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Rio de Janeiro, 24 de maio de 1983
Charles,
é rápido (mas espero que não rasteiro), só pra te dar notícias. Bem, finalmente estou aqui, e me sentindo muito bem, num lugar fantástico (o Hotel Santa Teresa, em cima do morro), meio tropical, meio colonial, meio bávaro. Meio muito. Meu quarto dá para uma enorme jaqueira e, atrás dela e de uma infinidade de telhadinhos, vejo a cidade lá embaixo. O sol se põe bem na frente. Tenho respirado horrores.
Disciplinei minha vida: acordo às 7h30, nado duas horas, faço refeições em horas exatas. Escrevo no mínimo quatro horas por dia. Nas outras, caminho pelo morro ou desço à cidade — uma barra lá embaixo, fico louco pra subir de novo. Estou ficando saudável, bonito & corado. Uma gracinha. Só me falta agora arrumar um Grande Amor, assim mesmo, com maiúsculas. Virá logo: a cidade é mágica, sensual, afetiva, tesuda.
Não foi possível escrever a você antes de vir. Muita loucura. Desmontar a casa foi uma trip entre o divino e o diabólico: eu não sabia se era um demônio punk ou um anjo caído dos céus. Talvez os dois. Quem sabe nenhum? Também andava escrevendo furiosamente. Aliás, andava fazendo tudo furiosamente. O livro está pronto, e eu não posso (obrigado pelo convite) ceder O marinheiro nem qualquer outra das três novelas à Mercado Aberto: elas formam um tripé (?), uma trilogia (?) in-se-pa-rá-vel. Por isso mesmo, o livro chama-se Triângulo das águas (a água dos rios, dos mares, da chuva). Passam-se à noite. Terminam ao amanhecer. E assim que me sinto: amanhecendo.
Não sei até quando será possível segurar a barra econômica daqui. Estou desempregadíssimo com uma grana pra segurar uns três meses, só. Depois não sei. Por enquanto termino o livro, e olho, cheiro, sinto gostos, ouço, toco. São Paulo quase que me mata, tchê. Isola.
É de tardezinha, agora. Começou a chover. Eu tinha pensado em descer de bondinho para ir ao cinema ver Lili Marlene, de Fassbinder. Melhor ficar. Tem pessoas absurdas aqui em cima: velhinhos, estrangeiros artistas. Faço amizade aos poucos, gaúcho de fronteira. Leio Jean Genet. Comprei um incenso delicioso hoje (gardênia). Tenho trepado muito: as culpas vão se diluindo. Ser feliz é uma obrigação.
Te quero bem. Espero notícias. O telefone daqui é (021)222- 4088. O endereço vai no verso do envelope. Um abraço grande do seu
Caio F.
(o primo de Christiane)
______________________________________________
Caio gostava de se assinar Caio F. Em diversas cartas ele faz jogos entre essa assinatura e a de Christiane F., a adolescente alemã cujas experiências são relatadas no livro Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída, lançado no Brasil em 1982.
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Rio de Janeiro, 24 de maio de 1983
Charles,
é rápido (mas espero que não rasteiro), só pra te dar notícias. Bem, finalmente estou aqui, e me sentindo muito bem, num lugar fantástico (o Hotel Santa Teresa, em cima do morro), meio tropical, meio colonial, meio bávaro. Meio muito. Meu quarto dá para uma enorme jaqueira e, atrás dela e de uma infinidade de telhadinhos, vejo a cidade lá embaixo. O sol se põe bem na frente. Tenho respirado horrores.
Disciplinei minha vida: acordo às 7h30, nado duas horas, faço refeições em horas exatas. Escrevo no mínimo quatro horas por dia. Nas outras, caminho pelo morro ou desço à cidade — uma barra lá embaixo, fico louco pra subir de novo. Estou ficando saudável, bonito & corado. Uma gracinha. Só me falta agora arrumar um Grande Amor, assim mesmo, com maiúsculas. Virá logo: a cidade é mágica, sensual, afetiva, tesuda.
Não foi possível escrever a você antes de vir. Muita loucura. Desmontar a casa foi uma trip entre o divino e o diabólico: eu não sabia se era um demônio punk ou um anjo caído dos céus. Talvez os dois. Quem sabe nenhum? Também andava escrevendo furiosamente. Aliás, andava fazendo tudo furiosamente. O livro está pronto, e eu não posso (obrigado pelo convite) ceder O marinheiro nem qualquer outra das três novelas à Mercado Aberto: elas formam um tripé (?), uma trilogia (?) in-se-pa-rá-vel. Por isso mesmo, o livro chama-se Triângulo das águas (a água dos rios, dos mares, da chuva). Passam-se à noite. Terminam ao amanhecer. E assim que me sinto: amanhecendo.
Não sei até quando será possível segurar a barra econômica daqui. Estou desempregadíssimo com uma grana pra segurar uns três meses, só. Depois não sei. Por enquanto termino o livro, e olho, cheiro, sinto gostos, ouço, toco. São Paulo quase que me mata, tchê. Isola.
É de tardezinha, agora. Começou a chover. Eu tinha pensado em descer de bondinho para ir ao cinema ver Lili Marlene, de Fassbinder. Melhor ficar. Tem pessoas absurdas aqui em cima: velhinhos, estrangeiros artistas. Faço amizade aos poucos, gaúcho de fronteira. Leio Jean Genet. Comprei um incenso delicioso hoje (gardênia). Tenho trepado muito: as culpas vão se diluindo. Ser feliz é uma obrigação.
Te quero bem. Espero notícias. O telefone daqui é (021)222- 4088. O endereço vai no verso do envelope. Um abraço grande do seu
Caio F.
(o primo de Christiane)
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Caio gostava de se assinar Caio F. Em diversas cartas ele faz jogos entre essa assinatura e a de Christiane F., a adolescente alemã cujas experiências são relatadas no livro Eu, Christiane F., 13 anos, drogada e prostituída, lançado no Brasil em 1982.
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