Tem muita gente contaminada pela mais grave manifestação do vírus—a aids psicológica.
A primeira vez que ouvi falar em aids foi quando Markito morreu. Eu estava na salinha de TV do velho Hotel Santa Teresa, no Rio, assistindo ao Jornal Nacional. “Não é possível” - pensei - “Uma espécie de vírus de direita, e moralista, que só ataca aos homossexuais?” Não, não era possível. Porque homossexualidade existe desde a Idade da Pedra. Ou desde que existe a sexualidade - isto é: desde que existe o ser humano. Está na Bíblia, em Jônatas e Davi (“... a alma de Jônatas apegou-se à alma de Davi e Jônatas o amou como a si mesmo” - I Samuel, 18-1), nos gregos, nos índios, em toda a história da humanidade. Por que só agora “Deus” ou a “Natureza” teriam decidido puni-los?
Mas de coisa-que-se-lê-em-revista ou que só-acontece-aos-outros, o vírus foi chegando mais perto. Matou o inteligentíssimo Luiz Roberto Galizia, que eu conhecia relativamente bem (tínhamos até um vago e delirante projeto de adaptar para teatro Orlando, de Virginia Woolf, com Denise Stoklos no papel principal, já pensou?). Matou Fernando Zimpeck, cenógrafo e figurinista gaúcho, supertalentoso. E Flávio Império, Timochenko Webbi, Emile Eddé - pessoas que você encontrava na rua, no restaurante, no cinema. O vírus era real. E matava.
Aí começaram as confusões. A pseudotolerância conquistada nos últimos anos pelos movimentos de liberação homossexual desabou num instantinho. Eu já ouvi - e você certamente também - dezenas de vezes frases tipo “bicha tem mesmo é que morrer de aids”. Ou propostas para afastar homossexuais da “sociedade sadia” - em campos de concentração, suponho. Como nos velhos e bons tempos de Auschwitz? Tudo para o “bem da família”, porque afinal - e eles adoram esse argumento — “o que será do futuro de nossas pobres criancinhas?”
Só que homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade - voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de moral ou integridade. (É curioso, e revelador, observar que quando Gore Vidal vem ao Brasil, toda a imprensa se refere a ele como “o escritor homossexual” mas estou certo que se viesse, por exemplo, Norman Mailer, ninguém falaria do “escritor heterossexual”.) Sim, a moral & os bons costumes emboscados por trás do falso liberalismo - e muito bem amparados pelo mais reacionário papa de toda a (triste) história do Vaticano - arreganha agora os dentes para declarar: “Viram como este vício hediondo não só corrompe, mas mata?”
Corrompe nada, mata nada. Acontece apenas que a única forma possível de consumação do ato sexual entre dois homens é mais favorável à transmissão do vírus, que se espalhou nesse grupo devido à alta rotatividade sexual de alguns. E é aí que começa a acontecer isso que chamo de “a mais justa das saias”. Afinal é preciso que as pessoas compreendam que um homossexual não é um contaminado em potencial, feito bomba-relógio prestes a explodir. Isso soa tão cretino e preconceituoso como afirmar que todo negro é burro e todo judeu, sacana.
Heteros ou homos (?) a médio prazo iremos todos enlouquecer, se passarmos a ver no outro uma possibilidade de morte. Tem muita gente contaminada pela mais grave manifestação do vírus - a aids psicológica. Do corpo, você sabe, tomados certos cuidados, o vírus pode ser mantido a distância. E da mente? Porque uma vez instalado lá, o HTLV-3 não vai acabar com as suas defesas imunológicas, mas com suas emoções, seu gosto de viver, seu sorriso, sua capacidade de encantar-se. Sem isso, não tem graça viver, concorda?
Você gostaria de viver num mundo de zumbis? Eu, decididamente não. Então pela nossa própria sobrevivência afetiva - com carinho, com cuidado, com um sentimento de dignidade — ô gente, vamos continuar namorando. Era tão bom, não era?
O Estado de S. Paulo, 25/3/987
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