandonado e limpinho cheirando não sabia ainda se a Paço Rabanne ou Eau Sauvage, seria Phebo? cheiro de homem direito decente e porra caralho: afinal, estavam de férias. E livres, mas esse maldito vírus impõe prudência. Ela deixou que a mão dele descesse até abaixo da cintura dela. E numa batida mais forte da percussão, num rodopio, girando juntos, ela pediu:

― Deixa eu cuidar de você. Ele disse:

― Deixo.

5

Assim foram pelos dias, que não eram muitos mais. Quatro, cinco, nem uma semana. Caminhavam descalços na areia, à noite, à beira-mar ― juro. Devagar, as mãos se tocavam: a tua é tão longa, a tua tão quadrada. Ele não queria entrar noutra história, porque doía. Ela não queria entrar noutra história, porque doía. Ela tinha assumido seu destino de Mulher Totalmente Liberada Porém Profundamente Incompreendida E Aceitava A Solidão Inevitável. Ele estava absolutamente seguro de sua escolha de Homem Independente Que Não Necessita Mais Dessas Bobagens De Amor. Caminhavam assim, lembrando juntos letras de bossa-nova. Ela imitava Nara Leão: se-alguém-perguntar-por-mim. Ele, Dick Farney: pelas-manhãs-tu-és-a-vida-a-cantar. Nada sabiam de punks, darks, neons, cults, noirs. Eram tão antigos caminhando de mãos dadas naquela areia luminosa, macia de pisar quando os pés afundam nela lentamente. Carne de lagosta, creme, neve. Tão bom encontrar você, um cantinho, um violão.

Beijavam-se depois com certa ardência excessiva na porta do bangalô dela. Ou dele, quando ele bebia demais e não segurava, mas isso era tolerável, embora freqüente. Na boca, só umas três vezes. A lua era tão cheia, eles tão tímidos. De língua, uma única. Meio contraídos ― ele tinha uma ponte fixa do lado esquerdo superior; ela, um pino segurando um pré-molar do lado direito inferior. Ele a achava tão digna & superior, ela o achava tão elegante & respeitador. E pensavam: isto é uma historinha de férias, não leva a nada, passatempo. Se ele tivesse amigos por ali, diriam come essa mina logo, cê tá marcando, cara. Se ela tivesse amigas ali, brincariam de bruxas de Eastwick, discutiriam cheiros, volumes, investigariam saldos no talão de cheques. Sem ninguém, na real: ele a deixava ou ela o deixava. Era só, depois iam dormir. Então sonhavam um com o outro no escuro cinco estrelas de seus bangalôs com antena parabólica.

Ela deita de costas na cama, ele pensava, só de calcinhas. Ela tem seios pequenos que ele fecharia dentro das duas mãos, como quem segura duas maçãs daquelas verdinhas. Eu deito por cima dela, afundo a cabeça no seu ombro. Ela passa a mão direita por trás das minhas costas, me lambe na orelha, passa a mão nas minhas costas, vai descendo, arranha sem machucar, ela tem as unhas curtas, até em cima da minha bunda, então começa a descer a minha cueca, eu fico sentindo meu peito apertado contra os seios miúdos dela, enquanto ela continua a descer devagarinho a minha cueca e eu começo a sentir também a pressão de meu pau contra seu umbigo, até a cueca chegar aos joelhos e eu comprimo meu pau contra sua barriga, então ela diz gracinha-gracinha, e quando a cueca chega nos meus tornozelos eu a expulso para o meio do quarto com um pontapé e fico inteiro nu contra ela que está quase inteiramente nua também, porque vou descendo sua calcinha devagar enquanto digo: minha mãe, irmã, esposa, amiga, puta, namorada ― te quero.

Ele vem por cima de mim, ela pensava, enquanto o espero deitada na cama. Ele afunda em cima de mim como um bebê que quisesse mamar no meu seio que então empino, oferecendo o bico duro a ele. Ele passa a mão por trás das minhas costas que arqueio um pouco, para que ele possa me apertar pela cintura, enquanto me afundo mais no corpo dele, e desço suas cuecas devagar até que ele as jogue com um pontapé no meio do quarto ao mesmo tempo em que sua mão na minha cintura desceu minhas calcinhas até jogá-las no meio do quarto. Então nos apertamos inteiramente nus um contra o outro, enquanto ele entra em mim, tão macio, e ele me diz você é a mulher que eu sempre procurei na minha vida, e eu digo você é o homem que eu sempre procurei na minha vida, e nos afogamos um no outro, e nos babamos e lambuzamos da baba da boca e dos líquidos dos sexos um do outro enquanto digo: meu pai, irmão, marido, amigo, macho, príncipe encantado ― te quero.


6

No final dos quinze dias, estavam inteiramente dourados. Nadaram: ela falou, entre braçadas, que estava com saudade da Avenida Paulista, pique, buzina, relógio digital. Comeram camarão: ele falou que estava com saudade do Rodeio, picanha fatiada, salada de agrião, dry-martini. Correram juntos pela praia sem falar nada. Mas tudo em qualquer movimento dizia que pena, baby, o verão acabou, postal colorido, click: já era. Fumaram cigarros meio secos sobre a areia, olhando o horizonte, falando forçados do Livro Que Ela Ia Escrever e do Barco Onde Ele Ia Morar, porque afinal não eram animais, respeitavam o in-te-lec-to um do outro. Mais de trinta anos, quase dez de análise, nenhum laço, alguma segurança, pura liberdade. Todo aquele simulacro de Havaí em volta: maduros, prontos. À espera.

Ele ofereceu outro Marlboro, ela aceitou. Ela passou Copertone nas costas dele, ele deixou. Ela falou que bom encontrar você no meio de gente tão medíocre, ele sorriu envaidecido. Ele disse nunca pensei encontrar uma mulher como você num lugar como este (mas não é nenhum puteiro, ela desconfiou), ela sorriu lisonjeada. Ele esticou a perna, o pé dele ficou bem ao lado do pé dela. O pé dela era branco, arqueado pelos muitos anos de dança. O pé dele era moreno, joanete saliente, unhas machucadas, pé de executivo. Como por acaso, o pé dele debruçou sobre o pé dela. Ela deixou ― último dia, não havia mais tempo. Manhã seguinte, acabou: the end ― sem happy? Ela sentiu-se um pouco tonta naquele sol todo, ele perguntou se queria uma água. Ela suspeitou que ele a achava uma coroa meio chata porque afinal, nesses dias todos, nem tinha tentado qualquer coisa mais. Ele suspeitou que ela o achava um cara inteiramente careta porque, nesses dias todos, nem tinha tentado qualquer coisa mais.

Eles se olharam com tanta suspeita e compreensão, mais de meio-dia na praia escaldante. Os olhos dele lacrimejavam de tanta luz. Ela emprestou a ele os raibans gatinho, depois riu enquanto ele colocava e fazia uma pose meio de bicha. Será, ela suspeitou. E olhou para as garotas que jogavam vôlei de uma maneira tão decidida que será, ele suspeitou. Tempos modernos, vai saber. O sol continuava a descer, tomaram três latinhas de cerveja cada um, lembraram da letra inteira de tá-fazendo-um-ano-e-meio-amor-que-o-nosso-lar-desmoronou, ela pensou com desgosto no Fiat verde avançando pelo Minhocão, oito da manhã, ele pensou com desgosto nos três telefones à sua mesa, e os dois pensaram com tanto desgosto nessas coisas todas que tomaram mais uma cerveja, o sol continuava descendo. Não tinha mais ninguém na praia quando viram o sol, bola vermelha, mergulhar no mar em direção ao Japão. Enquanto amanhece lá, anoitece aqui, ele disse. Combinaram vagamente um sushi na Liberdade. Mas era o último dia, puro verão, e não estavam nem um pouco a fim um do outro, que pena.


7

Comeram lagosta, à noite. Ela toda de branco, cabelos soltos, dourados de sol, meio queimados de sal. Ele todo de preto, camisa aberta ao peito, pele novinha em folha na ponta do nariz comprido. Depois dançaram, sempre dançavam. Quase não disseram nada. Soprava uma brisa morna do mar, bem assim, agitando a copa das palmeiras. Eu sou uma mulher tão sozinha, ela disse de repente. Eu sou um homem tão sozinho, ele disse de repente. Foi quando o conjuntinho começou a tocar Lygia, de Tom Jobim, que eles falaram juntos: o João um dia devia gravar essa, já gravou? não me lembro: e-quan-do-eu-me-apaixonei-não-passou-de-ilusão. Apertaram-se tanto um contra o outro, sem nenhuma intenção, só enlevo mesmo, que não perceberam a pista esvaziando, e de repente eram três, quase quatro da madrugada. O ônibus até o aeroporto saía às oito, o dela, às nove, o dele, e continuavam os dois no meio da pista, sem conseguir parar de dançar coisas como Moonlight Serenade, ou As Time Góes By, músicos cúmplices. Eles eram tão colonizados, tão caretas e carentes, eles estavam tão perdidos no meio daquela fantasia sub-havaiana que já ia acabar. Ela era só uma moça querendo escrever um livro e ele era só um moço querendo morar num barco, mas se realimentando um do outro para. Para quê? Eles pareciam não ter a menor idéia.

O cheiro dele era tão bom nas mãos dela quando ela ia deitar, sem ele. O cheiro dela era tão bom nas mãos dele quando ele ia deitar, sem ela. O corpo dela se amoldava tão bem ao dele, quando dançavam. Ele gostava quando ela passava óleo nas suas costas. Ela gostava quando, depois de muito tempo calada, ele pegava no seu queixo perguntando ― o que foi, guria? Ele gostava quando ela dizia sabe, nunca tive um papo com outro cara assim que nem tenho com você. Ela gostava quando ele dizia gozado, você parece uma pessoa que eu conheço há muito tempo. E de quando ele falava calma, você tá tensa, vem cá, e a abraçava e a fazia deitar a cabeça no ombro dele para olhar longe, no horizonte do mar, até que tudo passasse, e tudo passava assim desse jeito. Ele gostava tanto quando ela passava as mãos nos cabelos da nuca dele, aqueles meio crespos, e dizia bobo, você não passa de um menino bobo.

Como nas outras noites, ele a deixou na porta do bangalô 19, quase cinco da manhã, pela última vez. Mas diferente das outras noites, ela o convidou para entrar. Ele entrou. Tão áspero lá dentro, embora cinco estrelas, igual ao dele. Ele não sabia o que fazer, então ficou parado perto da porta enquanto ela abria a janela para que entrasse aquela brisa morna do mar. Ela parecia de repente muito segura. Ela apertou um botão e, de um gravador, começou a sair a voz de Nara Leão cantando These Foolishing Things: coisas-assim-me-lembram-você. Ela veio meio balançando ao som do violão e convidou-o para dançar, um pouco mais. Ele aceitou, só um pouquinho. Ele fechou os olhos, ela fechou os olhos. Ficaram rodando, olhos fechados. Muito tempo, rodando ali sem parar. Ele disse:

― Eu não vou me esquecer de você. Ela disse:

― Nem eu.

Ele afastou-a um pouco, para vê-la melhor. Ela sacudiu os cabelos, olhou bem nos olhos dele. Uma espécie de embriaguez. Não só espécie, tanta vodca com abacaxi. Eles pararam de dançar. Nara Leão continuava cantando. A luz da lua entrava pela janela. Aquela brisa morna, que não teriam mais no dia seguinte. Ele a viu melhor, então: uma mulher um pouco magra demais, um tanto tensa, cheia de idéias, não muito nova ― mas tão doce. As duas mãos apoiadas nos ombros dele, assim afastando os cabelos, no mesmo momento ela o viu melhor: um homem não muito alto, ar confuso, certa barriga, não muito novo ― mas tão doce. Que grande cilada, pensaram. Ficaram se olhando assim, quase de manhã.

Ela não suportou olhar tanto tempo. Virou de costas, debruçou-se na janela, feito filme: Doris Day, casta porém ousada. Então ele veio por trás: Cary Grant, grandalhão porém mansinho. Tocou-a devagar no ombro nu moreno dourado sob o vestido decotado, e disse:

― Sabe, eu pensei tanto. Eu acho que. Ela se voltou de repente. E disse:

― Eu também. Eu acho que.

Ficaram se olhando. Completamente dourados, olhos úmidos. Seria a brisa? Verão pleno solto lá fora. Bem perto dela, ele perguntou:

― O quê? Ela disse:

― Sim.

Puxou-o pela cintura, ainda mais perto. Ele disse:

― Você parece mel. Ela disse:

― E você, um girassol.

Estenderam as mãos um para o outro. No gesto exato de quem vai colher um fruto completamente maduro.




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* Linda, uma história horrível



Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro ― agora, que cor? ― e ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta.

Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim ― de fora, de dentro da casa ―, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois.

― Tu não avisou que vinha - ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como que ― saudade, seja-benvindo-que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil.
Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido ― cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro.

― A senhora não tem telefone ― explicou. ― Resolvi fazer uma surpresa.
Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a cristaleira, os porta-retratos empoeirados. A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho.

― Sai, Linda ― ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. ― Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte.

― Que idade ela tem? ― ele perguntou. Que esse era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos transversos, pelas perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe.

― Sei lá, uns quinze. ― A voz tão rouca. ― Diz que idade de cachorro a gente multiplica por sete.
Ele forç
ou um pouco a cabeça, esse era o jeito:

― Uns noventa e cinco, então.

Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em volta como se acabasse de acordar:

― O quê?

― A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e cinco anos.

Ela riu:

― Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo.

― Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros. ― Quer um café?

― Se não der trabalho ― ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana pela cozinha, seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta, encostado na porta.

As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar ― enquanto ele via. Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na doença e na miséria ― ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.

― Tá fresquinho ― ela serviu o café. ― Agora só consigo dormir depois de tomar café.

― A senhora não devia. Café tira o sono. Ela sacudiu os ombros:

― Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário. A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num vídeo-cassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.

― Vá dormir ― pediu. ― É muito tarde. Eu não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone.

Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele enquanto tomava um gole de café.

― Que que foi? ― perguntou, lenta. E esse era o tom que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos.

― Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo.

Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe:

― Me dá o fogo.

Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele. Carícia torta:

― Bonito, o isqueiro.

― É francês.

― Que é isso que tem dentro?

― Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só que este é transparente, nos outros a gente não vê.

Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro, o líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da mesa, ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantada com o por trás do verde, líquido dourado.

― Parece o mar ― sorriu. Bateu o cigarro na borda da xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. ― Então quer dizer que o senhor veio me visitar? Muito bem. Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela.

― Vim, mãe. Deu saudade.

Riso rouco:

― Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Quem se importa com um caco velho?

Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada:

― Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar sabendo. E não ia dar no jornal. Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava uma lasca da borda da xícara.

― É sina ― disse. ― Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai morreu só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar. Uma coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. ― Jogou longe a bolinha com a pintura da xícara. ― E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele queria.

― Já faz tempo, mãe. Esquece ― ele endireitou as costas, doíam. Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro, uma semana, vizinhos telefonando. Passou as pontas dos dedos pelos losangos desbotados da toalha. ― Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha?

Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de manchas marrons segurando o cigarro quase no fim.

― E aguentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que me esconder no dia das visitas, Deus me livre. A velha, a louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. ― Bateu o cigarro. ― E como se não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda junto? Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela ganiu mais forte.

― Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que.

Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada.

― Deixa eu te ver melhor ― pediu.

Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás dela.

― Tu está mais magro ― ela observou. Parecia preocupada. ― Muito mais magro.

― É o cabelo ― ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. ― E a barba, três dias.

― Perdeu cabelo, meu filho.

― É a idade. Quase quarenta anos. ― Apagou o cigarro. Tossiu.

― E essa tosse de cachorro?

― Cigarro, mãe. Poluição.

Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou-, é agora, nesta contramão Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo.

― Mas vai tudo bem?

― Tudo, mãe.

― Trabalho?

Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele:

― Saúde? Diz que tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes.

― Graças a Deus ― ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco. ― E a dona Alzira, firme?

A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos, ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os ombros:

― Coitada. Mais esclerosada do que eu.

― A senhora não está esclerosada.

― Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro? ― Esperou um pouco, ele não disse nada. ― A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando, chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me dei conta.

― A Cândida morreu, mãe.

Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas dormissem.

― Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? ― Abriu os olhos. ― Quer comer alguma coisa, meu filho?

― Comi no avião.

Ela fingiu cuspir de lado, outra vez.

― Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui?

― Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão. ― Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. ― Molhou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. ― Sabe que eu gostei mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente, como é que tu aguenta?

― A gente acostuma, mãe. Acaba gostando.

― E o Beto? ― ela perguntou de repente. E foi baixando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos dele.

Se eu me debruçasse? ― ele pensou. Se, então, assim. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A barata tinha desaparecido.

― Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele. Ela voltou a olhar o teto:

― Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a cadeira do restaurante pra mim sentar. Nunca ninguém tinha feito isso.

― Apertou os olhos. ― Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome de gringo.

― Casserole, mãe. La Casserole. ― Quase sorriu, ele tinha uns olhos de menino, lembrou. ― Foi boa aquela noite, não foi?

― Foi ― ela concordou. ― Tão boa, parecia filme. ― Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela.

― O Beto gostou da senhora. Gostou tanto ― ele fechou os dedos. Assim fechados, passou-os pelos pêlos do próprio braço. Umas memórias, distância. ― Ele disse que a senhora era muito chique.

― Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada. ― Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspirou. ― Tão bonito. Um moço tão fino, aquilo é que é moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem alto, bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela calça rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço assim tão fino, de tênis? ― Voltou a olhar dentro dos olhos dele. ― Isso é que é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo.

― A gente não se vê faz algum tempo, mãe.

Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados. Embora cega, também parecia olhar para ele. Ficaram se olhando assim. Um tempo quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros cheios, xícaras vazias ― os três, ele, a mãe e Linda.

― E por quê?

― Mãe ― ele começou. A voz tremia. ― Mãe, é tão difícil ― repetiu. E não disse mais nada.
Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher xícaras, colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e ― como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo ― disse:

― Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro. Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro ― cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor.

― Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo, dorme. bem.

Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela escada até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da cozinha.
Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato do avô ― rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio do campo, pensou, morreu só com um revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou, gotas de uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela lambeu o tapete gasto, olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido.
Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque.
Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada ― agora, que cor? ―, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios.

― Linda ― sussurrou. ― Linda, você é tão linda, Linda.




.
.

* Os sapatinhos vermelhos


Tinha terminado, então. Porque a gente, alguma coisa dentro da gente, sempre sabe exatamente quando termina - ela repetiu olhando-se bem nos olhos, em frente ao espelho. Ou quando começa: certo susto na boca do estômago. Como o carrinho da montanha-russa, naquele momento lá no alto, justo antes de despencar em direção. Em direção a quê? Depois de subidas e descidas, em direção àquele insuportável ponto seco de agora.

Restava acender o cigarro, e foi o que fez. No momento de dar a primeira tragada, apoiou a face nas mãos e, sem querer, esticou a pele sob o olho direito. Melhor assim, muito melhor. Sem aquele ar desabado de cansaço indisfarçável de mulher sozinha com quase quarenta anos, mastigou sem pausa nem piedade. Com os dedos da mão esquerda, esticou também a pele debaixo do outro olho. Não, nem tanto, que assim parecia uma japonesa. Uma japa, uma gueixa, isso é que fui. A putinha submissa a coreografar jantares à luz de velas ― Glenn Miller ou Charles Aznavour? ―, vertendo trêfega os sais ― camomila ou alfazema? ― na água da banheira, preparando uísques ― uma ou duas pedras hoje, meu bem?

Nenhuma pedra, decidiu. E virou a garrafa outra vez no copo. Aprendera com ele, nem gostava antes. Tempo perdido, pura perda de tempo. E não me venha dizer mas teve bons momentos, não teve não? A cabeça dele abandonada em seus joelhos, você deslizando devagar os dedos entre os cabelos daquele homem. Pudesse ver seu próprio rosto: nesses momentos você ganhava luz e sorria sem sorrir, olhos fechados, toda plena. Isso não valeu, Adelina?

Bebeu, outro gole, um pouco sôfrega. Precisava apressar-se, antes que a quinta virasse Sexta-Feira Santa e os pecados começassem a pulular na memória feito macacos engaiolados: não beba, não cante, não fale nome feio, não use vermelho, o diabo está solto, leva sua alma para o inferno. Ela já está lá, no meio das chamas, pobre alminha, nem dez da noite, só filmes sacros na tevê, mantos sagrados, aquelas coisas, Sexta-Feira da Paixão e nem sexo, nem ao menos sexo, isso de meter, morder, gemer, gozar, dormir. Aquela coisa frouxa, aquela coisa gorda, aquela coisa sob lençóis, aquela coisa no escuro, roçar molhado de pêlos, baba e gemidos depois de ― quantos mesmo? ― cinco, cinco anos. Cinco anos são alguma coisa quando se tem quase quarenta, e nem apartamento próprio, nem marido, filhos, herança: nada. Ponto seco, ponto morto.

Ué, você não escolheu? Ele ficou então parado à frente dela, muito digno e tão comportadamente um-senhor-de-família-da-Vila-Mariana dentro do terno suavemente cinza, gravata pouco mais clara, no tom exato das meias, sapatos ligeiramente mais escuros. Absolutamente controlado. Nem um fio de cabelo fora do lugar enquanto repetia pausado, didático, convincente ― mas Adelina, você sabe tão bem quanto eu, talvez até melhor, a que ponto de desgaste nosso relacionamento chegou. Devia falar desse jeito mesmo com os alunos, impossível que você não perceba como é doloroso para mim mesmo encarar este rompimento. Afinal, a afeição que nutro por você é um fato.

Teria mesmo chegado ao ponto de dizer nutro? Teria, teria sim, teria dito nutro & relacionamento & rompimento & afeto, teria dito também estima & consideração & mais alto apreço e toda essa merda educada que as pessoas costumam dizer para colorir a indiferença quando o coração ficou inteiramente gelado. Uma estalactite ― estalactite ou estalagmite? merda, umas caíam de cima; outras subiam de baixo, mas que importa: aquela lança fininha de gelo afiado — cravada, com extrema cordialidade no fundo do peito dela. Vampira, envelheceria séculos lentamente até desfazer-se em pó aos pés impassíveis dele. Mas ao contrário, tão desamparada e descalça, quase nua, sem maquilagem nem anjo de guarda, dentro de uma camisola velha de pelúcia, às vésperas da Sexta-Feira Santa, sozinha no apartamento e no planeta Terra.

Esmagou o cigarro, baixou a cabeça como quem vai chorar. Mas não choraria mais uma gota sequer, decidiu brava, e contemplou os próprios pés nus. Uns pés pequenos, quase de criança, unhas sem pintura, afundados no tapetinho amarelo em frente à penteadeira. Foi então que lembrou dos sapatos. Na segunda-feira, tentando reunir os fragmentos, não saberia dizer se teria mesmo precisado acender outro cigarro ou beber mais um gole de uísque para ajudar a idéia vaga a tomar forma. Talvez sim, pouco antes de começar a escancarar portas e gavetas de todos os armários e cômodas, à procura dos sapatos. Que tinham sido presente dele, meio embriagado e mais ardente depois de um daqueles fins de semana idiotas no Guarujá ou Campos do Jordão, tanto tempo atrás. Viu-se no espelho de má qualidade, meio deformada à distância, uma mulher descabelada jogando caixas e roupas para os lados até encontrar, na terceira gaveta do armário, o embrulho em papel de seda azul-clarinho.

Desembrulhou, cuidadosa. Uma súbita calma. Quase bailarina em gestos precisos, medidos, elegantes. O silêncio completo do apartamento vazio quebrado apenas pelo leve farfalhar do papel de seda desdobrado sem pressa alguma. E eram lindos, mais lindos do que podia lembrar. Mais lindos do que tinha tentado expressar quando protestou, comedida e comovida ― mas são tão... tão ousados, meu bem, não têm nada a ver comigo. Que evitava cores, saltos, pinturas, decotes, dourados ou qualquer outro detalhe capaz sequer de sugerir sua secreta identidade de mulher-solteira-e-independente-que-tem-um-amante-casado.

Vermelhos ― mais que vermelhos: rubros, escarlates, sangüíneos ―, com finos saltos altíssimos, uma pulseira estreita na altura do tornozelo. Resplandeciam nas suas mãos. Quase cedeu ao impulso de calçá-los imediatamente, mas sabia instintiva que teria primeiro de cumprir o ritual. De alguma forma, tinha decorado aquele texto há tanto tempo que apenas o supunha esquecido. Como uma estréia adiada, anos. Bastavam as primeiras palavras, os primeiros movimentos, para que todas as marcas e inflexões se recompusessem em requintes de detalhes na memória. O que faria a seguir seria perfeito, como se encenado e aplaudido milhares de vezes.

Perfeitamente. Adelina colocou um disco ― nem Charles Aznavour, nem Glenn Miller, mas uma úmida Billie Holiday, I’m glad, you 're bad, tomando o cuidado de acionar o botão para que a agulha voltasse e tornasse a voltar sempre, don't explain, depois deixou a banheira encher aos poucos de suave água morna, salpicou os sais antes de mergulhar, com Billie gemendo rouca ao fundo, lover man, e lavou todos os orifícios, e também os cabelos, todos os cabelos, enfrentou o chuveiro frio, secou o corpo e cabelos enquanto esmaltava as unhas dos pés, das mãos, no mesmo tom de vermelho dos sapatos, mais tarde desenhou melhor a boca, já dentro do vestido preto justo, drapeado de crepe, preso ao ombro por um pequeno broche de brilhantes, escorregando pelo colo para revelar o início dos seios, acentuou com o lápis o sinal na face direita, igualzinho ao de Liz Taylor, todos diziam, sublinhou os olhos de negro, escureceu os cílios, espalhou perfume no rego dos seios, nos pulsos, na jugular, atrás das orelhas, para exalar quando você arfar, minha filha, então as meias de seda negra transparente, costura atrás, tigresa noir, Lauren Bacall, e só depois de guardar na carteira talão de cheques, documentos, chave do carro, cigarros e o isqueiro de prata que tirou da caixinha de veludo grená, presente dos trinta e sete, só mesmo quando estava pronta dos pés à cabeça e desligara o toca-discos, porque eles exigiam silêncio ― foi que sentou outra vez na penteadeira para calçar os sapatinhos vermelhos.

Apagou a luz do quarto, olhou-se no espelho de corpo inteiro do corredor. Gostou do que viu. Bebeu o último gole de uísque e, antes de sair, jogou na gota dourada do fundo do copo o filtro branco manchado de batom.

Eram três, estavam juntos, mas o negro foi o primeiro a pedir licença para sentar. A única mulher sozinha na boate. Tinha traços finos, o negro, afilados como os de um branco, embora os lábios mais polpudos, meio molhados. Músculos que estalavam dentro da camiseta justa, dos jeans apertados. Leve cheiro de bicho limpo, bicho lavado, mas indisfarçavelmente bicho atrás do sabonete.

― E aí, passeando? ― ele perguntou, ajeitando-se na cadeira à frente dela.

Curvou-se para que ele acendesse seu cigarro. A mão grande, quadrada, preta e forte não se moveu sobre a mesa. Ela mesma acendeu, com o isqueiro de prata. Depois jogou a cabeça para trás ― a marcação era perfeita ―, tragou fundo e, entre a fumaça, soltou as palavras sobre os patéticos pratinhos de plástico com amendoim e pipocas:

― Você sabe, feriado. A cidade fica deserta, essas coisas. Precisa aproveitar, não?

Por baixo da mesa, o negro avançou o joelho entre as coxas dela. Cedeu um pouco, pelo menos até sentir o calor aumentando. Mas preferiu cruzar as pernas, estudada. Que não assim, tão fácil, só porque sozinha. E quase quarentena, carne de segunda, coroa. Sorriu para o outro, encostado no balcão, o moço dourado com jeito de tenista. Não que fosse louro, mas tinha aquele dourado do pêssego quando mal começa a amadurecer espalhado na pele, nos cabelos, provavelmente nos olhos que ela não conseguia ver sem óculos, à distância. O negro acompanhou seu olhar, virando a cabeça sobre o próprio ombro. De perfil ― ela notou ―, o queixo era brusco, feito a machado. Mesmo recém-feita, a barba rascaria quando se passasse a mão. Antes que dissesse qualquer coisa, ela avançou, voz muito rouca:

― Por que não convida seus amigos para sentar com a gente? ― Ele rodou um amendoim entre os dedos. Ela tomou o amendoim dos dedos dele. O crepe escorregou do ombro para revelar o vinco entre os dois seios: ― Acho que você não precisa disso.

O negro franziu a testa. Depois riu. Passou o indicador nas costas da mão dela, pressionando:

― Pode crer que não. Soprou a fumaça na cara dele:

― Será?

― Garanto a você.

Descruzou as pernas. O joelho dele tornou a apertar o interior de suas coxas. Quero te jogar no solo, a música dizia.

― Então chame seus amigos.

― Você não prefere que a gente fique só nós dois? Tão escuro ali dentro que mal podia ver o outro, ao lado do tenista dourado. Um pouco mais baixo, talvez. Mas os ombros largos. Qualquer coisa no porte, embora virado de costas para ela, de frente para o balcão, curvado sobre o copo de bebida, qualquer coisa na bunda firme desenhada pelo pano da calça ― qualquer coisa ali prometia. Remexeu as pedras de gelo do uísque na ponta das unhas vermelhas.


― Uns rapazes simpáticos. Assim, sozinhos. Não são seus amigos?

― Do peito ― ele confirmou. E apertou mais o joelho. A calcinha dela ficou úmida. ― Tudo gente boa.

― Gente boa é sempre bem-vinda ― falava como a dublagem de um filme. Uma mulher movia o corpo e a boca ― ela falava. Um filme preto e branco, bem contrastado, um filme que não tinha visto, embora conhecesse bem a história. Porque alguém contara, em hora de cafezinho, porque vira os cartazes ou lera qualquer coisa numa daquelas revistas femininas que tinha aos montes em casa. As mais recentes, na parte de baixo da mesinha de vidro da sala. As outras, acumuladas no banheiro de empregada, emboloradas por um eterno vazamento no chuveiro, que a diarista depois levava. Para vender, dizia. E ela odiava contida a idéia das páginas coloridas das revistas dela embrulhando peixe na feira ou expostas naquelas bancas vagabundas do centro da cidade.
― Se você quer mesmo ― o negro disse. E esperou que ela dissesse alguma coisa, antes de erguer a mão chamando os outros dois.

― Não quero outra coisa ― sussurrou.

E meio de repente ― porque depois do quarto ou quinto uísque tudo acontece sempre assim, sem que se possa determinar o ponto exato de transição, quando uma situação passa a ser outra situação ―, quase de repente, o tenista-dourado estava ao lado direito dela, e o rapaz mais baixo à sua esquerda. Na cadeira em frente, o negro olhava tudo com atentos olhos suspeitosos. Perguntou o que bebiam, eles disseram juntos e previsíveis: cerveja. Ela falou nossa, bebam algum drinque mais estimulante, vocês vão precisar, rapazes, um ar de Mae West. Todos os três explicaram que estavam duros, a crise, você sabe, mas de jeitos diferentes. O tenista-dourado chegou a puxar o forro do bolso para fora e mostrou, pegando a mão dela, veja, veja só, pegue aqui, mas ela retirou a mão pouco antes de tocar. Tão próximo, calor latejante na beira dos dedos. Problema nenhum, ofereceu pródiga: eu pago. A fita da garrafa pela metade, serviu do uísque dela ao negro e ao tenista-dourado. Não ao mais baixo, que preferia vodca, natasha mesmo serve. Ela então atentou nele pela primeira vez. Todo pequeno e forte, cabelos muito crespos contrastando com a pele branca, lábios vermelhos, barba de dois, três dias, quase emendada nos cabelos do peito fugidos da gola da camisa, mãos cruzadas um tanto tensas, unhas roídas, sobre o xadrez da toalha. Cabeça baixa, concentrado em sua pequenez repleta da vitalidade que, certeira, ela adivinhava mesmo antes de provar.

Pacientes, divertidos, excitados: cumpriram os rituais necessários até chegar no ponto. Que o negro era Áries, jogador de futebol, mês que vem passo ao primeiro escalão, ganhando uma grana. Sérgio ou Silvio, qualquer coisa assim. O tenista-dourado, Ricardo, Roberto, ou seria Rogério? um bancário sagitariano, fazia musculação e os peitos que pediu que tocasse eram salientes e pétreos como os de um halterofilista, sonhava ser modelo, fiz até umas fotos, quiser um dia te mostro, peladinho, e ela pensou: vai acabar michê de veado rico. Do mais baixo só conseguiu arrancar o signo, Leão, isso mesmo porque adivinhou, não revelou nome nem disse o que fazia, estava por aí, vendo qual era, e não tinha saco de fazer social.

Eu? Gilda, ela mentiu retocando o batom. Mas mentia só em parte, contou para o espelhinho, porque de certa forma sempre fui inteiramente Gilda, Escorpião, e nisso dizia a verdade, atriz, e novamente mentia, só de certa forma, porque toda a minha vida.

Então dançaram, um de cada vez. O negro apoiou a mão pesada na cintura dela e, puxando-a para si, encaixou o ventre dos dois, quase como se a penetrasse assim, ao som de um Roberto Carlos daqueles de motel, o côncavo, o convexo, tão apertado e rijo que ela temeu que molhasse a calça. Mas de volta à mesa, ao acariciar disfarçada o volume, tranqüilizou-se antes de sair puxada pela mão dourada do tenista-dourado. Que a fez encostar a cabeça entre os dois peitos dele, cheiro de colônia, desodorante, suor limpo de homem embaixo da camisa pólo amarelinha, lambeu a orelha dela, mordiscou a curva do pescoço ao som duma dessas trilhas românticas em inglês de telenovela, até que ela gemesse, toda molhada, implorando que parasse. O mais baixo não quis dançar. Quero foder você, rosnou: pra que essa frescura toda?

Foi quando ela levantou a perna, apoiando o pé na borda da cadeira que todos viram o sapato vermelho. Depois dos comentários exaltados, as meticulosas preparações estavam encerradas, a boate quase vazia, sexta-feira instalada, e era da Paixão, cinza cru de amanhecer urbano entrando pelas frestas, o único garçom impaciente, cadeiras sobre as mesas. Tinham chegado ao ponto. O ponto vivo, o ponto quente.

― Pra onde? ― perguntou o tenista-dourado.

― Meu apartamento, onde mais? ― ela disse, terminando de assinar o cheque, três estrelas, caneta importada.

― Mas afinal, com quem você quer ir? ― o negro quis saber.

Ela acariciou o rosto do mais baixo:

― Com os três, ora.

Apesar do uísque, saiu pisando firme nos sapatos vermelhos, os três atrás. Lá fora, na luz da manhã, antes de entrarem no carro que o manobrista trouxe e o tenista-dourado fez questão de dirigir, os sapatos vermelhos eram a única coisa colorida daquela rua.

Que tirasse tudo, menos os sapatos - os três imploraram no quarto em desordem. Garrafa de uísque na penteadeira, Fafá de Belém antiga no toca-discos (esco¬ha do tenista-dourado, o negro queria Alcione), cinzeiro transbordante na mesinha de cabeceira. Tirou tudo, jogando para os lados. Menos as meias de seda negra, com costura atrás, e os sapatos vermelhos. Nua, jogou-se na colcha de chenile rosa, as pernas abertas. Eles a cercaram lentos, jogando as zorbas sobre o crepe negro. O negro veio por trás, que gostava assim, tão apertadinho. Ela nunca tinha feito, mas ele jurou no ouvido que seria cuidadoso, depois mordeu-a nos ombros, enquanto a virava de perfil, muito suavemente, molhando-a de saliva com o dedo, para que o mais baixo pudesse continuar a lambê-la entre as coxas, enquanto o tenista-dourado, de joelhos, esfregava o pau pelo rosto dela, até encontrar a boca. Tinha certo gosto também de pêssego, mas verde demais, quase amargo, e passando as mãos pelas costas dele confirmou aquela suspeita anterior de uma penugem macia num triângulo pouco acima da bunda, igual ao do peito, acinzentado pelo amanhecer varando persianas, mas certamente dourado à luz do sol. Foi quando o negro penetrou mais fundo que ela desvencilhou-se do tenista-dourado para puxar o mais baixo sobre si. Ele a preencheu toda, enquanto ela tinha a sensação estranha de que, ponto remoto dentro dela, dos dois lados de uma película roxa de plástico transparente, como num livro que lera, os membros dos dois se tocavam, cabeça contra cabeça. E ela primeiro gemeu, depois debateu-se, procurou a boca dourada do tenista-dourado e quase, quase chegou lá. Mas preferia servir mais uísque, fumar outro cigarro, sem pressa alguma, porque pedia mais, e eles davam, generosos, e absolutamente não se espantar quando então invertiam-se as posições, e o tenista-dourado vinha por trás ao mesmo tempo que o mais baixo introduzia-se em sua boca, e o negro metido dentro dela conseguia transformar os gemidos em gritos cada vez mais altos, fodam-se os vizinhos, depois cada vez mais baixos novamente, rosnados, grunhidos, até não passarem de soluços miudinhos, sete galáxias atravessadas, o sol de Vega no décimo quarto grau de Capricórnio e a cara afundada nos cabelos pretos encaracolados do negro peito largo dele. De outros jeitos, de todos os jeitos: quatro, cinco vezes. Em pé, no banheiro, tentando aplacar-se embaixo da água fria do chuveiro. Na sala, de quatro nas almofadas de cetim, sobre o sofá, depois no chão. Na cozinha, procurando engov e passando café, debruçada na pia. Em frente ao espelho de corpo inteiro do corredor, sem se chocar que o mais baixo de repente viesse também por trás do tenista-dourado dentro dela, que acariciava o pau do negro até que espirrasse em jatos sobre os sapatos vermelhos dela, que abraçava os três, e não era mais Gilda, nem Adelina nem nada. Era um corpo sem nome, varado de prazer, coberto de marcas de dentes e unhas, lanhado dos tocos das barbas amanhecidas, lambuzada do leite sem dono dos machos das ruas. Completamente satisfeita. E vingada.

Quando finalmente se foram, bem depois do meio-dia, antes de jogar-se na cama limpou devagar os sapatos com uma toalha de rosto que jogou no cesto de roupa suja. Foi o neon, repetiu andando pelo quarto, aquelas luzes verdes, violeta e vermelhas piscando em frente à boate, foi o neon maligno da Sexta-Feira Santa, quando o diabo se solta porque Cristo está morto, pregado na cruz. Quando apagou a luz, teve tempo de ver¬se no espelho da penteadeira, maquilagem escorrida pelo rosto todo, mas um ar de triunfo escapando do meio dos cabelos soltos.

Acordou no Sábado de Aleluia, manhã cedo, campainha furando a cabeça dolorida. Ele estava parado no corredor, dúzia de rosas vermelhas e um ovo de Páscoa nas mãos, sorriso nos lábios pálidos. Não era preciso dizer nada. Só sorrir também. Mas ela não sorria quando disse:

― Vai embora. Acabou.

Ele ainda tentou dizer alguma coisa, aquele ridículo terno cinza. Chegou mesmo a entrar um pouco na sala antes que ela o empurrasse aos gritos para fora, quase inteiramente nua, a não ser pelas meias de seda e os sapatos vermelhos de saltos altíssimos. Havia um cheiro de cigarro e bebida e gozo entranhado pelos cantos do apartamento, a cara de ressaca dela, manchas roxas de chupões no colo. Pela primeira, única e última vez ele a chamou muitas vezes de puta, puta vadia, puta escrota depravada pervertida. Jogou o ovo e as rosas vermelhas na cara dela e foi embora para sempre.

Só então ela sentou para tirar os sapatos. Na carne dos tornozelos inchados, as pulseiras tinham deixado lanhos fundos. Havia ferimentos espalhados sobre os dedos. Tomou banho muito quente, arrumou a casa toda antes de deitar-se outra vez ― o broche de brilhantes tinha desaparecido, mas que importava: era falso ―, tomar dois comprimidos para dormir o resto do sábado e o domingo de Páscoa inteiros, acordando para comer pedaços de chocolate de ovo espatifado na sala.

Segunda-feira no escritório, quando a viram caminhando com dificuldade, cabelos presos, vestida de marrom, gola fechada, e quiseram saber o que era ― um sapato novo, ela explicou muito simples, apertado demais, não é nada. Voltavam a doer, os ferimentos, quando ameaçava chuva. E ao abrir a terceira gaveta do armário para ver o papel de seda azul-clarinho guardando os sapatos, sentia um leve estremecimento. Tentava ― tentava mesmo? ― não ceder. Mas quase sempre o impulso de calçá-los era mais forte. Porque afinal, dizia-se, como num conto de Sônia Coutinho, há tantas sextas-feiras, tantos luminosos de neon, tantos rapazes solitários e gostosos perdidos nesta cidade suja... Só pensou em jogá-los fora quando as varizes começaram a engrossar, escalando as coxas, e o médico então apalpou-a nas virilhas e depois avisou quê.




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