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Estavam ali as portas
Janelas e varandas.
Estavam ali
Na fronteira do olhar
Onde o de dentro encontra
Justamente
Com o de fora.
Nesse ponto exato
Elas estavam:
Bastava um gesto.
Mas o meu estar parado
Era maior que eu.
Estar parado
Estar vivo:
A mesma incompreensão
E medo
Entre mim
E aquele estar das coisas.
Estar ali
Como nunca ter chegado.
Estar ali
Por estar ali
E além de mim
O que eu não ousava.
Ah
Relembro a amplidão dessas varandas intocadas
Os pequenos raios de luz
Nos vidros coloridos das janelas.
Revejo a dura consistência da porta
Cerrando seu segredo.
E me retomo
Ali
No imóvel do gesto que não fiz.
Como se pudesse
Agora
Escancarar portas e janelas
Para sair nu pelas varandas
Desvairado e nu
Profeta, louco, infante,
Sair para o vento
O sol, as tempestades, as neves,
As quedas de estrelas e Bastilhas,
O cheiro de jasmins
Entontecendo os quintais.
(pudesse retomar manhãs, amigo,
manhãs perdidas como tudo
que não fui)
Mas continuo Ali.
Aqueles espaços
Permanecem mortos dentro de mim.
Como um corpo que se ama
E não se toca.
Londres 4.2.74
(Fiz depois duma bad lisérgica e dum papo muito duro com Serginho. Você gosta?)
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Contos, crônicas e cartas
Blog ativado em: 16/maio/2010
segunda-feira, 28 de março de 2011
quarta-feira, 23 de março de 2011
* Breves memórias de um jardineiro cruel
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Sempre gostei de flores. Até hoje lembro de um jardineiro na nossa casa de Santiago do Boqueirão, bem embaixo da janela de meu quarto, que nas noites de verão enlouquecia o ar com seu perfume intenso, doce e, dizem, um tanto alucinógeno. Mas durante muitos anos, nunca pensei que fosse preciso cuidar das flores. Elas simplesmente estavam ali, como as pedras, as árvores. Só anos depois percebi que não era assim.
Foi em Londres, já por 1973. Homero estava indo trabalhar em Estocolmo e me passou seu trabalho preferido: jardineiro num subúrbio, muito além de Richrnond. A patroa era uma maravilha: Mrs. Kuzmin, velhinha húngara refugiada na Inglaterra durante a Segunda Guerra. Tinha um sotaque fortíssimo, como o de Meryl Streep em A escolha de Sofia, e vivia só com uma filha gorda, solteirona e muito carente. Puxava sempre papo e, enquanto eu mourejava no jardim, ela colocava na janela a caixa de som, quase sempre Mozart. Já Mrs. Kuzmin era severa - dava ordens, fiscalizava enquanto eu cortava a grama (inglesa autêntica!) - mas também humana. Terminado o trabalho, na cozinha limpíssima me servia chá Earl Gray com limão e une larine de leite, mais um daqueles alucinantes cakes ingleses empapuçados de geléia. Vivendo numa squatter-houe sórdida perto de Portobello Road, vezenquando aquela era minha única refeição do dia. Material e também espiritual, pois além de comida e das histórias da guerra que as duas contavam havia as flores. Foi a primeira vez na vida em que pensei seriamente em me tornar jardineiro. Anos atrás, quando ainda era um maníaco depressivo insaciável, Graça perguntou o que realmente eu gostaria de ser na vida. Levei uns dez minutos para responder. Ilhas gregas, iates, amores, apartamento em Paris, tudo isso pareceu nada quando veio a resposta sincera: “Jardineiro”, eu disse. “Um dia eu gostaria de plantar rosas, muitas rosas.” Mas vivendo entre os desfiladeiros de concreto de São Paulo, parecia impossível. Certa vez, dividindo uma casinha perto do Ibirapuera com Grace Giannoukas, tivemos uma estonteante roseira cor-de-rosa, mais alecrim, manjericão, arruda. Foi bom, mas durou pouco.
Pois não é que, confirmando aquele bíblico “pedi e ser-vos- á-dado”, agora tenho um jardim? Bem, não exatamente meu, é da casa de meus pais. Também não é nenhum Luxemburgo, mas grande o suficiente para conter uma palmeira coberta de hera, dálias, rododendros, alamandas e outras misteriosas (um dia o vento soprou, espalhando os pacotinhos com o nome dos bulbos). E rosas, claro. Cor-de-rosa, plantadas há tempos por meu pai; uma vermelha batizada de
Odete, em homenagem a Odete Lara; outra branca ainda pagã, mas com cara de Lygia (Fagundes TeIles), plantadas por mim. Também penso num cacto a chamar- se Hilda (Hilst)
Mas não pensem vocês que vida de jardineiro é mole. Além de calos nas mãos e unhas pretas de terra, há perigos medonhos rondando: formigas roedoras, gatos noturnos que quebram os talos frágeis e— argh! —caramujos canibais tarados por brotinhos tenros. O japonês da floricultura receitou Lesmol, mas odiei o nome, além de envenenar a terra; alguém sugeriu sal, mas pirei lembrando daquelas histórias bíblicas de salgar a terra para esterilizá-la. Aí descobri: pedrinhas! Você faz um círculo com elas em torno da planta, com as pontas agudas voltadas para cima. O caramujo tenta passar e crau! Crava a pedrinha na barriga. De manhã cedo, com uma pá, tenho me dedicado a recolher cadáveres de caramujos empalados. Jogo no lixo sem piedade. Cruel, mas imagino que ecológico. E tão eficiente que não sei se eles avisam uns aos outros, mas diminuíram muito. Cá entre nós, estou ficando tão sabido nessas artes que ando pensando em substituir o crédito “escritor e jornalista” por “escritor e jardineiro”. Parece chiquérrimo, não?
O Estado de S. Paulo, 11/12/1994
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Sempre gostei de flores. Até hoje lembro de um jardineiro na nossa casa de Santiago do Boqueirão, bem embaixo da janela de meu quarto, que nas noites de verão enlouquecia o ar com seu perfume intenso, doce e, dizem, um tanto alucinógeno. Mas durante muitos anos, nunca pensei que fosse preciso cuidar das flores. Elas simplesmente estavam ali, como as pedras, as árvores. Só anos depois percebi que não era assim.
Foi em Londres, já por 1973. Homero estava indo trabalhar em Estocolmo e me passou seu trabalho preferido: jardineiro num subúrbio, muito além de Richrnond. A patroa era uma maravilha: Mrs. Kuzmin, velhinha húngara refugiada na Inglaterra durante a Segunda Guerra. Tinha um sotaque fortíssimo, como o de Meryl Streep em A escolha de Sofia, e vivia só com uma filha gorda, solteirona e muito carente. Puxava sempre papo e, enquanto eu mourejava no jardim, ela colocava na janela a caixa de som, quase sempre Mozart. Já Mrs. Kuzmin era severa - dava ordens, fiscalizava enquanto eu cortava a grama (inglesa autêntica!) - mas também humana. Terminado o trabalho, na cozinha limpíssima me servia chá Earl Gray com limão e une larine de leite, mais um daqueles alucinantes cakes ingleses empapuçados de geléia. Vivendo numa squatter-houe sórdida perto de Portobello Road, vezenquando aquela era minha única refeição do dia. Material e também espiritual, pois além de comida e das histórias da guerra que as duas contavam havia as flores. Foi a primeira vez na vida em que pensei seriamente em me tornar jardineiro. Anos atrás, quando ainda era um maníaco depressivo insaciável, Graça perguntou o que realmente eu gostaria de ser na vida. Levei uns dez minutos para responder. Ilhas gregas, iates, amores, apartamento em Paris, tudo isso pareceu nada quando veio a resposta sincera: “Jardineiro”, eu disse. “Um dia eu gostaria de plantar rosas, muitas rosas.” Mas vivendo entre os desfiladeiros de concreto de São Paulo, parecia impossível. Certa vez, dividindo uma casinha perto do Ibirapuera com Grace Giannoukas, tivemos uma estonteante roseira cor-de-rosa, mais alecrim, manjericão, arruda. Foi bom, mas durou pouco.
Pois não é que, confirmando aquele bíblico “pedi e ser-vos- á-dado”, agora tenho um jardim? Bem, não exatamente meu, é da casa de meus pais. Também não é nenhum Luxemburgo, mas grande o suficiente para conter uma palmeira coberta de hera, dálias, rododendros, alamandas e outras misteriosas (um dia o vento soprou, espalhando os pacotinhos com o nome dos bulbos). E rosas, claro. Cor-de-rosa, plantadas há tempos por meu pai; uma vermelha batizada de
Odete, em homenagem a Odete Lara; outra branca ainda pagã, mas com cara de Lygia (Fagundes TeIles), plantadas por mim. Também penso num cacto a chamar- se Hilda (Hilst)
Mas não pensem vocês que vida de jardineiro é mole. Além de calos nas mãos e unhas pretas de terra, há perigos medonhos rondando: formigas roedoras, gatos noturnos que quebram os talos frágeis e— argh! —caramujos canibais tarados por brotinhos tenros. O japonês da floricultura receitou Lesmol, mas odiei o nome, além de envenenar a terra; alguém sugeriu sal, mas pirei lembrando daquelas histórias bíblicas de salgar a terra para esterilizá-la. Aí descobri: pedrinhas! Você faz um círculo com elas em torno da planta, com as pontas agudas voltadas para cima. O caramujo tenta passar e crau! Crava a pedrinha na barriga. De manhã cedo, com uma pá, tenho me dedicado a recolher cadáveres de caramujos empalados. Jogo no lixo sem piedade. Cruel, mas imagino que ecológico. E tão eficiente que não sei se eles avisam uns aos outros, mas diminuíram muito. Cá entre nós, estou ficando tão sabido nessas artes que ando pensando em substituir o crédito “escritor e jornalista” por “escritor e jardineiro”. Parece chiquérrimo, não?
O Estado de S. Paulo, 11/12/1994
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sábado, 19 de março de 2011
* Existe sempre alguma coisa ausente
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Paris - Toda vez que chego a Paris tenho um ritual particular. Depois de dormir algumas horas, dou uma espanada no rodenirterceiromundista e vou até Notre-Dame. Acendo vela, rezo, fico olhando a catedral imensa no coração do Ocidente. Sempre penso em Joana d’Arc, heroína dos meus remotos 12 anos; no caminho de Santiago de Compostela, do qual Notre-Dame é o ponto de partida- e em minha mãe, professora de História que, entre tantas coisas mais, me ensinou essa paixão pelo mundo e pelo tempo.
Sempre acontecem coisas quando vou a Notre-Dame. Certa vez, encontrei um conhecido de Porto Alegre que não via pelo menos há 2o anos. Outra, chegando de uma temporada penosa numa Londres congelada e aterrorizada por bombas do IRA, na época da Guerra do Golfo, tropecei numa greve de fome de curdos no jardim em frente. Na mais bonita dessas vezes, eu estava tristíssimo. Há meses não havia sol, ninguém mandava notícias de lugar algum, o dinheiro estava no fim, pessoas que eu considerava amigas tinham sido cruéis e desonestas. Pior que tudo, rondava um sentimento de desorientação. Aquela liberdade e falta de laços tão totais que tornam-se horríveis, e você pode então ir tanto para Botucatu quanto para Java, Budapeste ou Maputo - nada interessa. Viajante sofre muito: é o preço que se paga por querer ver “como um danado”, feito Pessoa. Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio.
Enrolado num capotão da Segunda Guerra, naquela tarde em Notre-Dame rezei, acendi vela, pensei coisas do passado, da fantasia e memória, depois saí a caminhar. Parei numa vitrina cheia de obras do conde Saint-Germain, me perdi pelos bulevares da le dela Cité. Então sentei num banco do Quai de Bourbon, de costas para o Sena, acendi um cigarro e olhei para a casa em frente, no outro lado da rua. Na fachada estragada pelo tempo lia-se numa placa: “II y a toujours quelque choe d’abient qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) - frase de uma carta escrita por Camilie Claudel a Rodín, em 1886. Daquela casa, dizia a placa, Camille saíra direto para o hospício, onde permaneceu até a morte. Perdida de amor, de talento e de loucura.
Fazia frio, garoava fino sobre o Sena, daquelas garoas tão finas que mal chegam a molhar um cigarro. Copiei a frase numa agenda. E seja lá o que possa significar “ficar bem” dentro desse desconforto inseparável da condição, naquele momento justo e breve - fiquei bem. Tomei um Calvados, entrei numa galeria para ver os desenhos de Egon Schiele enquanto a frase de Camille assentava aos poucos na cabeça. Que algo sempre nos falta - o que chamamos de Deus, o que chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede, faz parte. E atormenta.
Como a vida é tecelã imprevisível, e ponto dado aqui vezenquando só vai ser arrematado lá na frente. Três anos depois fui parar em Saint-Nazaire, cidadezinha no estuário do rio Loire, fronteira sul da Bretanha. Lá, escrevi uma novela chamada Bem longe de Marienbad, homenagem mais à canção de Barbara que ao filme de Resnais. Uma tarde saí a caminhar procurando na mente uma epígrafe para o texto. Por “acaso”, fui dar na frente de um centro cultural chamado (oh!) Camille Claudel. Lembrei da agenda antiga, fui remexer papéis. E lá estava aquela frase que eu nem lembrava mais e era, sim, a epígrafe e síntese (quem sabe epitáfio, um dia) não só daquele texto, mas de todos os outros que escrevi até hoje. E do que não escrevi, mas vivi e vivo e viverei.
Pego o metrô, vou conferir. Continua lá, a placa na fachada da casa número 1 do Quai de Bourbon, no mesmo lugar. Quando um dia você vier a Paris, procure. E se não vier, para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo.
OEstado de S. Paulo, 3/4/1994
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Paris - Toda vez que chego a Paris tenho um ritual particular. Depois de dormir algumas horas, dou uma espanada no rodenirterceiromundista e vou até Notre-Dame. Acendo vela, rezo, fico olhando a catedral imensa no coração do Ocidente. Sempre penso em Joana d’Arc, heroína dos meus remotos 12 anos; no caminho de Santiago de Compostela, do qual Notre-Dame é o ponto de partida- e em minha mãe, professora de História que, entre tantas coisas mais, me ensinou essa paixão pelo mundo e pelo tempo.
Sempre acontecem coisas quando vou a Notre-Dame. Certa vez, encontrei um conhecido de Porto Alegre que não via pelo menos há 2o anos. Outra, chegando de uma temporada penosa numa Londres congelada e aterrorizada por bombas do IRA, na época da Guerra do Golfo, tropecei numa greve de fome de curdos no jardim em frente. Na mais bonita dessas vezes, eu estava tristíssimo. Há meses não havia sol, ninguém mandava notícias de lugar algum, o dinheiro estava no fim, pessoas que eu considerava amigas tinham sido cruéis e desonestas. Pior que tudo, rondava um sentimento de desorientação. Aquela liberdade e falta de laços tão totais que tornam-se horríveis, e você pode então ir tanto para Botucatu quanto para Java, Budapeste ou Maputo - nada interessa. Viajante sofre muito: é o preço que se paga por querer ver “como um danado”, feito Pessoa. Eu sentia profunda falta de alguma coisa que não sabia o que era. Sabia só que doía, doía. Sem remédio.
Enrolado num capotão da Segunda Guerra, naquela tarde em Notre-Dame rezei, acendi vela, pensei coisas do passado, da fantasia e memória, depois saí a caminhar. Parei numa vitrina cheia de obras do conde Saint-Germain, me perdi pelos bulevares da le dela Cité. Então sentei num banco do Quai de Bourbon, de costas para o Sena, acendi um cigarro e olhei para a casa em frente, no outro lado da rua. Na fachada estragada pelo tempo lia-se numa placa: “II y a toujours quelque choe d’abient qui me tourmente” (Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta) - frase de uma carta escrita por Camilie Claudel a Rodín, em 1886. Daquela casa, dizia a placa, Camille saíra direto para o hospício, onde permaneceu até a morte. Perdida de amor, de talento e de loucura.
Fazia frio, garoava fino sobre o Sena, daquelas garoas tão finas que mal chegam a molhar um cigarro. Copiei a frase numa agenda. E seja lá o que possa significar “ficar bem” dentro desse desconforto inseparável da condição, naquele momento justo e breve - fiquei bem. Tomei um Calvados, entrei numa galeria para ver os desenhos de Egon Schiele enquanto a frase de Camille assentava aos poucos na cabeça. Que algo sempre nos falta - o que chamamos de Deus, o que chamamos de amor, saúde, dinheiro, esperança ou paz. Sentir sede, faz parte. E atormenta.
Como a vida é tecelã imprevisível, e ponto dado aqui vezenquando só vai ser arrematado lá na frente. Três anos depois fui parar em Saint-Nazaire, cidadezinha no estuário do rio Loire, fronteira sul da Bretanha. Lá, escrevi uma novela chamada Bem longe de Marienbad, homenagem mais à canção de Barbara que ao filme de Resnais. Uma tarde saí a caminhar procurando na mente uma epígrafe para o texto. Por “acaso”, fui dar na frente de um centro cultural chamado (oh!) Camille Claudel. Lembrei da agenda antiga, fui remexer papéis. E lá estava aquela frase que eu nem lembrava mais e era, sim, a epígrafe e síntese (quem sabe epitáfio, um dia) não só daquele texto, mas de todos os outros que escrevi até hoje. E do que não escrevi, mas vivi e vivo e viverei.
Pego o metrô, vou conferir. Continua lá, a placa na fachada da casa número 1 do Quai de Bourbon, no mesmo lugar. Quando um dia você vier a Paris, procure. E se não vier, para seu próprio bem guarde este recado: alguma coisa sempre faz falta. Guarde sem dor, embora doa, e em segredo.
OEstado de S. Paulo, 3/4/1994
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sexta-feira, 18 de março de 2011
* A mais justa das saias
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Tem muita gente contaminada pela mais grave manifestação do vírus—a aids psicológica.
A primeira vez que ouvi falar em aids foi quando Markito morreu. Eu estava na salinha de TV do velho Hotel Santa Teresa, no Rio, assistindo ao Jornal Nacional. “Não é possível” - pensei - “Uma espécie de vírus de direita, e moralista, que só ataca aos homossexuais?” Não, não era possível. Porque homossexualidade existe desde a Idade da Pedra. Ou desde que existe a sexualidade - isto é: desde que existe o ser humano. Está na Bíblia, em Jônatas e Davi (“... a alma de Jônatas apegou-se à alma de Davi e Jônatas o amou como a si mesmo” - I Samuel, 18-1), nos gregos, nos índios, em toda a história da humanidade. Por que só agora “Deus” ou a “Natureza” teriam decidido puni-los?
Mas de coisa-que-se-lê-em-revista ou que só-acontece-aos-outros, o vírus foi chegando mais perto. Matou o inteligentíssimo Luiz Roberto Galizia, que eu conhecia relativamente bem (tínhamos até um vago e delirante projeto de adaptar para teatro Orlando, de Virginia Woolf, com Denise Stoklos no papel principal, já pensou?). Matou Fernando Zimpeck, cenógrafo e figurinista gaúcho, supertalentoso. E Flávio Império, Timochenko Webbi, Emile Eddé - pessoas que você encontrava na rua, no restaurante, no cinema. O vírus era real. E matava.
Aí começaram as confusões. A pseudotolerância conquistada nos últimos anos pelos movimentos de liberação homossexual desabou num instantinho. Eu já ouvi - e você certamente também - dezenas de vezes frases tipo “bicha tem mesmo é que morrer de aids”. Ou propostas para afastar homossexuais da “sociedade sadia” - em campos de concentração, suponho. Como nos velhos e bons tempos de Auschwitz? Tudo para o “bem da família”, porque afinal - e eles adoram esse argumento — “o que será do futuro de nossas pobres criancinhas?”
Só que homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade - voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de moral ou integridade. (É curioso, e revelador, observar que quando Gore Vidal vem ao Brasil, toda a imprensa se refere a ele como “o escritor homossexual” mas estou certo que se viesse, por exemplo, Norman Mailer, ninguém falaria do “escritor heterossexual”.) Sim, a moral & os bons costumes emboscados por trás do falso liberalismo - e muito bem amparados pelo mais reacionário papa de toda a (triste) história do Vaticano - arreganha agora os dentes para declarar: “Viram como este vício hediondo não só corrompe, mas mata?”
Corrompe nada, mata nada. Acontece apenas que a única forma possível de consumação do ato sexual entre dois homens é mais favorável à transmissão do vírus, que se espalhou nesse grupo devido à alta rotatividade sexual de alguns. E é aí que começa a acontecer isso que chamo de “a mais justa das saias”. Afinal é preciso que as pessoas compreendam que um homossexual não é um contaminado em potencial, feito bomba-relógio prestes a explodir. Isso soa tão cretino e preconceituoso como afirmar que todo negro é burro e todo judeu, sacana.
Heteros ou homos (?) a médio prazo iremos todos enlouquecer, se passarmos a ver no outro uma possibilidade de morte. Tem muita gente contaminada pela mais grave manifestação do vírus - a aids psicológica. Do corpo, você sabe, tomados certos cuidados, o vírus pode ser mantido a distância. E da mente? Porque uma vez instalado lá, o HTLV-3 não vai acabar com as suas defesas imunológicas, mas com suas emoções, seu gosto de viver, seu sorriso, sua capacidade de encantar-se. Sem isso, não tem graça viver, concorda?
Você gostaria de viver num mundo de zumbis? Eu, decididamente não. Então pela nossa própria sobrevivência afetiva - com carinho, com cuidado, com um sentimento de dignidade — ô gente, vamos continuar namorando. Era tão bom, não era?
O Estado de S. Paulo, 25/3/987
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Tem muita gente contaminada pela mais grave manifestação do vírus—a aids psicológica.
A primeira vez que ouvi falar em aids foi quando Markito morreu. Eu estava na salinha de TV do velho Hotel Santa Teresa, no Rio, assistindo ao Jornal Nacional. “Não é possível” - pensei - “Uma espécie de vírus de direita, e moralista, que só ataca aos homossexuais?” Não, não era possível. Porque homossexualidade existe desde a Idade da Pedra. Ou desde que existe a sexualidade - isto é: desde que existe o ser humano. Está na Bíblia, em Jônatas e Davi (“... a alma de Jônatas apegou-se à alma de Davi e Jônatas o amou como a si mesmo” - I Samuel, 18-1), nos gregos, nos índios, em toda a história da humanidade. Por que só agora “Deus” ou a “Natureza” teriam decidido puni-los?
Mas de coisa-que-se-lê-em-revista ou que só-acontece-aos-outros, o vírus foi chegando mais perto. Matou o inteligentíssimo Luiz Roberto Galizia, que eu conhecia relativamente bem (tínhamos até um vago e delirante projeto de adaptar para teatro Orlando, de Virginia Woolf, com Denise Stoklos no papel principal, já pensou?). Matou Fernando Zimpeck, cenógrafo e figurinista gaúcho, supertalentoso. E Flávio Império, Timochenko Webbi, Emile Eddé - pessoas que você encontrava na rua, no restaurante, no cinema. O vírus era real. E matava.
Aí começaram as confusões. A pseudotolerância conquistada nos últimos anos pelos movimentos de liberação homossexual desabou num instantinho. Eu já ouvi - e você certamente também - dezenas de vezes frases tipo “bicha tem mesmo é que morrer de aids”. Ou propostas para afastar homossexuais da “sociedade sadia” - em campos de concentração, suponho. Como nos velhos e bons tempos de Auschwitz? Tudo para o “bem da família”, porque afinal - e eles adoram esse argumento — “o que será do futuro de nossas pobres criancinhas?”
Só que homossexualidade não existe, nunca existiu. Existe sexualidade - voltada para um objeto qualquer de desejo. Que pode ou não ter genitália igual, e isso é detalhe. Mas não determina maior ou menor grau de moral ou integridade. (É curioso, e revelador, observar que quando Gore Vidal vem ao Brasil, toda a imprensa se refere a ele como “o escritor homossexual” mas estou certo que se viesse, por exemplo, Norman Mailer, ninguém falaria do “escritor heterossexual”.) Sim, a moral & os bons costumes emboscados por trás do falso liberalismo - e muito bem amparados pelo mais reacionário papa de toda a (triste) história do Vaticano - arreganha agora os dentes para declarar: “Viram como este vício hediondo não só corrompe, mas mata?”
Corrompe nada, mata nada. Acontece apenas que a única forma possível de consumação do ato sexual entre dois homens é mais favorável à transmissão do vírus, que se espalhou nesse grupo devido à alta rotatividade sexual de alguns. E é aí que começa a acontecer isso que chamo de “a mais justa das saias”. Afinal é preciso que as pessoas compreendam que um homossexual não é um contaminado em potencial, feito bomba-relógio prestes a explodir. Isso soa tão cretino e preconceituoso como afirmar que todo negro é burro e todo judeu, sacana.
Heteros ou homos (?) a médio prazo iremos todos enlouquecer, se passarmos a ver no outro uma possibilidade de morte. Tem muita gente contaminada pela mais grave manifestação do vírus - a aids psicológica. Do corpo, você sabe, tomados certos cuidados, o vírus pode ser mantido a distância. E da mente? Porque uma vez instalado lá, o HTLV-3 não vai acabar com as suas defesas imunológicas, mas com suas emoções, seu gosto de viver, seu sorriso, sua capacidade de encantar-se. Sem isso, não tem graça viver, concorda?
Você gostaria de viver num mundo de zumbis? Eu, decididamente não. Então pela nossa própria sobrevivência afetiva - com carinho, com cuidado, com um sentimento de dignidade — ô gente, vamos continuar namorando. Era tão bom, não era?
O Estado de S. Paulo, 25/3/987
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segunda-feira, 14 de março de 2011
* Venha comigo para o reino das ondinas
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.....................................Para Luciano Alabarse
Ele veio vindo pela beira do mar, as luzes da cidade longe às suas costas. As vezes escorregava tentando segurar-se em alguma coisa, mas na praia deserta não havia mais nada para segurar-se além das ondas que fugiam sempre. A areia molhada umedecia as calças pretas do smoking, salpicava as fraldas soltas da camisa, respingava o cravo vermelho pendendo da lapela. Viu-a de longe, e parecia linda com os cabelos longos soltos naquela brisa com cheiro de mulher, algas e sal.
- Betinha - chamou, tropeçando outra vez nos sapatos de verniz. Ela continuou a correr pela praia como se não ouvisse, como se não o visse. Descalça, braços erguidos acima da cabeça, saltava alto, redondo, depois deixava-se cair como num desmaio, e, quando o coração dele começava a bater mais forte pensando em ajudá-la, tomava a levantar-se leve feito essas pandorgas que os meninos empinam pelas tardes e mantinha-se no ar por alguns segundos, projetada para a frente. Folha, pluma branca, ave. - Betinha - ele chamou de novo, mais perto. Então ela olhou e sorriu. Não era Betinha.
- Olá - a voz dela era tão clara que o fez pensar que a maioria das pessoas não devia falar à beira-mar. A voz humana sempre parecia tosca demais entre o rumor das ondas, mas a dela, a voz da moça descalça, de branco, era sonora e limpa e de certa forma verde como as próprias ondas. Fundia-se com elas, e como elas também parecia crescer aos poucos, explodir num tom mais alto, depois fugir outra vez.
- Está procurando alguém?
- Betinha - repetiu. - Onde está Betinha?
Ela riu alto sem responder. Estendeu o braço para tocá-la, mas aconteceu alguma coisa no momento em que seus dedos alongaram-se em direção ao vestido branco transparente. Ele estava bêbado, estava sem óculos e muito bêbado, portanto não saberia dizer se aquilo chegara mesmo a acontecer. A impressão - a impressão era de que seus dedos tinham atravessado o corpo dela. Não só o tecido leve do vestido, mas o próprio corpo de carne, como se atravessa uma névoa sem ver a névoa quando se está dentro dela.
— Você viu a lua? — ela perguntou.
Só então ele olhou para cima, para a lua cheia no céu de dezembro. Ficou olhando quase esquecido dela, entendendo devagar por que fosforesciam a areia, a crista das ondas, o vestido, a pele, os cabelos da moça. Tcomou a olhá-la, ela já não estava onde pensou que estaria. Continuava a dançar mais longe dele, como se cumprisse algum ritual profano para o mar e a lua. Deve estar drogada, pensou, chegando bem perto. Nos olhos dela as pupilas eram remotas ilhas no horizonte e alguma coisa, alguma coisa ele não entendia.
- Quer um gole? - perguntou tirando a pequena garrafa do bolso interno do paletó. Ela sacudiu a cabeça e ele bebeu sozinho, o líquido escorreu pelo queixo, pelo peito rendado da camisa até gotejar na areia formando poças miúdas que começaram também a fosforescer. Só depois de enxugar a boca nas costas das mãos estendeu a garrafa para ela. Com suas mãos claras de unhas curtas sem pintura, a moça apanhou- a e jogou-a ao mar.
- Veja, ela voa - ela gritou enquanto a garrafa brilhava no ar. E quando caiu nas ondas, riu mais alto, começando a correr. Começou a persegui-la pela praia, mas estava tão completamente bêbado e ainda, como se não bastasse, sem óculos, e sempre acontecia outra vez aquela sensação de névoa, o corpo dela como que atravessando seus dedos para depois projetar-se mais longe no espaço. Ele caiu muitas vezes, placas de areia grudavam na roupa, e quando um fio de saliva escorregou do canto da boca, lembrou-se de repente de um desenho em algum livro de mitologia, o sátiro perseguindo uma ninfa. Só não tinha flauta, nem pés de bode, verificou, tirando as meias, depois os sapatos, o paletó, camisa e gravata. Molhado de suor, puxou as calças até os joelhos e ficou jogado de costas na areia enquanto eia dançava sem parar à sua volta.
- Você consegue vê-las? - ela apontou o mar.
- Hein - ele disse, sem acompanhar o gesto.
Ela repetiu, olhando fixo para onde as ondas quebravam, mas já não parecia uma pergunta:
- Você consegue vê-las.
- As ondas? — ele esticou o pescoço, apoiando- se no topo da cabeça para olhar o mar lá atrás, e ficou ainda mais tonto. Foi assim, oblíqua, que a viu aproximar-se das ondas, curvando-se para tocar na superfície das águas. Estranho, pensou, estranho como ele a via de longe, desse ângulo — as ondas cercavam-na sem molhar seus pés, circundavam os tornozelos como guirlandas até explodirem em espuma no ar em torno do corpo, feito uma aura de gotas. Ela colheu essa espuma ainda mais brilhante nas palmas das mãos e estendeu-as abertas para ele. Parecia uma oferenda.
- Não, não as ondas. As ondas todo mundo vê. Essas moças todas, vestidas de espuma branca. São tantas, você não vê? Aproveite agora, as ondinas só aparecem no apogeu da lua cheia. Você não consegue mesmo vê-las?
- Eu não consigo - ele disse. Via apenas o balanço das ondas, para baixo, como se estivesse no convés de um navio, para cima, muitas vezes, para baixo, sem parar, para cima. Deixou a cabeça tombar para a frente: — Acho que vou vomitar.
Ela ajoelhou-se ao lado dele, as mãos de dedos abertos em torno da sua cabeça tonta, sem tocá-la. Tão rápida, pensou, lá no meio das ondas e de repente aqui ao meu lado outra vez.
- Você não devia beber tanto - os dedos frescos dela passavam a um milímetro da testa suada. Nesse milímetro entre a pele dele e a dela estava o frescor, feito um sopro. — Desse jeito você nunca conseguirá vê-las.
Ela uniu os indicadores e os polegares em triângulo apontando o vértice para o centro exato da testa dele, naquele ponto justo, centro da cruz entre o horizontal das duas têmporas e o vertical dos pêlos unidos das sobrancelhas no alto do nariz até o início dos cabelos.
Então uma coisa amarga contraiu-se no estômago dele, depois derramou-se morna sobre as calças, as pernas, a areia. Antes, antes de novo, pareceram atravessar o vestido dela sem sequer respingá-lo.
- O seu vestido - começou a dizer.
- Não tem importância - ela puxou o vestido para cima, despiu-o, rodou-o no ar e jogou-o nas águas. Olhou-a mais uma vez, e ela não usava mesmo nada por baixo, inteiramente nua, inteiramente branca, sem marca alguma no corpo liso, seios de adolescente.
- Você nunca toma sol? - perguntou.
- Eu sou filha da lua - a moça disse.
Ele não ouviu. Cabeça baixa, vomitava concentrado sobre os próprios pés. Depois deitou-se na areia e olhou para a lua cheia ao lado da estrela brilhante, Vênus talvez, ficou pensando enquanto ela desabotoava suas calças, puxava-a pelos pés melados depois amontoava rindo numa trouxa com as cuecas roxas, o paletó, sapatos, camisa, meias, e jogava tudo no mar. Ele também ficou inteiramente nu, mas só a pele branca em torno do sexo fosforescia à luz da lua, o resto era tão moreno de sol que quase não via a si mesmo assim, fundido ao escuro.
- Quem é você? - perguntou.
Ela ergueu-se num único impulso e caminhou novamente para o mar. Os anúncios luminosos da cidade longe refletiam-se nos seios, as ondas cavalgavam o ventre raso para explodirem primeiro no sexo liso de pêlos, depois nos bicos dos seios à medida que entrava mar adentro.
- Quem é você? - tornou a perguntar, tentando levantar-se.
- Venha - ela gritou do meio das ondas, as águas cobriam metade do corpo. - Venha logo, venha comigo para o reino das ondinas.
Ele tentou e tentou outra vez a tentar levantar-se enquanto via o mar arrastar suas roupas cada vez mais para longe. Preciso pegá-las, pensou, as chaves do carro, a carteira, e com grande esforço conseguiu parar em pé. Entrou na água, as ondas envolveram os tornozelos, lamberam as coxas. Curvou-se, molhou as pontas dos dedos, passou-as na altura do coração, como a mãe ensinara naquela remota primeira vez em que viu o mar. Quando a água chegou ao pescoço, mergulhou de repente para encontrá-la no fundo, as pupilas guardando pérolas negras, navios submersos, grutas de coral. Ao emergir, a cabeça dele estava lúcida como se tivesse bebido apenas daquela água salgada que cuspia em volta.
- Olha - ela brotou do meio das águas apontando o céu. Dezenas de estrelas cadentes cruzavam-se em todas as direções sobre suas cabeças. Numa vertigem, ele baixou os olhos, e foi quando pela primeira vez deu-se conta que eram um homem e uma mulher inteiramente nus naquela praia deserta. Plena madrugada, quase verão. Avançou, os dois braços estendidos e a voz tosca de quem não sabe estar junto ao mar, percebia. Mesmo assim, insistiu:
— Como é mesmo o seu nome, gatinha?
— Ondina — ela disse. Ou qualquer coisa assim, ele jamais teria certeza.
Suspirou fundo, parecia triste, e acrescentou antes de desaparecer: — Que pena, você não está preparado.
Os ouvidos dele estavam cheios d’água, as ondas explodiam barulhentas. Tomou a mergulhar procurando, mas não havia nada nas águas frias. Ao voltar à tona olhou para cima e já não havia também estrelas cadentes, nem sequer estrelas no baço céu de lua álgida. Só o cinza das águas, o visgo de formas vivas enleadas em suas pernas. Nada mais fosforescia. Saiu tremendo do mar, jogou-se de bruços na areia e outra vez olhou para o céu. A nuvem negra cobria a lua cheia. Na praia deserta ele estava nu e bêbado, o estômago voltou a contrair-se, alguém gritou ao longe, no lado das luzes da cidade, parecia seu nome, Betinha, lembrou, procurando as roupas, a carteira, as chaves, encontrou apenas um sapato de verniz preto todo enlameado e um cravo vermelho murcho. Foi-se dobrando sobre os joelhos lembrando daquela primeira vez, a mãe, o mar, tanto tempo, Vênus talvez, bem perto da lua cheia, tinha frio, o sapato numa das mãos, restos do cravo na outra, a vontade de vomitar que voltava. Que porre infernal, ele gemeu arquejando sobre a areia opaca, nunca vão acreditar.
— Ondina — pediu para ninguém, sozinho na praia, nu no meio da noite.
— Ondina, por favor, me ajuda.
.
.
Ele veio vindo pela beira do mar, as luzes da cidade longe às suas costas. As vezes escorregava tentando segurar-se em alguma coisa, mas na praia deserta não havia mais nada para segurar-se além das ondas que fugiam sempre. A areia molhada umedecia as calças pretas do smoking, salpicava as fraldas soltas da camisa, respingava o cravo vermelho pendendo da lapela. Viu-a de longe, e parecia linda com os cabelos longos soltos naquela brisa com cheiro de mulher, algas e sal.
- Betinha - chamou, tropeçando outra vez nos sapatos de verniz. Ela continuou a correr pela praia como se não ouvisse, como se não o visse. Descalça, braços erguidos acima da cabeça, saltava alto, redondo, depois deixava-se cair como num desmaio, e, quando o coração dele começava a bater mais forte pensando em ajudá-la, tomava a levantar-se leve feito essas pandorgas que os meninos empinam pelas tardes e mantinha-se no ar por alguns segundos, projetada para a frente. Folha, pluma branca, ave. - Betinha - ele chamou de novo, mais perto. Então ela olhou e sorriu. Não era Betinha.
- Olá - a voz dela era tão clara que o fez pensar que a maioria das pessoas não devia falar à beira-mar. A voz humana sempre parecia tosca demais entre o rumor das ondas, mas a dela, a voz da moça descalça, de branco, era sonora e limpa e de certa forma verde como as próprias ondas. Fundia-se com elas, e como elas também parecia crescer aos poucos, explodir num tom mais alto, depois fugir outra vez.
- Está procurando alguém?
- Betinha - repetiu. - Onde está Betinha?
Ela riu alto sem responder. Estendeu o braço para tocá-la, mas aconteceu alguma coisa no momento em que seus dedos alongaram-se em direção ao vestido branco transparente. Ele estava bêbado, estava sem óculos e muito bêbado, portanto não saberia dizer se aquilo chegara mesmo a acontecer. A impressão - a impressão era de que seus dedos tinham atravessado o corpo dela. Não só o tecido leve do vestido, mas o próprio corpo de carne, como se atravessa uma névoa sem ver a névoa quando se está dentro dela.
— Você viu a lua? — ela perguntou.
Só então ele olhou para cima, para a lua cheia no céu de dezembro. Ficou olhando quase esquecido dela, entendendo devagar por que fosforesciam a areia, a crista das ondas, o vestido, a pele, os cabelos da moça. Tcomou a olhá-la, ela já não estava onde pensou que estaria. Continuava a dançar mais longe dele, como se cumprisse algum ritual profano para o mar e a lua. Deve estar drogada, pensou, chegando bem perto. Nos olhos dela as pupilas eram remotas ilhas no horizonte e alguma coisa, alguma coisa ele não entendia.
- Quer um gole? - perguntou tirando a pequena garrafa do bolso interno do paletó. Ela sacudiu a cabeça e ele bebeu sozinho, o líquido escorreu pelo queixo, pelo peito rendado da camisa até gotejar na areia formando poças miúdas que começaram também a fosforescer. Só depois de enxugar a boca nas costas das mãos estendeu a garrafa para ela. Com suas mãos claras de unhas curtas sem pintura, a moça apanhou- a e jogou-a ao mar.
- Veja, ela voa - ela gritou enquanto a garrafa brilhava no ar. E quando caiu nas ondas, riu mais alto, começando a correr. Começou a persegui-la pela praia, mas estava tão completamente bêbado e ainda, como se não bastasse, sem óculos, e sempre acontecia outra vez aquela sensação de névoa, o corpo dela como que atravessando seus dedos para depois projetar-se mais longe no espaço. Ele caiu muitas vezes, placas de areia grudavam na roupa, e quando um fio de saliva escorregou do canto da boca, lembrou-se de repente de um desenho em algum livro de mitologia, o sátiro perseguindo uma ninfa. Só não tinha flauta, nem pés de bode, verificou, tirando as meias, depois os sapatos, o paletó, camisa e gravata. Molhado de suor, puxou as calças até os joelhos e ficou jogado de costas na areia enquanto eia dançava sem parar à sua volta.
- Você consegue vê-las? - ela apontou o mar.
- Hein - ele disse, sem acompanhar o gesto.
Ela repetiu, olhando fixo para onde as ondas quebravam, mas já não parecia uma pergunta:
- Você consegue vê-las.
- As ondas? — ele esticou o pescoço, apoiando- se no topo da cabeça para olhar o mar lá atrás, e ficou ainda mais tonto. Foi assim, oblíqua, que a viu aproximar-se das ondas, curvando-se para tocar na superfície das águas. Estranho, pensou, estranho como ele a via de longe, desse ângulo — as ondas cercavam-na sem molhar seus pés, circundavam os tornozelos como guirlandas até explodirem em espuma no ar em torno do corpo, feito uma aura de gotas. Ela colheu essa espuma ainda mais brilhante nas palmas das mãos e estendeu-as abertas para ele. Parecia uma oferenda.
- Não, não as ondas. As ondas todo mundo vê. Essas moças todas, vestidas de espuma branca. São tantas, você não vê? Aproveite agora, as ondinas só aparecem no apogeu da lua cheia. Você não consegue mesmo vê-las?
- Eu não consigo - ele disse. Via apenas o balanço das ondas, para baixo, como se estivesse no convés de um navio, para cima, muitas vezes, para baixo, sem parar, para cima. Deixou a cabeça tombar para a frente: — Acho que vou vomitar.
Ela ajoelhou-se ao lado dele, as mãos de dedos abertos em torno da sua cabeça tonta, sem tocá-la. Tão rápida, pensou, lá no meio das ondas e de repente aqui ao meu lado outra vez.
- Você não devia beber tanto - os dedos frescos dela passavam a um milímetro da testa suada. Nesse milímetro entre a pele dele e a dela estava o frescor, feito um sopro. — Desse jeito você nunca conseguirá vê-las.
Ela uniu os indicadores e os polegares em triângulo apontando o vértice para o centro exato da testa dele, naquele ponto justo, centro da cruz entre o horizontal das duas têmporas e o vertical dos pêlos unidos das sobrancelhas no alto do nariz até o início dos cabelos.
Então uma coisa amarga contraiu-se no estômago dele, depois derramou-se morna sobre as calças, as pernas, a areia. Antes, antes de novo, pareceram atravessar o vestido dela sem sequer respingá-lo.
- O seu vestido - começou a dizer.
- Não tem importância - ela puxou o vestido para cima, despiu-o, rodou-o no ar e jogou-o nas águas. Olhou-a mais uma vez, e ela não usava mesmo nada por baixo, inteiramente nua, inteiramente branca, sem marca alguma no corpo liso, seios de adolescente.
- Você nunca toma sol? - perguntou.
- Eu sou filha da lua - a moça disse.
Ele não ouviu. Cabeça baixa, vomitava concentrado sobre os próprios pés. Depois deitou-se na areia e olhou para a lua cheia ao lado da estrela brilhante, Vênus talvez, ficou pensando enquanto ela desabotoava suas calças, puxava-a pelos pés melados depois amontoava rindo numa trouxa com as cuecas roxas, o paletó, sapatos, camisa, meias, e jogava tudo no mar. Ele também ficou inteiramente nu, mas só a pele branca em torno do sexo fosforescia à luz da lua, o resto era tão moreno de sol que quase não via a si mesmo assim, fundido ao escuro.
- Quem é você? - perguntou.
Ela ergueu-se num único impulso e caminhou novamente para o mar. Os anúncios luminosos da cidade longe refletiam-se nos seios, as ondas cavalgavam o ventre raso para explodirem primeiro no sexo liso de pêlos, depois nos bicos dos seios à medida que entrava mar adentro.
- Quem é você? - tornou a perguntar, tentando levantar-se.
- Venha - ela gritou do meio das ondas, as águas cobriam metade do corpo. - Venha logo, venha comigo para o reino das ondinas.
Ele tentou e tentou outra vez a tentar levantar-se enquanto via o mar arrastar suas roupas cada vez mais para longe. Preciso pegá-las, pensou, as chaves do carro, a carteira, e com grande esforço conseguiu parar em pé. Entrou na água, as ondas envolveram os tornozelos, lamberam as coxas. Curvou-se, molhou as pontas dos dedos, passou-as na altura do coração, como a mãe ensinara naquela remota primeira vez em que viu o mar. Quando a água chegou ao pescoço, mergulhou de repente para encontrá-la no fundo, as pupilas guardando pérolas negras, navios submersos, grutas de coral. Ao emergir, a cabeça dele estava lúcida como se tivesse bebido apenas daquela água salgada que cuspia em volta.
- Olha - ela brotou do meio das águas apontando o céu. Dezenas de estrelas cadentes cruzavam-se em todas as direções sobre suas cabeças. Numa vertigem, ele baixou os olhos, e foi quando pela primeira vez deu-se conta que eram um homem e uma mulher inteiramente nus naquela praia deserta. Plena madrugada, quase verão. Avançou, os dois braços estendidos e a voz tosca de quem não sabe estar junto ao mar, percebia. Mesmo assim, insistiu:
— Como é mesmo o seu nome, gatinha?
— Ondina — ela disse. Ou qualquer coisa assim, ele jamais teria certeza.
Suspirou fundo, parecia triste, e acrescentou antes de desaparecer: — Que pena, você não está preparado.
Os ouvidos dele estavam cheios d’água, as ondas explodiam barulhentas. Tomou a mergulhar procurando, mas não havia nada nas águas frias. Ao voltar à tona olhou para cima e já não havia também estrelas cadentes, nem sequer estrelas no baço céu de lua álgida. Só o cinza das águas, o visgo de formas vivas enleadas em suas pernas. Nada mais fosforescia. Saiu tremendo do mar, jogou-se de bruços na areia e outra vez olhou para o céu. A nuvem negra cobria a lua cheia. Na praia deserta ele estava nu e bêbado, o estômago voltou a contrair-se, alguém gritou ao longe, no lado das luzes da cidade, parecia seu nome, Betinha, lembrou, procurando as roupas, a carteira, as chaves, encontrou apenas um sapato de verniz preto todo enlameado e um cravo vermelho murcho. Foi-se dobrando sobre os joelhos lembrando daquela primeira vez, a mãe, o mar, tanto tempo, Vênus talvez, bem perto da lua cheia, tinha frio, o sapato numa das mãos, restos do cravo na outra, a vontade de vomitar que voltava. Que porre infernal, ele gemeu arquejando sobre a areia opaca, nunca vão acreditar.
— Ondina — pediu para ninguém, sozinho na praia, nu no meio da noite.
— Ondina, por favor, me ajuda.
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quarta-feira, 2 de março de 2011
* A Vera Antoun
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Porto Alegre, 21 de março de 1972.
Verinha querida; escrevi para você e Henrique há muito tempo, em dezembro. Não recebi nenhuma resposta, fiquei grilado com o silêncio, achando que vocês não me queriam mais ou, na melhor das hipóteses que o correio havia extraviado a minha carta. De qualquer jeito, era uma carta muito besta, falsa e descolorida — eu estava atravessando uma fase muito ruim, me sentia exilado aqui em Porto Alegre, vazio, sem nada pra dizer, a não ser que gostava imensamente de vocês dois e não queria perdê-los. Talvez fosse um pedido de socorro envergonhado. O socorro não veio, nem de vocês nem de ninguém, e fui obrigado a me investigar e afundar em mim mesmo durante todo esse tempo, no começo assim como quem cava um poço no deserto, depois, aos poucos, sentindo a areia mais úmida, uns filetes d’água brotando lentamente, até agora, quando me sinto na iminência de mergulhar o corpo nesse lago (talvez mar)-eu-os outros cosmos, não sei.
Eu ia te escrever qualquer dia, eu tinha - e tenho - um monte de coisas pra te dizer, aquelas coisas que a gente cala quando está perto porque acha que as vibrações do corpo bastam, ou por medo, não sei. Mas as coisas todas, externointerno, eram muito difíceis e escuras, eu não tinha condições de mostrar ou dar nada a ninguém que não fosse também escuro, compreende? Eu não queria, eu não quero dar trevas, dor, medo, solidão - eu quero dar e ser luz, calor, amparo (naquela cerimônia do chá em Sta. Teresa eu disse que queria ser ombro, você disse que queria ser um ovo — será que um ovo pode se apoiar num ombro sem quebrar?). A noite passada sonhei com você, e acordei hoje todo cheio de Verinha, você sentada comigo na frente do Conservatório, você na praia, você de branco, você sorrindo e apertando os olhos, você de tantos jeitos que eu não tinha outra solução senão sentar e escrever, embora com medo de não poder, de não saber, quando a gente segura um vidro a gente tem medo de quebrá-lo. Sobre o sonho não falo, talvez você achasse ridículo, mas era bonito.
Passei coisas difíceis. Fui demitido da Bloch e estive preso por porte de drogas. Depois disso, voltei para cá e, durante algum tempo, mergulhei numa série de viagens lisérgicas, de onde saí mais confuso do que nunca. Perdi minha identidade, me desconheci. Passei um mês inteiro trancado no quarto, sentindo dor. Não exatamente sentindo, mas sendo dor, sem falar com ninguém, sem pensar nada, sem fazer nada. Passei janeiro na praia, com meus pais e meus irmãos, e em fevereiro fomos pra Itaqui, uma cidadezinha na fronteira com a Argentinas onde moram meus avós e tios. Acho que foi um pouco o ter voltado a encontrar a paisagem da minha infância que me fez reencontrar também comigo mesmo, voltar a abrir os olhos e não fugir mais. Toda aquela terra, as cadeiras na calçada e as pessoas olhando o céu, sabendo da natureza, as ruazinhas estreitas, as casas velhas, a ausência de televisão, de automóveis, de civilização — tudo isso faz parte do mais fundo de mim, onde comecei, onde estou plantado. A vontade compulsiva de me atordoar cedeu lugar à vontade de ser simples, ser terra (como Jorge de Lima: “Nunca fui senão uma coisa híbrida/ metade céu, metade terra com a luz de Mira- Celi dentro dos olhos”) e quando voltamos para Porto Alegre, eu já estava em pleno processo de regeneração.
Estou fazendo análise, ontem tive a primeira sessão. Não é análise tradicional: o paciente esticado no divã e o analista remexendo a cuca com seu bisturi-freudiano-kleiniano-enferrujado. O método de um alemão Schultz (o papa germânico da psicanálise), fundamentado na auto-hipnose, concentração, relaxamento, meditação, auto-análise - baseado nas filosofias orientais, ioga, zenbudismo, tao. O paciente aprende a dominar seu corpo e sua mente e, no último estágio, alcança uma grande paz ou conhecimento (espécie de nirvana ou satori), encontra dentro de si reservas de criatividade e pode orientar-se para qualquer objetivo, auto-estimulando-se. Os exercícios de concentração, como a ioga, podem levar a ter visões de cores, paisagens paradisíacas, essas coisas. E tudo isso acaba com a ansiedade, a angústia, a insegurança. Vai ser bom e vou conseguir.
Depois das viagens, estive quase paranóico. Vi monstros horrendos nas pessoas, me senti perseguido e encurralado, aí me tranquei em casa e, cada vez que saía, era um suplício — voltavam as ondas do sunshine e eu achava que as pessoas iam me morder, rir de mim, um inferno. Quando melhorei um pouco, tentei sair e procurar alguns amigos, mas não consegui nenhuma integração com eles. Fiquei surpreendido com o grau de vampirização das pessoas: todas elas preocupadíssimas em falar, falar, falar, extrair opiniões, orientações, dicas, dizer coisas inteligentinhas, mostrarem que não são caretas, que não têm medo, que não sentem dor. Cada contato meu com alguma pessoa representava uma perda enorme de energia vital: eu saía esgotado, confuso, com dor de cabeça e, principalmente, com dor por não poder fazer nada pelo desespero alheio. A minha própria miséria aumentava. Foi aí que a solidão deixou de ser involuntária para se transformar em escolha. E foi bom, está sendo bom. Passo o dia lendo, ouvindo música, vendo velhos filmes na televisão, de vez em quando vou ao cinema ou saio para passear na beira do rio que passa atrás do edifício. Fico lá sentado numa pedra, fumando e pensando nas pessoas que perdi, senão em afeto, pelo menos em proximidade física. De vez em quando choro, é bom chorar, eu não tenho vergonha, mas em todos os momentos existe a certeza de ter feito uma escolha acertada, de estar caminhando em direção à luz. Não nego nada do que fiz, também não tenho arrependimentos ou mágoas: eu não poderia ter agido de outra maneira — mesmo em relação a você — levando em conta o quanto eu estava confuso naquela época. Também já não tenho aquelas queixas infantis, na base do “tudo dá errado pra mim”, ou autopunições como “eu sou uma besta, faço tudo errado”. Nada é errado, quando o erro faz parte de uma procura ou de um processo de conhecimento. Gosto de olhar as pedras e os desenhos do vento na superficie da água, gosto de sentir as modificações da luz quando o sol está desaparecendo do outro lado do rio, gosto de sentir o dia se transformando em noite e em dia outra vez, gosto de olhar as crianças brincando no corredor de entrada e das palmeiras que existem no meio da minha rua - gosto de pensar que vou sempre ter olhos para gostar dessas coisas, e por mais sozinho ou triste que eu esteja vou ter sempre esse olhar sobre as coisas. Não sei muito, também não tenho muito, também não quero muito, mas estou aprendendo a respirar o ar das montanhas.
Verinha, eu te amei muito. Nunca disse, como você também não disse, mas acho que você soube. Pena que as grandes e as cucas confusas não saibam amar. Pena também que a gente se envergonhe de dizer, a gente não devia ter vergonha do que é bonito. Penso sempre que um dia a gente vai se encontrar de novo, e que então tudo vai ser mais claro, que não vai mais haver medo nem coisas falsas. Há uma porção de coisas minhas que você não sabe, e que precisaria saber para compreender todas as vezes que fugi de você e voltei e tornei a fugir. São coisas difíceis de serem contadas, mais difíceis talvez de serem compreendidas - se um dia a gente se encontrar de novo, em amor, eu direi delas, caso contrário não será preciso. Essas coisas não pedem resposta nem ressonância alguma em você: eu só queria que você soubesse do muito amor e ternura que eu tinha - e tenho - pra você. Acho que é bom a gente saber que existe desse jeito em alguém, como você existe em mim.
Queria saber de você e de Henrique, daqueles meninos que sem me conhecerem me levaram para a sua casa e se mostraram para mim. Vocês foram as melhores pessoas que encontrei no Rio, sabem disso? Por favor, me escrevam, é importante, um bilhete, um postal, qualquer coisa, de preferência uma carta gorda como uma cantora lírica, contando de tudo que vocês estão sendo e fazendo nessa cidade louca, linda e longe. Eu tô aqui, lendo Charles Reich e zen-budismo, sentindo saudade de vocês. Os taurinos e virginianos não devem se perder, Verinha. Um grande beijo e saudade do
...............................................................................................................Caio
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Porto Alegre, 21 de março de 1972.
Verinha querida; escrevi para você e Henrique há muito tempo, em dezembro. Não recebi nenhuma resposta, fiquei grilado com o silêncio, achando que vocês não me queriam mais ou, na melhor das hipóteses que o correio havia extraviado a minha carta. De qualquer jeito, era uma carta muito besta, falsa e descolorida — eu estava atravessando uma fase muito ruim, me sentia exilado aqui em Porto Alegre, vazio, sem nada pra dizer, a não ser que gostava imensamente de vocês dois e não queria perdê-los. Talvez fosse um pedido de socorro envergonhado. O socorro não veio, nem de vocês nem de ninguém, e fui obrigado a me investigar e afundar em mim mesmo durante todo esse tempo, no começo assim como quem cava um poço no deserto, depois, aos poucos, sentindo a areia mais úmida, uns filetes d’água brotando lentamente, até agora, quando me sinto na iminência de mergulhar o corpo nesse lago (talvez mar)-eu-os outros cosmos, não sei.
Eu ia te escrever qualquer dia, eu tinha - e tenho - um monte de coisas pra te dizer, aquelas coisas que a gente cala quando está perto porque acha que as vibrações do corpo bastam, ou por medo, não sei. Mas as coisas todas, externointerno, eram muito difíceis e escuras, eu não tinha condições de mostrar ou dar nada a ninguém que não fosse também escuro, compreende? Eu não queria, eu não quero dar trevas, dor, medo, solidão - eu quero dar e ser luz, calor, amparo (naquela cerimônia do chá em Sta. Teresa eu disse que queria ser ombro, você disse que queria ser um ovo — será que um ovo pode se apoiar num ombro sem quebrar?). A noite passada sonhei com você, e acordei hoje todo cheio de Verinha, você sentada comigo na frente do Conservatório, você na praia, você de branco, você sorrindo e apertando os olhos, você de tantos jeitos que eu não tinha outra solução senão sentar e escrever, embora com medo de não poder, de não saber, quando a gente segura um vidro a gente tem medo de quebrá-lo. Sobre o sonho não falo, talvez você achasse ridículo, mas era bonito.
Passei coisas difíceis. Fui demitido da Bloch e estive preso por porte de drogas. Depois disso, voltei para cá e, durante algum tempo, mergulhei numa série de viagens lisérgicas, de onde saí mais confuso do que nunca. Perdi minha identidade, me desconheci. Passei um mês inteiro trancado no quarto, sentindo dor. Não exatamente sentindo, mas sendo dor, sem falar com ninguém, sem pensar nada, sem fazer nada. Passei janeiro na praia, com meus pais e meus irmãos, e em fevereiro fomos pra Itaqui, uma cidadezinha na fronteira com a Argentinas onde moram meus avós e tios. Acho que foi um pouco o ter voltado a encontrar a paisagem da minha infância que me fez reencontrar também comigo mesmo, voltar a abrir os olhos e não fugir mais. Toda aquela terra, as cadeiras na calçada e as pessoas olhando o céu, sabendo da natureza, as ruazinhas estreitas, as casas velhas, a ausência de televisão, de automóveis, de civilização — tudo isso faz parte do mais fundo de mim, onde comecei, onde estou plantado. A vontade compulsiva de me atordoar cedeu lugar à vontade de ser simples, ser terra (como Jorge de Lima: “Nunca fui senão uma coisa híbrida/ metade céu, metade terra com a luz de Mira- Celi dentro dos olhos”) e quando voltamos para Porto Alegre, eu já estava em pleno processo de regeneração.
Estou fazendo análise, ontem tive a primeira sessão. Não é análise tradicional: o paciente esticado no divã e o analista remexendo a cuca com seu bisturi-freudiano-kleiniano-enferrujado. O método de um alemão Schultz (o papa germânico da psicanálise), fundamentado na auto-hipnose, concentração, relaxamento, meditação, auto-análise - baseado nas filosofias orientais, ioga, zenbudismo, tao. O paciente aprende a dominar seu corpo e sua mente e, no último estágio, alcança uma grande paz ou conhecimento (espécie de nirvana ou satori), encontra dentro de si reservas de criatividade e pode orientar-se para qualquer objetivo, auto-estimulando-se. Os exercícios de concentração, como a ioga, podem levar a ter visões de cores, paisagens paradisíacas, essas coisas. E tudo isso acaba com a ansiedade, a angústia, a insegurança. Vai ser bom e vou conseguir.
Depois das viagens, estive quase paranóico. Vi monstros horrendos nas pessoas, me senti perseguido e encurralado, aí me tranquei em casa e, cada vez que saía, era um suplício — voltavam as ondas do sunshine e eu achava que as pessoas iam me morder, rir de mim, um inferno. Quando melhorei um pouco, tentei sair e procurar alguns amigos, mas não consegui nenhuma integração com eles. Fiquei surpreendido com o grau de vampirização das pessoas: todas elas preocupadíssimas em falar, falar, falar, extrair opiniões, orientações, dicas, dizer coisas inteligentinhas, mostrarem que não são caretas, que não têm medo, que não sentem dor. Cada contato meu com alguma pessoa representava uma perda enorme de energia vital: eu saía esgotado, confuso, com dor de cabeça e, principalmente, com dor por não poder fazer nada pelo desespero alheio. A minha própria miséria aumentava. Foi aí que a solidão deixou de ser involuntária para se transformar em escolha. E foi bom, está sendo bom. Passo o dia lendo, ouvindo música, vendo velhos filmes na televisão, de vez em quando vou ao cinema ou saio para passear na beira do rio que passa atrás do edifício. Fico lá sentado numa pedra, fumando e pensando nas pessoas que perdi, senão em afeto, pelo menos em proximidade física. De vez em quando choro, é bom chorar, eu não tenho vergonha, mas em todos os momentos existe a certeza de ter feito uma escolha acertada, de estar caminhando em direção à luz. Não nego nada do que fiz, também não tenho arrependimentos ou mágoas: eu não poderia ter agido de outra maneira — mesmo em relação a você — levando em conta o quanto eu estava confuso naquela época. Também já não tenho aquelas queixas infantis, na base do “tudo dá errado pra mim”, ou autopunições como “eu sou uma besta, faço tudo errado”. Nada é errado, quando o erro faz parte de uma procura ou de um processo de conhecimento. Gosto de olhar as pedras e os desenhos do vento na superficie da água, gosto de sentir as modificações da luz quando o sol está desaparecendo do outro lado do rio, gosto de sentir o dia se transformando em noite e em dia outra vez, gosto de olhar as crianças brincando no corredor de entrada e das palmeiras que existem no meio da minha rua - gosto de pensar que vou sempre ter olhos para gostar dessas coisas, e por mais sozinho ou triste que eu esteja vou ter sempre esse olhar sobre as coisas. Não sei muito, também não tenho muito, também não quero muito, mas estou aprendendo a respirar o ar das montanhas.
Verinha, eu te amei muito. Nunca disse, como você também não disse, mas acho que você soube. Pena que as grandes e as cucas confusas não saibam amar. Pena também que a gente se envergonhe de dizer, a gente não devia ter vergonha do que é bonito. Penso sempre que um dia a gente vai se encontrar de novo, e que então tudo vai ser mais claro, que não vai mais haver medo nem coisas falsas. Há uma porção de coisas minhas que você não sabe, e que precisaria saber para compreender todas as vezes que fugi de você e voltei e tornei a fugir. São coisas difíceis de serem contadas, mais difíceis talvez de serem compreendidas - se um dia a gente se encontrar de novo, em amor, eu direi delas, caso contrário não será preciso. Essas coisas não pedem resposta nem ressonância alguma em você: eu só queria que você soubesse do muito amor e ternura que eu tinha - e tenho - pra você. Acho que é bom a gente saber que existe desse jeito em alguém, como você existe em mim.
Queria saber de você e de Henrique, daqueles meninos que sem me conhecerem me levaram para a sua casa e se mostraram para mim. Vocês foram as melhores pessoas que encontrei no Rio, sabem disso? Por favor, me escrevam, é importante, um bilhete, um postal, qualquer coisa, de preferência uma carta gorda como uma cantora lírica, contando de tudo que vocês estão sendo e fazendo nessa cidade louca, linda e longe. Eu tô aqui, lendo Charles Reich e zen-budismo, sentindo saudade de vocês. Os taurinos e virginianos não devem se perder, Verinha. Um grande beijo e saudade do
...............................................................................................................Caio
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