Contos, crônicas e cartas

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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

* Carta a Maria Lídia Magliani

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London, 25.01.91


Maria Lídia, dear,
estou impressionado. Sonhei esta noite com você. Eu estava com Eduardo San Martin e íamos visitá-la. Você morava numa casa estranhíssima. Um sobrado verde, verde luminoso, e a casa era construída de perfil. Você estava deitada numa cama enorme, com lençóis azuis brilhantes, cetim ou algo assim. Parecia muito bem. Eduardo deitava do seu lado, eu ficava enciumado e ia embora. Na saída encontrei Gracinha. Do outro lado da rua, por uma janela, ficávamos olhando a sua casa. Gracinha dizia que as paredes eram muito finas, por isso a casa parecia “de perfil”, e que era uma casa muito louca. Que ali tinham morado Rita Lee e Olga de Sá (que eu não tenho a menor idéia de quem seja, mas era esse o nome — eu ainda perguntava “mas não era a Olga Savary”? E a Gracinha insistia “não, era a de Sá mesmo”)

Acordei depois de meio-dia, como sempre (neste inverno, meu bem, que fazer senão hibernar?) e Ray, no caminho do banheiro, me estendeu a sua carta, Aerograma, aliás, Que devorei, espantado. Tudo isso é pura verdade, e eu concluo que, de alguma forma, nossa ligação mental? espiritual? psicológica? continua sempre muito forte.

Vocês aí falando na guerra, e nós aqui no meio dela. Uma loucura. A TV e as rádios transmitem o tempo todo boletins malucos e, na cidade, a paranóia do terrorismo iraquiano tomou conta. Bombas, coisas assim. Os metrôs estão cheios de cartazes dizendo como você deve se comportar se encontrar um pacote estranho. Tudo tão absurdo que não consigo levar muito a sério, parece filme. Conheço alguns ingleses que estão sendo convocados para ir para o Golfo, que tal?

No meio disso, eu aqui, no apartamento do meu editor inglês. Na verdade, irlandês. Estou no momento preso em Londres por alguns compromissos, leituras e palestras, e à espera de que duas prometidas bolsas - uma para a França, outra para a Alemanha - finalmente pintem. Também a tradução de Dragões estará sendo lançada na França no começo de março. Resulta que, dependendo de decisões alheias - e isso me irrita muito - não posso me mover. Fico até não sei quando.

Mas sonho. Depois desta, quando voltar ao Brasil, queria demais começar a providenciar uma mudança de São Paulo. Não sei para onde. Algum lugar onde eu possa plantar rosas. Isso é fundamental. Quero porque quero cultivar roseiras.

Ando muito, muito só. Leio demais — minha leitura em inglês se soltou — e vou ao cinema furiosamente (você ia adorar Henry e june, sobre o caso de amor entre Anais Nin, Henry MilIer e a biscatona da June, mulher dele). Caminho, olho as caras e as coisas nesta Babilônia onde todas as raças e todas as línguas se cruzaram. Londres continua gentil, embora muito pobre, e também cinzenta. Realmente, é um melancholic place, e talvez por isso mesmo, I love it.

[...]

Eu estou cada vez mais Bambi. Adoro comprar flores e acender incensos e fazer pequenas faxinas arrumando cantinhos “artísticos”. Talvez seja um tanto kitsch, mas é a forma - saudável, suponho - que encontrei de reagir não só à feiúra de fora, que é cada vez maior, mas também à feiúra de dentro. Que embora controlada, você sabe, às vezes ameaça explodir.

Antes de vir para cá mandei um exemplar de Dulce Veiga, não sei se você recebeu. Sim? Ele me deu muito, muito trabalho. Agora voltei a anotar umas histórias novas, um projeto de livro com o título de Histórias estrangeiras.

Anteontem, fui ver a exposição de Egon Schiele. Fiquei deslumbrado, principalmente com os auto-retratos. Maria Lídia dos Santos Magliani Lispector Lessing Woolf do Amaral Garibaldi: eles sangram. São tão pungentes. Tem uns Klimts também muito bonitos, mas perto do Schiele são róseos demais. Eu não queria ir embora, fiquei todo arrepiado. E um tipo de pintura que parece punk, e o cara morreu em 1918, com menos de 30 anos. Semana que vem começam uns impressionistas na mesma galeria — e certamente irei correndo para rever Van Gogh e toda a sua luz.

Como está a tua vida profissional? As pinturas e tudo, fale-me mais sobre. Aquelas ultimas que vi na Paulo Figueiredo em SP achei deslumbrantes, e uma das coisas que mais sinto falta aqui em Londres são as minhas Maglianis das paredes de SP.

Que bom que você tem um namorado. Eu não, há tanto tempo. Essa coisa de Aids realmente... A propósito, você sabe que o Guto Pereira morreu no final do ano passado? Pois é, já foram tantos. Volta e meia começo a enumerar, e me dói tanto a morte de Orlando. Luiz Arthur (não se preocupe, ele está ótimo) ligou ontem de Paris e deve vir no final de semana.

Guerras, pestes, são os tempos. Estou louco para cair fora deste vendaval contaminado que virou o planeta. Numa muito boa, invejo e admiro a vida nova que você inventou/conquistou. No fundo, nunca saí de Santiago do Boqueirão.

Beije Marijô por mim.

Os melhores votos de conclusão de sua catedral. Cuide-se, me dê notícias (mais legívei tua letra está ficando pior que a minha), me queira bem.



Todo o carinho do seu velho

............................................................................Caio F.



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Um comentário:

Paulo Francisco disse...

Estava com saudades daqui!
Um beijo.