.
A - Você é meu companheiro.
B - Hein?
A - Você é meu companheiro, eu disse.
B - O quê?
A - Eu disse que você é meu companheiro.
B - O que é que você quer dizer com isso?
A - Eu quero dizer que você é meu companheiro. Só isso.
B - Tem alguma coisa atrás, eu sinto.
A - Não. Não tem nada. Deixa de ser paranóico.
B - Não é disso que estou falando.
A - Você está falando do quê, então?
B - Eu estou falando disso que você falou agora.
A - Ah, sei. Que eu sou teu companheiro.
B - Não, não foi assim: que eu sou teu companheiro.
A - Você também sente?
B - O quê?
A - Que você é meu companheiro?
B - Não me confunda. Tem alguma coisa atrás, eu sei.
A - Atrás do companheiro?
B - É.
A - Não.
B - Você não sente?
A - Que você é meu companheiro? Sinto, sim. Claro que eu sinto. E você, não?
B - Não. Não é isso. Não é assim.
A - Você não quer que seja isso assim?
B - Não é que eu não queira: é que não é.
A - Não me confunda, por favor, não me confunda. No começo era claro.
B - Agora não?
A - Agora sim. Você quer?
B - O quê?
A - Ser meu companheiro.
B - Ser teu companheiro?
A - É
B - Companheiro?
A - Sim.
B - Eu não sei. Por favor, não me confunda. No começo era claro.
Tem alguma coisa atrás, você não vê?
A - Eu vejo. Eu quero.
B - O quê?
A — Que você seja meu companheiro.
B - Hein?
A - Eu quero que você seja meu companheiro, eu disse.
B - O quê?
A - Eu disse que eu quero que você seja meu companheiro.
B - Você disse?
A - Eu disse?
B - Não. Não foi assim: eu disse.
A - O quê?
B - Você é meu companheiro.
A - Hein?
(Ad infinitum)
.
.
Contos, crônicas e cartas
Blog ativado em: 16/maio/2010
domingo, 27 de fevereiro de 2011
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
15 ANOS SEM CAIO
Podia ser o horário que fosse. Se Caio Fernando Abreu sentasse à frente de sua máquina para escrever, acendia antes uma vela para Virginia Woolf, ao lado do retrato que mantinha da escritora inglesa na cabeceira da cama. Depois, mil laudas em branco, um cigarro atrás do outro, música e café com conhaque eram suficientes para o escritor, jornalista e dramaturgo cumprir o único dos ofícios que dizia saber. Criar era, para ele, “sangrar a-bun-dan-te-men-te. Porque dói, dói, dói. É de uma solidão assustadora”, como escreveu certa vez a um amigo.
Mas, com as palavras no papel, Caio era mais ele. Bastava uma noite para desprender os sentimentos díspares e a sensação de não pertencer a lugar algum. “Não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais autodestrutiva do que insistir sem fé nenhuma?”, destilava ele. Tão perceptível hoje, passados quinze anos de sua morte– em decorrência de complicações causadas pelo vírus da aids –, como desde os primeiros textos escritos aos 6 anos de idade em sua cidade natal, Santiago do Boqueirão, no interior do Rio Grande do Sul. Virginiano de 12 de setembro de 1948, era o primogênito do casal Nair e Zael Abreu, respectivamente educadora – com formação em história e pedagogia – e militar.
Ainda jovem, com 15 anos, mudou-se para a capital gaúcha para cursar o colegial no internato Instituto Porto Alegre. Pouco depois, ingressou em Letras e em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas não concluiu nenhum dos cursos. Acontece que, com 20 anos, atendeu ao primeiro dos muitos chamados que norteariam sua vida: após ser selecionado em um concurso nacional, embarcou para São Paulo para integrar a primeira redação da revista Veja. Era o ano de 1969.
Nos dois anos seguintes, publicou o primeiro livro de contos, Inventário do irremediável, passou pelas redações das revistas Manchete, Pais e Filhos e do jornal Zero Hora, além de preencher as prateleiras com a segunda obra: o romance Limite branco.
ALMA INADEQUADA
“Caio tinha vocação para a tristeza”, atesta a jornalista Paula Dip, que conheceu o escritor em 1979 quando trabalharam juntos em uma editora paulista. “Como todas as vocações, é difícil dizer de onde veio a dele. Acho que um pouco estava no DNA da nossa geração, mas também acredito numa espécie de sopro divino”, diz ela, que em 2009 lançou Para sempre teu, Caio F. Na obra, ela destrincha a relação de muitos anos com o escritor, que, reciprocamente lhe dedicou contos, correspondências e peças literárias.
Paula conta que Caio sempre se sentiu diferente e excluído, sentimentos que o arrebatavam e o intimavam a aprender a conviver com sua bipolaridade, quando tal distúrbio nem era assim conhecido. Todavia, o impelia a diversas crises depressivas, que o faziam beirar o suicídio.
A inadequação ao mundo de Caio Fernando Abreu, de alma cigana, se traduzia também em um constante mudar de casas, cidades, estados e países. Em 1973, por exemplo, embarcou para um autoexílio pela Europa. Passou por Paris, lavou pratos em Estocolmo e tomou o rumo de Londres, onde viveu como hippie e chegou a trabalhar até como modelo vivo. Ali, o “escritor da paixão”, como a ele se referia Lygia Fagundes Telles, respirava as últimas baforadas e viagens psicodélicas do movimento Flower Power antes de voltar ao Brasil e preparar os futuros O ovo apunhalado (1975) e Pedras de Calcutá (1977).
MULTIFACETADO
Conhecer Caio Fernando Abreu era estar diante de um homem sem igual, como afirmam aqueles que se honram com o título de seus amigos. “Ele era intenso, superlativo, passional, amoroso, irônico, profundo, culto, inteligente, denso e de uma extrema sensibilidade”, relata o ator Marcos Breda, que conheceu o escritor em fevereiro de 1986.
Ser humano multifacetado, Caio era vegetariano macrobiótico, embora, às vezes, se fartasse em uma boa churrascada ou com uma porção de camarões. Era católico de batismo e de primeira comunhão, cresceu rosacruz, consultou videntes e cartomantes, foi budista, kardecista, frequentava terreiros de candomblé, experimentou a Ayhuasca, lia Krishnamurti, acreditava em óvnis e estudou astrologia por mais de trinta anos.
Esse mesmo homem era também briguento e ciumento. Adorava as noites do Ritz e do Espaço Pirandello, em São Paulo. Assim como mergulhava em festas intensas, regadas a drogas e boa música, e fazia sexo com toda a liberdade defendida por sua geração.
ÍCONE DE SEU TEMPO
Quando o sonho da contracultura acabou, na década de 1980, Caio estava ali, com o fardo que carregou durante anos. A aids era a realidade que levou embora boa parte de seus amigos e namorados. A dor da perda, entretanto, não o intimidou. Jornalisticamente, continuou a escrever reportagens e crônicas para veículos como O Estado de S. Paulo, enquanto ia firmando seu nome entre os maiores na literatura, especialmente com o que é, até hoje, seu maior sucesso editorial: Morangos mofados (1982). Também faturou o prêmio Jabuti três vezes com o Triângulo das águas (1984), Os dragões não conhecem o paraíso (1988) e com o que ele intitulou como “pré-póstumo”, Ovelhas negras (1996).
“Sua obra, especialmente nos contos, aborda os personagens de um modo peculiar: eles estão sempre um pouco fora de foco. Quer dizer, nunca se sabe se são aquilo que dizem ser, pois pensam atropeladamente e têm muitas incertezas, talvez por serem um tanto assustados. E esse é o segredo da obra do Caio: seu estilo é o estilo dos seus personagens”, destaca o escritor e amigo João Silvério Trevisan, que conheceu Caio em 1976.
Outro profundo conhecedor da produção do autor gaúcho é o poeta, editor e professor de literatura da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Italo Moriconi, responsável por publicar em 2002 o livro Caio Fernando Abreu – Cartas (esgotado).
“Eu diria que a sensibilidade e a delicadeza são as características mais fortes de seus escritos, mesmo quando trabalham textos pesados. E as suas cartas nos mostram como pode ser intenso o cotidiano banal. Elas revelam para o mundo suas angústias, ansiedades e, às vezes, um pouco de tédio também”, afirma.
PAIXÃO A-LI-MEN-TO
Na última década de vida, os anos 1990, Caio conhecia os louros do sucesso, embora não tenha guardado nenhum dinheiro ou adquirido posses. Preocupava-se, como sempre, em escrever. E assim lançou seu livro de maior repercussão internacional: o romance Onde andará Dulce Veiga?
Somente em 1994, já com alguns problemas de saúde, ele aceitou fazer o exame que lhe confirmou ser portador do HIV desde 1985. Diante da certeza da morte, que o levaria em 25 de fevereiro de 1998*, o escritor decidiu viver mais. “Ele voltou para a casa dos pais no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Também não reclamava mais da vida. Ficou em paz consigo mesmo, aceitou o pouco que lhe restava e trabalhava furiosamente em sua obra”, revela Paula Dip.
A maior dor, contudo, foi, talvez, a ausência do amor definitivo. “Caio se alimentava de paixão. Mas, por ser mais atento e sensível que a maioria, não suportava relações mornas: assim que percebia a fugacidade da paixã, quebrava tudo, ia embora, se decepcionava, sofria. Ele mesmo dizia que, se encontrasse um amor duradouro, talvez parasse de escrever”, conta ela.
Talvez também por isso Caio tenha dito, certa vez, que a epígrafe, a síntese e “quem sabe epitáfio” de tudo o que produziu seria a frase que até hoje pode ser lida na fachada da casa número 19 do Quai de Bourbon, em Paris: “Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta”. Foi escrita pela escultora Camille Claudel para seu mestre e amante, Auguste Rodin, em 1886. ©
Fonte: http://www.revistadacultura.com.br:8090/revista/rc43/index2.asp?page=perfil
* Correção: 25 de fevereiro de 1996 (Creio que tenha havido um erro de digitação)
.
.
Mas, com as palavras no papel, Caio era mais ele. Bastava uma noite para desprender os sentimentos díspares e a sensação de não pertencer a lugar algum. “Não se preocupe, não vou tomar nenhuma medida drástica, a não ser continuar, tem coisa mais autodestrutiva do que insistir sem fé nenhuma?”, destilava ele. Tão perceptível hoje, passados quinze anos de sua morte– em decorrência de complicações causadas pelo vírus da aids –, como desde os primeiros textos escritos aos 6 anos de idade em sua cidade natal, Santiago do Boqueirão, no interior do Rio Grande do Sul. Virginiano de 12 de setembro de 1948, era o primogênito do casal Nair e Zael Abreu, respectivamente educadora – com formação em história e pedagogia – e militar.
Ainda jovem, com 15 anos, mudou-se para a capital gaúcha para cursar o colegial no internato Instituto Porto Alegre. Pouco depois, ingressou em Letras e em Artes Cênicas na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), mas não concluiu nenhum dos cursos. Acontece que, com 20 anos, atendeu ao primeiro dos muitos chamados que norteariam sua vida: após ser selecionado em um concurso nacional, embarcou para São Paulo para integrar a primeira redação da revista Veja. Era o ano de 1969.
Nos dois anos seguintes, publicou o primeiro livro de contos, Inventário do irremediável, passou pelas redações das revistas Manchete, Pais e Filhos e do jornal Zero Hora, além de preencher as prateleiras com a segunda obra: o romance Limite branco.
ALMA INADEQUADA
“Caio tinha vocação para a tristeza”, atesta a jornalista Paula Dip, que conheceu o escritor em 1979 quando trabalharam juntos em uma editora paulista. “Como todas as vocações, é difícil dizer de onde veio a dele. Acho que um pouco estava no DNA da nossa geração, mas também acredito numa espécie de sopro divino”, diz ela, que em 2009 lançou Para sempre teu, Caio F. Na obra, ela destrincha a relação de muitos anos com o escritor, que, reciprocamente lhe dedicou contos, correspondências e peças literárias.
Paula conta que Caio sempre se sentiu diferente e excluído, sentimentos que o arrebatavam e o intimavam a aprender a conviver com sua bipolaridade, quando tal distúrbio nem era assim conhecido. Todavia, o impelia a diversas crises depressivas, que o faziam beirar o suicídio.
A inadequação ao mundo de Caio Fernando Abreu, de alma cigana, se traduzia também em um constante mudar de casas, cidades, estados e países. Em 1973, por exemplo, embarcou para um autoexílio pela Europa. Passou por Paris, lavou pratos em Estocolmo e tomou o rumo de Londres, onde viveu como hippie e chegou a trabalhar até como modelo vivo. Ali, o “escritor da paixão”, como a ele se referia Lygia Fagundes Telles, respirava as últimas baforadas e viagens psicodélicas do movimento Flower Power antes de voltar ao Brasil e preparar os futuros O ovo apunhalado (1975) e Pedras de Calcutá (1977).
MULTIFACETADO
Conhecer Caio Fernando Abreu era estar diante de um homem sem igual, como afirmam aqueles que se honram com o título de seus amigos. “Ele era intenso, superlativo, passional, amoroso, irônico, profundo, culto, inteligente, denso e de uma extrema sensibilidade”, relata o ator Marcos Breda, que conheceu o escritor em fevereiro de 1986.
Ser humano multifacetado, Caio era vegetariano macrobiótico, embora, às vezes, se fartasse em uma boa churrascada ou com uma porção de camarões. Era católico de batismo e de primeira comunhão, cresceu rosacruz, consultou videntes e cartomantes, foi budista, kardecista, frequentava terreiros de candomblé, experimentou a Ayhuasca, lia Krishnamurti, acreditava em óvnis e estudou astrologia por mais de trinta anos.
Esse mesmo homem era também briguento e ciumento. Adorava as noites do Ritz e do Espaço Pirandello, em São Paulo. Assim como mergulhava em festas intensas, regadas a drogas e boa música, e fazia sexo com toda a liberdade defendida por sua geração.
ÍCONE DE SEU TEMPO
Quando o sonho da contracultura acabou, na década de 1980, Caio estava ali, com o fardo que carregou durante anos. A aids era a realidade que levou embora boa parte de seus amigos e namorados. A dor da perda, entretanto, não o intimidou. Jornalisticamente, continuou a escrever reportagens e crônicas para veículos como O Estado de S. Paulo, enquanto ia firmando seu nome entre os maiores na literatura, especialmente com o que é, até hoje, seu maior sucesso editorial: Morangos mofados (1982). Também faturou o prêmio Jabuti três vezes com o Triângulo das águas (1984), Os dragões não conhecem o paraíso (1988) e com o que ele intitulou como “pré-póstumo”, Ovelhas negras (1996).
“Sua obra, especialmente nos contos, aborda os personagens de um modo peculiar: eles estão sempre um pouco fora de foco. Quer dizer, nunca se sabe se são aquilo que dizem ser, pois pensam atropeladamente e têm muitas incertezas, talvez por serem um tanto assustados. E esse é o segredo da obra do Caio: seu estilo é o estilo dos seus personagens”, destaca o escritor e amigo João Silvério Trevisan, que conheceu Caio em 1976.
Outro profundo conhecedor da produção do autor gaúcho é o poeta, editor e professor de literatura da Universidade Estadual do Rio de Janeiro Italo Moriconi, responsável por publicar em 2002 o livro Caio Fernando Abreu – Cartas (esgotado).
“Eu diria que a sensibilidade e a delicadeza são as características mais fortes de seus escritos, mesmo quando trabalham textos pesados. E as suas cartas nos mostram como pode ser intenso o cotidiano banal. Elas revelam para o mundo suas angústias, ansiedades e, às vezes, um pouco de tédio também”, afirma.
PAIXÃO A-LI-MEN-TO
Na última década de vida, os anos 1990, Caio conhecia os louros do sucesso, embora não tenha guardado nenhum dinheiro ou adquirido posses. Preocupava-se, como sempre, em escrever. E assim lançou seu livro de maior repercussão internacional: o romance Onde andará Dulce Veiga?
Somente em 1994, já com alguns problemas de saúde, ele aceitou fazer o exame que lhe confirmou ser portador do HIV desde 1985. Diante da certeza da morte, que o levaria em 25 de fevereiro de 1998*, o escritor decidiu viver mais. “Ele voltou para a casa dos pais no bairro Menino Deus, em Porto Alegre. Também não reclamava mais da vida. Ficou em paz consigo mesmo, aceitou o pouco que lhe restava e trabalhava furiosamente em sua obra”, revela Paula Dip.
A maior dor, contudo, foi, talvez, a ausência do amor definitivo. “Caio se alimentava de paixão. Mas, por ser mais atento e sensível que a maioria, não suportava relações mornas: assim que percebia a fugacidade da paixã, quebrava tudo, ia embora, se decepcionava, sofria. Ele mesmo dizia que, se encontrasse um amor duradouro, talvez parasse de escrever”, conta ela.
Talvez também por isso Caio tenha dito, certa vez, que a epígrafe, a síntese e “quem sabe epitáfio” de tudo o que produziu seria a frase que até hoje pode ser lida na fachada da casa número 19 do Quai de Bourbon, em Paris: “Existe sempre alguma coisa ausente que me atormenta”. Foi escrita pela escultora Camille Claudel para seu mestre e amante, Auguste Rodin, em 1886. ©
Fonte: http://www.revistadacultura.com.br:8090/revista/rc43/index2.asp?page=perfil
* Correção: 25 de fevereiro de 1996 (Creio que tenha havido um erro de digitação)
.
.
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
* Carta a Maria Lídia Magliani
.
London, 25.01.91
Maria Lídia, dear,
estou impressionado. Sonhei esta noite com você. Eu estava com Eduardo San Martin e íamos visitá-la. Você morava numa casa estranhíssima. Um sobrado verde, verde luminoso, e a casa era construída de perfil. Você estava deitada numa cama enorme, com lençóis azuis brilhantes, cetim ou algo assim. Parecia muito bem. Eduardo deitava do seu lado, eu ficava enciumado e ia embora. Na saída encontrei Gracinha. Do outro lado da rua, por uma janela, ficávamos olhando a sua casa. Gracinha dizia que as paredes eram muito finas, por isso a casa parecia “de perfil”, e que era uma casa muito louca. Que ali tinham morado Rita Lee e Olga de Sá (que eu não tenho a menor idéia de quem seja, mas era esse o nome — eu ainda perguntava “mas não era a Olga Savary”? E a Gracinha insistia “não, era a de Sá mesmo”)
Acordei depois de meio-dia, como sempre (neste inverno, meu bem, que fazer senão hibernar?) e Ray, no caminho do banheiro, me estendeu a sua carta, Aerograma, aliás, Que devorei, espantado. Tudo isso é pura verdade, e eu concluo que, de alguma forma, nossa ligação mental? espiritual? psicológica? continua sempre muito forte.
Vocês aí falando na guerra, e nós aqui no meio dela. Uma loucura. A TV e as rádios transmitem o tempo todo boletins malucos e, na cidade, a paranóia do terrorismo iraquiano tomou conta. Bombas, coisas assim. Os metrôs estão cheios de cartazes dizendo como você deve se comportar se encontrar um pacote estranho. Tudo tão absurdo que não consigo levar muito a sério, parece filme. Conheço alguns ingleses que estão sendo convocados para ir para o Golfo, que tal?
No meio disso, eu aqui, no apartamento do meu editor inglês. Na verdade, irlandês. Estou no momento preso em Londres por alguns compromissos, leituras e palestras, e à espera de que duas prometidas bolsas - uma para a França, outra para a Alemanha - finalmente pintem. Também a tradução de Dragões estará sendo lançada na França no começo de março. Resulta que, dependendo de decisões alheias - e isso me irrita muito - não posso me mover. Fico até não sei quando.
Mas sonho. Depois desta, quando voltar ao Brasil, queria demais começar a providenciar uma mudança de São Paulo. Não sei para onde. Algum lugar onde eu possa plantar rosas. Isso é fundamental. Quero porque quero cultivar roseiras.
Ando muito, muito só. Leio demais — minha leitura em inglês se soltou — e vou ao cinema furiosamente (você ia adorar Henry e june, sobre o caso de amor entre Anais Nin, Henry MilIer e a biscatona da June, mulher dele). Caminho, olho as caras e as coisas nesta Babilônia onde todas as raças e todas as línguas se cruzaram. Londres continua gentil, embora muito pobre, e também cinzenta. Realmente, é um melancholic place, e talvez por isso mesmo, I love it.
[...]
Eu estou cada vez mais Bambi. Adoro comprar flores e acender incensos e fazer pequenas faxinas arrumando cantinhos “artísticos”. Talvez seja um tanto kitsch, mas é a forma - saudável, suponho - que encontrei de reagir não só à feiúra de fora, que é cada vez maior, mas também à feiúra de dentro. Que embora controlada, você sabe, às vezes ameaça explodir.
Antes de vir para cá mandei um exemplar de Dulce Veiga, não sei se você recebeu. Sim? Ele me deu muito, muito trabalho. Agora voltei a anotar umas histórias novas, um projeto de livro com o título de Histórias estrangeiras.
Anteontem, fui ver a exposição de Egon Schiele. Fiquei deslumbrado, principalmente com os auto-retratos. Maria Lídia dos Santos Magliani Lispector Lessing Woolf do Amaral Garibaldi: eles sangram. São tão pungentes. Tem uns Klimts também muito bonitos, mas perto do Schiele são róseos demais. Eu não queria ir embora, fiquei todo arrepiado. E um tipo de pintura que parece punk, e o cara morreu em 1918, com menos de 30 anos. Semana que vem começam uns impressionistas na mesma galeria — e certamente irei correndo para rever Van Gogh e toda a sua luz.
Como está a tua vida profissional? As pinturas e tudo, fale-me mais sobre. Aquelas ultimas que vi na Paulo Figueiredo em SP achei deslumbrantes, e uma das coisas que mais sinto falta aqui em Londres são as minhas Maglianis das paredes de SP.
Que bom que você tem um namorado. Eu não, há tanto tempo. Essa coisa de Aids realmente... A propósito, você sabe que o Guto Pereira morreu no final do ano passado? Pois é, já foram tantos. Volta e meia começo a enumerar, e me dói tanto a morte de Orlando. Luiz Arthur (não se preocupe, ele está ótimo) ligou ontem de Paris e deve vir no final de semana.
Guerras, pestes, são os tempos. Estou louco para cair fora deste vendaval contaminado que virou o planeta. Numa muito boa, invejo e admiro a vida nova que você inventou/conquistou. No fundo, nunca saí de Santiago do Boqueirão.
Beije Marijô por mim.
Os melhores votos de conclusão de sua catedral. Cuide-se, me dê notícias (mais legívei tua letra está ficando pior que a minha), me queira bem.
Todo o carinho do seu velho
............................................................................Caio F.
.
.
London, 25.01.91
Maria Lídia, dear,
estou impressionado. Sonhei esta noite com você. Eu estava com Eduardo San Martin e íamos visitá-la. Você morava numa casa estranhíssima. Um sobrado verde, verde luminoso, e a casa era construída de perfil. Você estava deitada numa cama enorme, com lençóis azuis brilhantes, cetim ou algo assim. Parecia muito bem. Eduardo deitava do seu lado, eu ficava enciumado e ia embora. Na saída encontrei Gracinha. Do outro lado da rua, por uma janela, ficávamos olhando a sua casa. Gracinha dizia que as paredes eram muito finas, por isso a casa parecia “de perfil”, e que era uma casa muito louca. Que ali tinham morado Rita Lee e Olga de Sá (que eu não tenho a menor idéia de quem seja, mas era esse o nome — eu ainda perguntava “mas não era a Olga Savary”? E a Gracinha insistia “não, era a de Sá mesmo”)
Acordei depois de meio-dia, como sempre (neste inverno, meu bem, que fazer senão hibernar?) e Ray, no caminho do banheiro, me estendeu a sua carta, Aerograma, aliás, Que devorei, espantado. Tudo isso é pura verdade, e eu concluo que, de alguma forma, nossa ligação mental? espiritual? psicológica? continua sempre muito forte.
Vocês aí falando na guerra, e nós aqui no meio dela. Uma loucura. A TV e as rádios transmitem o tempo todo boletins malucos e, na cidade, a paranóia do terrorismo iraquiano tomou conta. Bombas, coisas assim. Os metrôs estão cheios de cartazes dizendo como você deve se comportar se encontrar um pacote estranho. Tudo tão absurdo que não consigo levar muito a sério, parece filme. Conheço alguns ingleses que estão sendo convocados para ir para o Golfo, que tal?
No meio disso, eu aqui, no apartamento do meu editor inglês. Na verdade, irlandês. Estou no momento preso em Londres por alguns compromissos, leituras e palestras, e à espera de que duas prometidas bolsas - uma para a França, outra para a Alemanha - finalmente pintem. Também a tradução de Dragões estará sendo lançada na França no começo de março. Resulta que, dependendo de decisões alheias - e isso me irrita muito - não posso me mover. Fico até não sei quando.
Mas sonho. Depois desta, quando voltar ao Brasil, queria demais começar a providenciar uma mudança de São Paulo. Não sei para onde. Algum lugar onde eu possa plantar rosas. Isso é fundamental. Quero porque quero cultivar roseiras.
Ando muito, muito só. Leio demais — minha leitura em inglês se soltou — e vou ao cinema furiosamente (você ia adorar Henry e june, sobre o caso de amor entre Anais Nin, Henry MilIer e a biscatona da June, mulher dele). Caminho, olho as caras e as coisas nesta Babilônia onde todas as raças e todas as línguas se cruzaram. Londres continua gentil, embora muito pobre, e também cinzenta. Realmente, é um melancholic place, e talvez por isso mesmo, I love it.
[...]
Eu estou cada vez mais Bambi. Adoro comprar flores e acender incensos e fazer pequenas faxinas arrumando cantinhos “artísticos”. Talvez seja um tanto kitsch, mas é a forma - saudável, suponho - que encontrei de reagir não só à feiúra de fora, que é cada vez maior, mas também à feiúra de dentro. Que embora controlada, você sabe, às vezes ameaça explodir.
Antes de vir para cá mandei um exemplar de Dulce Veiga, não sei se você recebeu. Sim? Ele me deu muito, muito trabalho. Agora voltei a anotar umas histórias novas, um projeto de livro com o título de Histórias estrangeiras.
Anteontem, fui ver a exposição de Egon Schiele. Fiquei deslumbrado, principalmente com os auto-retratos. Maria Lídia dos Santos Magliani Lispector Lessing Woolf do Amaral Garibaldi: eles sangram. São tão pungentes. Tem uns Klimts também muito bonitos, mas perto do Schiele são róseos demais. Eu não queria ir embora, fiquei todo arrepiado. E um tipo de pintura que parece punk, e o cara morreu em 1918, com menos de 30 anos. Semana que vem começam uns impressionistas na mesma galeria — e certamente irei correndo para rever Van Gogh e toda a sua luz.
Como está a tua vida profissional? As pinturas e tudo, fale-me mais sobre. Aquelas ultimas que vi na Paulo Figueiredo em SP achei deslumbrantes, e uma das coisas que mais sinto falta aqui em Londres são as minhas Maglianis das paredes de SP.
Que bom que você tem um namorado. Eu não, há tanto tempo. Essa coisa de Aids realmente... A propósito, você sabe que o Guto Pereira morreu no final do ano passado? Pois é, já foram tantos. Volta e meia começo a enumerar, e me dói tanto a morte de Orlando. Luiz Arthur (não se preocupe, ele está ótimo) ligou ontem de Paris e deve vir no final de semana.
Guerras, pestes, são os tempos. Estou louco para cair fora deste vendaval contaminado que virou o planeta. Numa muito boa, invejo e admiro a vida nova que você inventou/conquistou. No fundo, nunca saí de Santiago do Boqueirão.
Beije Marijô por mim.
Os melhores votos de conclusão de sua catedral. Cuide-se, me dê notícias (mais legívei tua letra está ficando pior que a minha), me queira bem.
Todo o carinho do seu velho
............................................................................Caio F.
.
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
* A outra voz
.
Eram cinco e quinze da tarde. Sabia mesmo sem olhar o relógio, mesmo que nesse dia nem houvesse sol, para poder acompanhar a mancha clara de luz reduzindo-se cada vez mais na parede em frente à janela aberta, enquanto a noite chegava. E eles viessem, com a noite.
Mas tinha medo de pensar nisso, então supunha que sabia por uma espécie de vibração no ar, assim como se as coisas, aquelas coisas de fora, tivessem um movimento especial, feito um leve arfar, todos os dias, passados quinze minutos das cinco horas, à tarde. Só que as coisas não se moviam. Talvez quem sabe na superfície ou dentro de seu corpo, contrair de vísceras, dilatação da pupila, um palpitar mais acelerado no coração, miúdas gotas de suor na palma das mãos - breve susto na alma.
De qualquer forma, sabia - de onde quer que viesse o aviso. Sabia tanto que, igual às outras vezes, colocou a mão sobre o telefone um pouco antes que tocasse. E antes ainda sequer de começar a esperar, porque eram cinco e quinze, ele estremeceu ao ouvir o toque, quase sorrindo para dentro, para si, porque de alguma forma era como se o toque fosse produzido apenas pela vibração de seus dedos suspensos sobre o aparelho. Tivesse o poder de, à distância, magnetizar a mão de outra pessoa, induzindo o dedo indicador naquela mão daquela outra pessoa a discar seus seis ou sete números para chamá-lo. Mas já não tinha poder algum, se é que tivera um dia. E achava que não, além desse de agora: manter as pontes pelo tempo necessário e impreciso. Só atendeu depois do telefone tocar três vezes.
Luminosa e viva, a outra voz, cheia de cristais agudos. Pedrinhas moídas de gelo batendo nas bordas de vidro de um copo. Tão reluzentes que piscou os olhos sem querer, ofuscado. Olhava pela janela, a sombra na parede oposta. Precisava de tempo, nessa transição entre as trevas do interior da caverna e o campo eletrizado de luz. Zona de penumbra, embora soubesse, acostumando retinas viciadas, perguntou lento:
- Quem está falando? - e repetiu duas, três vezes, até que a voz parasse de falar sobre qualquer coisa que ele não entendia direito, qualquer coisa daquelas lá de fora, inteligíveis somente para quem estava lá, no meio do vivo, sem começo nem fim, nem dirigida especialmente a ele, interferência numa linha cruzada.
- Não está me reconhecendo? Sou sempre eu.
Afastou um pouco o fone do ouvido - tão alta, a outra voz. Não que fosse desagradável, nem estridente demais. Ao contrário: fugindo assim pelos furinhos do fone, o som parecia espalhar-se por todos os cantos do quarto estreito. Batia nas paredes, eco refletido, derramada sobre todos os objetos, envolvendo-os em finos tecidos sonoros, dissolvia o mofo, coloria a sombra, ensolarada. Asa de cigarra, manhã de janeiro. O quarto escuro brilhou, esmaltado pela voz de ouro. Por favor, quis pedir, me leva daqui, preciso de ajuda antes que seja tarde demais. Mas não era permitido. Rígidos rituais solenes, escondidos atrás das fórmulas de cortesia, às cinco e quinze da tarde. E a dor feito buraco de traça disfarçado sob castiçais. Tornou a aproximar o fone do ouvido, com carinho e cuidado.
- O que é que houve? Você não está bem?
- Estou - disse devagar. Impossível dizer “tenho medo” ou alguma coisa dessas - pessoal, assustadora. Levou a mão livre ao coração. Suspirou, entre duas batidas. - Não houve nada. Estou bem.
- Tive a impressão que você não estava ouvindo. A voz de rio, água deslizando entre pedras lisas, clarinhas, alguma flor amarela, respingos na corola, repetiu, o tronco áspero que arranhava a garganta dele mesmo, pedindo passagem - e o fio do telefone ligando as duas vozes sobre a cidade, às cinco e quinze de cada tarde - preciso tempo.
- O quê?
- Tempo. Preciso sempre de um certo tempo, desde o momento em que você começa a falar até.
A voz riu. Levemente cúmplice, quase terna, visitante habitual e complacente das escadarias dentro dele, poeiras, sótãos, teias de aranha visguentas dificultando o caminho, e de repente a queda brusca no meio de um corredor conhecido, embora ele não tivesse terminado de falar.
- Até poder falar. É a minha voz. Fica assim como se eu não tivesse controle nenhum sobre ela. Eu me desacostumo de falar. Parece depois que vem de longe, que não é minha. Nunca aconteceu isso com você?
- Sempre se pode cantar. Ou ler um livro em voz alta. Você não tem nenhum livro aí?
- Você sabe que não - começou a dizer. Mas um ruído de avião ou automóvel do outro lado do fio interrompeu por um momento o som. Uma nuvem cobria o sol. Havia ruídos lá, e movimentos, trepidâncias, pulsações: podia senti-los a atravessar a linha, irrequietos, quase vivos, para saírem do fone, junto com a voz, retorcendo-se pelos cantos do quarto. Nenhum interesse além das grades da janela, das quais se afastariam com nojo. Esse nojo curioso, apiedado, por um bicho numa jaula.
- Quero que você fique bom logo - a outra voz disse. E parecia verdade. Só de ouvi-la, tinha vontade de debruçar-se à janela para cumprimentar alguém que estendesse roupas lá embaixo, sem medo dos dentes arreganhados. Não havia varais. Do outro lado da janela, apenas o muro de cimento, alto como uma parede, a aridez do pátio coberto de lajes, sem plantas. E as grades, antes, para barrar previamente o salto que ainda não dera. (Do lado de lá, a moça sorriu mais com os olhos azuis atrás de óculos redondos do que com a boca pequena, lábios polpudos, bem desenhados. Como costumava sorrir. Esboçou no ar um movimento para ampará-la - vacilava tanto nos últimos tempos, desde que desaprendera a ficar em pé, ou desinteressara-se disso, concentrada na aprendizagem de outros equilíbrios mais delicados. Ela esquivou-se suave, mas firme, como a dizer que agora já não importava, qualquer ajuda é inútil depois da travessia decidida: te estreito, te estreito e me precipito. ) Quis repetir isso ao telefone, para avisar à voz, mansa chantagem. Só conseguiu dizer:
- Obrigado.
Por trás da palma da mão contra o peito, por trás do pano da camisa, entre massas de carne entremeadas de músculos, nervos, gorduras, veias, ossos, o coração batia disparado. Você vai me abandonar - repetiu sem som, a boca movendo-se muito perto do fone - e eu nada posso fazer para impedir. Você é meu único laço, cordão umbilical, ponte entre o aqui de dentro e o lá de fora. Te vejo perdendo-se todos os dias entre essas coisas vivas onde não estou. Tenho medo de, dia após dia, cada vez mais não estar no que você vê. E tanto tempo terá passado, depois, que tudo se tornará cotidiano e a minha ausência não terá nenhuma importância. Serei apenas memória, alívio, enquanto agora sou uma planta carnívora exigindo a cada dia uma gota de sangue para manter-se viva. Você rasga devagar seu pulso com as unhas para que eu possa beber. Mas um dia será demasiado esforço, excessiva dor, e você esquecerá como se esquece um compromisso sem muita importância. Uma fruta mordida apodrecendo em silêncio no prato.
- Hein?
- Nada. Não disse nada.
- Tive a impressão de ter ouvido você falar. Muito baixo. Pensei que fosse com eles.
- Quem?
- Você sabe. Como é que você os chama?
- Ana, Carlos. Eles não estão aqui, agora.
- Eles têm voltado?
- Todas as noites.
(Paciente, determinado, o rapaz esperava a festa acabar. Tão determinado que, se alguém o olhasse mais atento, certamente perceberia alguma forma mais precisa nos movimentos, agora sem hesitação nenhuma, talvez na voz mais dura, um brilho estranho nos olhos. As contas, afinal, estavam feitas: não restara saldo. Um por um, esperava que todos se fossem. Limparia cinzeiros, depois, na casa vazia, recolheria migalhas da festa pelos cantos da sala para jogá-las no lixo. Talvez espiasse a noite de verão, parado à porta, sozinho com sua escolha, e respirasse muito fundo, ainda uma vez, deixando o cheiro denso do mar entontecer um pouco mais a cabeça cansada de tantos cansaços de tantos anos. Tão miúdos que nem percebera o peso. Era pequenino e manso de movimento e fala, como se temesse de alguma forma perturbar o campo vibratório das outras pessoas. Olharia as coisas uma última vez, coisas comuns: sofá, cadeira, mesa. Talvez não: estaria completamente cego no momento de tirar uma por uma as peças de roupa. Teria os olhos voltados para o outro lado, como quem sobe uma colina e, quase no topo, já consegue divisar algumas formas, uma moita, cumes de formigueiros, umas roxuras de flores rasteiras espalhadas no caminho de descida. Lento, lento. A lenta nudez, depois os dedos preparando o nó. Então o gesto de enfiá-lo pela cabeça, feito uma coroa - a coroa de loros que não teve ou desistiu de esperar - um tanto ridícula, excessivamente larga, que a corda descesse arranhando leve a ponta do nariz, o queixo. Ajustaria delicadamente o laço no pescoço, preparando a gravata para a festa -seria uma festa? - do outro lado. Não diria nada, embora na noite, às vezes, quando vinha, revelasse certas palavras fragmentadas, incompletas, no código baço dos que se foram, que se perdiam para sempre no mundo dos sonhos esquecidos, enquanto ele tentava inutilmente recompô-las na manhã seguinte. Mas não, não diria nada. Não se diz mais uma palavra quando, de muitas formas nunca claras o suficiente para que os outros entendam, tudo já foi dito. Então um impulso com o corpo, como quem vai voar, suspenso na forca. Depois, os dias quentes demais, o vento do mar espalhando o cheiro de podridão, misturado ao próprio cheiro, uma forte maresia soprava seu fedor de morte e fuga entre as curvas das areias nas dunas da praia remota.)
- Hein?
- As árvores, eu disse. Os cinamomos, você sabe. Já começaram a soltar aquele cheiro adocicado?
- Não reparei.
- Repara, então. Repara por mim. Depois me conta.
- Mas não se conta um cheiro.
- Explica, então. Você explica?
- Explico, conto. Mas livre-se deles.
- Livrar-se, você me ensina o jeito?
(Chegava com a noite, ela também, a moça loura e magra, cabelos finos como os de uma inglesa. A medida que o escuro se insinuava para dentro do quarto, o branco da roupa dela tornava-se mais nítido, quase fosforescente, sempre no canto esquerdo, rondando janelas. Nunca vinham juntos. E não sabia se o espantava mais a lentidão dele ou a pressa dela. Em qualquer dos dois, o ato já estava pronto. Executá-lo não seria mais do que colocar em prática marcações longamente ensaiadas na cabeça. Com ela, havia três momentos bem destacados, mas tão rápidos que poderiam parecer um só, se a cada noite ela não os repetisse, câmara lenta, um por um. Primeiro, a porta fechada. Em seguida, a gilete no pulso. Quando o sangue começava a escorrer, e percebia se um fio longo esticando-se vermelho pela roupa branca - parecia uma menina assim, de relance, assustada com a primeira menstruação. Entre esse momento e o outro, havia aquele, muito pequeno, em que ela parava à janela, olhando fixo. E como nele, o outro que também vinha, não saberia nunca se contemplava as coisas pela última vez - os automóveis, o cimento das ruas com suas cintilações de calor, algumas poças de luz, miragens, as cabeças escuras das pessoas sobre roupas coloridas e pares de pernas embaixo delas, indo e vindo de lugares aos quais ela nunca mais iria - ou se voltava os olhos para o lado de lá de todas as coisas, onde talvez pudesse distinguir vagamente, difuso como um rosto atrás de vidraças em dia de chuva, um par de olhos conhecidos, algum sorriso. Não: nenhum sorriso. Lábios e olhos duros. O ato de colocar- se em pé no parapeito, um segundo antes sempre pareciam à beira do vôo. Te estreito - ela repetia -, te estreito e me precipito. Em seguida, o salto, a queda, barulho de ossos partidos, os gritos, a sirene e a correria das gentes pelas calçadas sujas de Copacabana.) Pediu:
- Venha me ver qualquer dia.
- Você sabe que é proibido. - De água, de sol, a voz parecia agora nublada por qualquer sombra como um cansaço. Pensou primeiro, e depois, mais duramente: uma impaciência, uma distância, uma fadiga de repetir sempre as mesmas coisas, às cinco e quinze da tarde.
Prometeu:
- Eu vou ficar bem.
- Claro que vai.
- Um dia eu volto.
- Claro que volta. Venha ver os cinamomos.
- Eu não tenho culpa.
- Claro que não.
- Eles estão ficando cada vez mais vagos. Como uma dessas neblinas na serra. Numa manhã de inverno, quando o sol começa a furar as nuvens. - Tinha começado a mentir, tão intensamente que talvez falasse a verdade. Quase conseguia vê-los, os corpos mais e mais esgarçados enquanto falava. - Estão ficando ralos, meio transparentes. As vozes cada vez mais fracas. Quase nem consigo entender o que dizem. Mal completam os movimentos, são como desenhos e tinta num papel molhado. Se apagando, mas tão lentos: não sei até quando resisto.
- Até quando for preciso. Estarei aqui.
- Talvez dependa de mim.
- Tudo tem seu tempo. Há o tempo deles, também. Eu sou a ponte para você, você é a ponte para eles.
- Tenho medo que você falhe. Porque, se você falhar, eu falho também. E eu não posso.
- Eu não vou falhar. Não porque não posso, mas porque não quero.
- É como um pacto?
- Se você quiser.
Precisava acreditar na outra voz: era só o que tinha. Mas não conseguia impedir-se de ver alguém lá de fora puxando-a apressado pelo braço - bares, cinemas, encontros, esquinas - para mergulharem juntos naquela vertigem de caras vivas, palavras dispersas, talvez meio vadias, mas sempre envolventes, sorrateiras, a afastá-lo - a ele, a ela, à outra voz - cada vez mais de si mesmo. Um dia seria para sempre: e eu só tenho esse centro talvez escuro de mim, onde me agarro. Nesse outro dia, não haveria nada ao redor, exceto as grades. Quis alertá-lo para a necessidade de resistirem juntos nessa ponte frágil. Até um dia qualquer de sol, se você me esperar lá fora.
De repente, agora, como antes, pressentindo o toque do telefone, alguma coisa começava a contorcer-se por dentro dele, no aviso da partida. Quis retê-la ainda, à outra voz, com alguma história. Os chineses, lembrou, os chineses mentiam aos gritos sobre a qualidade da colheita, para enganar e afugentar os deuses maus. Mas nunca achava que tivesse o direito de atraí-la, à outra voz, para o escuro onde estava. Percebeu mais claro que se afastava quando tentou recompor o rosto a quem pertencia a outra voz, sem conseguir. Debatia-se no lago, afundando cada vez que tentava voltar à tona. O rosto aproximava-se e afastava-se, cortado pelo movimento sinuoso dos peixes que faziam seus contornos oscilarem junto com as ondas, por um momento feito de água também. Guiava-se pela voz, um cego. Quis gritar por socorro, mas a água entrava-lhe boca adentro. Engolia as palavras proibidas, com gosto de algas secas.
Antes que desligasse, a outra voz teve tempo de dizer:
- Amanhã eu volto a ligar.
Passou os dedos devagar sobre o telefone mudo. Estava frio. Já não havia sonoridades vivas fugindo pelos furinhos do fone para aquecer e colorir o quarto. Todo o resto ia-se embora com a outra voz, o mundo inteiro que habitava dentro dele. Esse era o momento mais difícil: entre o abandono da voz e a espera deles. Ana, Carlos. Era breve. Anoitecia cedo naqueles dias de começo de inverno. Podia ver o escuro espalhando-se lento na parede oposta à janela aberta, tão lentamente que talvez pudesse, as mãos nas grades, espantá-lo com um grito.
Mas sabia que o escuro, ao contrário dos deuses chineses, não tem medo de gritos. Nem se deixa enganar.
Ao invés de deixar as costas escorregarem pela parede, igual a todos os dias, até sentar-se ao chão, os braços em torno dos joelhos, para depois balançar-se suavemente, muitas vezes, preferiu caminhar até a janela. Um sino tocou longe, quase às seis da tarde. Cerrou os dentes, voltou-se para dentro, disposto a enfrentá-los quando viessem novamente, trazidos pela noite. Fechou os olhos. Enquanto esperava, contra o fundo infinito das pálpebras, com muito esforço, entre formas e fantasmas, conseguiu divisar, cada vez mais nítido, qualquer coisa como os dedos abertos de uma mão estendida em direção a ele.
Não me abandone, pediu para dentro, para o fundo, para longe, para cima, para fora, para todas as direções. E curvou a cabeça como quem reza. Para que a mão pudesse tocá-lo, inaugurando finalmente a luz. Mesmo dentro do escuro, alguma espécie de luz. Talvez como aquela que habitava a outra voz, tão viva e cada vez mais remota. Todos os dias, por volta das cinco e quinze da tarde. Porque queria - e queria porque queria - a luz da outra voz, não a escuridão deles: escolheu.
.
.
Mas tinha medo de pensar nisso, então supunha que sabia por uma espécie de vibração no ar, assim como se as coisas, aquelas coisas de fora, tivessem um movimento especial, feito um leve arfar, todos os dias, passados quinze minutos das cinco horas, à tarde. Só que as coisas não se moviam. Talvez quem sabe na superfície ou dentro de seu corpo, contrair de vísceras, dilatação da pupila, um palpitar mais acelerado no coração, miúdas gotas de suor na palma das mãos - breve susto na alma.
De qualquer forma, sabia - de onde quer que viesse o aviso. Sabia tanto que, igual às outras vezes, colocou a mão sobre o telefone um pouco antes que tocasse. E antes ainda sequer de começar a esperar, porque eram cinco e quinze, ele estremeceu ao ouvir o toque, quase sorrindo para dentro, para si, porque de alguma forma era como se o toque fosse produzido apenas pela vibração de seus dedos suspensos sobre o aparelho. Tivesse o poder de, à distância, magnetizar a mão de outra pessoa, induzindo o dedo indicador naquela mão daquela outra pessoa a discar seus seis ou sete números para chamá-lo. Mas já não tinha poder algum, se é que tivera um dia. E achava que não, além desse de agora: manter as pontes pelo tempo necessário e impreciso. Só atendeu depois do telefone tocar três vezes.
Luminosa e viva, a outra voz, cheia de cristais agudos. Pedrinhas moídas de gelo batendo nas bordas de vidro de um copo. Tão reluzentes que piscou os olhos sem querer, ofuscado. Olhava pela janela, a sombra na parede oposta. Precisava de tempo, nessa transição entre as trevas do interior da caverna e o campo eletrizado de luz. Zona de penumbra, embora soubesse, acostumando retinas viciadas, perguntou lento:
- Quem está falando? - e repetiu duas, três vezes, até que a voz parasse de falar sobre qualquer coisa que ele não entendia direito, qualquer coisa daquelas lá de fora, inteligíveis somente para quem estava lá, no meio do vivo, sem começo nem fim, nem dirigida especialmente a ele, interferência numa linha cruzada.
- Não está me reconhecendo? Sou sempre eu.
Afastou um pouco o fone do ouvido - tão alta, a outra voz. Não que fosse desagradável, nem estridente demais. Ao contrário: fugindo assim pelos furinhos do fone, o som parecia espalhar-se por todos os cantos do quarto estreito. Batia nas paredes, eco refletido, derramada sobre todos os objetos, envolvendo-os em finos tecidos sonoros, dissolvia o mofo, coloria a sombra, ensolarada. Asa de cigarra, manhã de janeiro. O quarto escuro brilhou, esmaltado pela voz de ouro. Por favor, quis pedir, me leva daqui, preciso de ajuda antes que seja tarde demais. Mas não era permitido. Rígidos rituais solenes, escondidos atrás das fórmulas de cortesia, às cinco e quinze da tarde. E a dor feito buraco de traça disfarçado sob castiçais. Tornou a aproximar o fone do ouvido, com carinho e cuidado.
- O que é que houve? Você não está bem?
- Estou - disse devagar. Impossível dizer “tenho medo” ou alguma coisa dessas - pessoal, assustadora. Levou a mão livre ao coração. Suspirou, entre duas batidas. - Não houve nada. Estou bem.
- Tive a impressão que você não estava ouvindo. A voz de rio, água deslizando entre pedras lisas, clarinhas, alguma flor amarela, respingos na corola, repetiu, o tronco áspero que arranhava a garganta dele mesmo, pedindo passagem - e o fio do telefone ligando as duas vozes sobre a cidade, às cinco e quinze de cada tarde - preciso tempo.
- O quê?
- Tempo. Preciso sempre de um certo tempo, desde o momento em que você começa a falar até.
A voz riu. Levemente cúmplice, quase terna, visitante habitual e complacente das escadarias dentro dele, poeiras, sótãos, teias de aranha visguentas dificultando o caminho, e de repente a queda brusca no meio de um corredor conhecido, embora ele não tivesse terminado de falar.
- Até poder falar. É a minha voz. Fica assim como se eu não tivesse controle nenhum sobre ela. Eu me desacostumo de falar. Parece depois que vem de longe, que não é minha. Nunca aconteceu isso com você?
- Sempre se pode cantar. Ou ler um livro em voz alta. Você não tem nenhum livro aí?
- Você sabe que não - começou a dizer. Mas um ruído de avião ou automóvel do outro lado do fio interrompeu por um momento o som. Uma nuvem cobria o sol. Havia ruídos lá, e movimentos, trepidâncias, pulsações: podia senti-los a atravessar a linha, irrequietos, quase vivos, para saírem do fone, junto com a voz, retorcendo-se pelos cantos do quarto. Nenhum interesse além das grades da janela, das quais se afastariam com nojo. Esse nojo curioso, apiedado, por um bicho numa jaula.
- Quero que você fique bom logo - a outra voz disse. E parecia verdade. Só de ouvi-la, tinha vontade de debruçar-se à janela para cumprimentar alguém que estendesse roupas lá embaixo, sem medo dos dentes arreganhados. Não havia varais. Do outro lado da janela, apenas o muro de cimento, alto como uma parede, a aridez do pátio coberto de lajes, sem plantas. E as grades, antes, para barrar previamente o salto que ainda não dera. (Do lado de lá, a moça sorriu mais com os olhos azuis atrás de óculos redondos do que com a boca pequena, lábios polpudos, bem desenhados. Como costumava sorrir. Esboçou no ar um movimento para ampará-la - vacilava tanto nos últimos tempos, desde que desaprendera a ficar em pé, ou desinteressara-se disso, concentrada na aprendizagem de outros equilíbrios mais delicados. Ela esquivou-se suave, mas firme, como a dizer que agora já não importava, qualquer ajuda é inútil depois da travessia decidida: te estreito, te estreito e me precipito. ) Quis repetir isso ao telefone, para avisar à voz, mansa chantagem. Só conseguiu dizer:
- Obrigado.
Por trás da palma da mão contra o peito, por trás do pano da camisa, entre massas de carne entremeadas de músculos, nervos, gorduras, veias, ossos, o coração batia disparado. Você vai me abandonar - repetiu sem som, a boca movendo-se muito perto do fone - e eu nada posso fazer para impedir. Você é meu único laço, cordão umbilical, ponte entre o aqui de dentro e o lá de fora. Te vejo perdendo-se todos os dias entre essas coisas vivas onde não estou. Tenho medo de, dia após dia, cada vez mais não estar no que você vê. E tanto tempo terá passado, depois, que tudo se tornará cotidiano e a minha ausência não terá nenhuma importância. Serei apenas memória, alívio, enquanto agora sou uma planta carnívora exigindo a cada dia uma gota de sangue para manter-se viva. Você rasga devagar seu pulso com as unhas para que eu possa beber. Mas um dia será demasiado esforço, excessiva dor, e você esquecerá como se esquece um compromisso sem muita importância. Uma fruta mordida apodrecendo em silêncio no prato.
- Hein?
- Nada. Não disse nada.
- Tive a impressão de ter ouvido você falar. Muito baixo. Pensei que fosse com eles.
- Quem?
- Você sabe. Como é que você os chama?
- Ana, Carlos. Eles não estão aqui, agora.
- Eles têm voltado?
- Todas as noites.
(Paciente, determinado, o rapaz esperava a festa acabar. Tão determinado que, se alguém o olhasse mais atento, certamente perceberia alguma forma mais precisa nos movimentos, agora sem hesitação nenhuma, talvez na voz mais dura, um brilho estranho nos olhos. As contas, afinal, estavam feitas: não restara saldo. Um por um, esperava que todos se fossem. Limparia cinzeiros, depois, na casa vazia, recolheria migalhas da festa pelos cantos da sala para jogá-las no lixo. Talvez espiasse a noite de verão, parado à porta, sozinho com sua escolha, e respirasse muito fundo, ainda uma vez, deixando o cheiro denso do mar entontecer um pouco mais a cabeça cansada de tantos cansaços de tantos anos. Tão miúdos que nem percebera o peso. Era pequenino e manso de movimento e fala, como se temesse de alguma forma perturbar o campo vibratório das outras pessoas. Olharia as coisas uma última vez, coisas comuns: sofá, cadeira, mesa. Talvez não: estaria completamente cego no momento de tirar uma por uma as peças de roupa. Teria os olhos voltados para o outro lado, como quem sobe uma colina e, quase no topo, já consegue divisar algumas formas, uma moita, cumes de formigueiros, umas roxuras de flores rasteiras espalhadas no caminho de descida. Lento, lento. A lenta nudez, depois os dedos preparando o nó. Então o gesto de enfiá-lo pela cabeça, feito uma coroa - a coroa de loros que não teve ou desistiu de esperar - um tanto ridícula, excessivamente larga, que a corda descesse arranhando leve a ponta do nariz, o queixo. Ajustaria delicadamente o laço no pescoço, preparando a gravata para a festa -seria uma festa? - do outro lado. Não diria nada, embora na noite, às vezes, quando vinha, revelasse certas palavras fragmentadas, incompletas, no código baço dos que se foram, que se perdiam para sempre no mundo dos sonhos esquecidos, enquanto ele tentava inutilmente recompô-las na manhã seguinte. Mas não, não diria nada. Não se diz mais uma palavra quando, de muitas formas nunca claras o suficiente para que os outros entendam, tudo já foi dito. Então um impulso com o corpo, como quem vai voar, suspenso na forca. Depois, os dias quentes demais, o vento do mar espalhando o cheiro de podridão, misturado ao próprio cheiro, uma forte maresia soprava seu fedor de morte e fuga entre as curvas das areias nas dunas da praia remota.)
- Hein?
- As árvores, eu disse. Os cinamomos, você sabe. Já começaram a soltar aquele cheiro adocicado?
- Não reparei.
- Repara, então. Repara por mim. Depois me conta.
- Mas não se conta um cheiro.
- Explica, então. Você explica?
- Explico, conto. Mas livre-se deles.
- Livrar-se, você me ensina o jeito?
(Chegava com a noite, ela também, a moça loura e magra, cabelos finos como os de uma inglesa. A medida que o escuro se insinuava para dentro do quarto, o branco da roupa dela tornava-se mais nítido, quase fosforescente, sempre no canto esquerdo, rondando janelas. Nunca vinham juntos. E não sabia se o espantava mais a lentidão dele ou a pressa dela. Em qualquer dos dois, o ato já estava pronto. Executá-lo não seria mais do que colocar em prática marcações longamente ensaiadas na cabeça. Com ela, havia três momentos bem destacados, mas tão rápidos que poderiam parecer um só, se a cada noite ela não os repetisse, câmara lenta, um por um. Primeiro, a porta fechada. Em seguida, a gilete no pulso. Quando o sangue começava a escorrer, e percebia se um fio longo esticando-se vermelho pela roupa branca - parecia uma menina assim, de relance, assustada com a primeira menstruação. Entre esse momento e o outro, havia aquele, muito pequeno, em que ela parava à janela, olhando fixo. E como nele, o outro que também vinha, não saberia nunca se contemplava as coisas pela última vez - os automóveis, o cimento das ruas com suas cintilações de calor, algumas poças de luz, miragens, as cabeças escuras das pessoas sobre roupas coloridas e pares de pernas embaixo delas, indo e vindo de lugares aos quais ela nunca mais iria - ou se voltava os olhos para o lado de lá de todas as coisas, onde talvez pudesse distinguir vagamente, difuso como um rosto atrás de vidraças em dia de chuva, um par de olhos conhecidos, algum sorriso. Não: nenhum sorriso. Lábios e olhos duros. O ato de colocar- se em pé no parapeito, um segundo antes sempre pareciam à beira do vôo. Te estreito - ela repetia -, te estreito e me precipito. Em seguida, o salto, a queda, barulho de ossos partidos, os gritos, a sirene e a correria das gentes pelas calçadas sujas de Copacabana.) Pediu:
- Venha me ver qualquer dia.
- Você sabe que é proibido. - De água, de sol, a voz parecia agora nublada por qualquer sombra como um cansaço. Pensou primeiro, e depois, mais duramente: uma impaciência, uma distância, uma fadiga de repetir sempre as mesmas coisas, às cinco e quinze da tarde.
Prometeu:
- Eu vou ficar bem.
- Claro que vai.
- Um dia eu volto.
- Claro que volta. Venha ver os cinamomos.
- Eu não tenho culpa.
- Claro que não.
- Eles estão ficando cada vez mais vagos. Como uma dessas neblinas na serra. Numa manhã de inverno, quando o sol começa a furar as nuvens. - Tinha começado a mentir, tão intensamente que talvez falasse a verdade. Quase conseguia vê-los, os corpos mais e mais esgarçados enquanto falava. - Estão ficando ralos, meio transparentes. As vozes cada vez mais fracas. Quase nem consigo entender o que dizem. Mal completam os movimentos, são como desenhos e tinta num papel molhado. Se apagando, mas tão lentos: não sei até quando resisto.
- Até quando for preciso. Estarei aqui.
- Talvez dependa de mim.
- Tudo tem seu tempo. Há o tempo deles, também. Eu sou a ponte para você, você é a ponte para eles.
- Tenho medo que você falhe. Porque, se você falhar, eu falho também. E eu não posso.
- Eu não vou falhar. Não porque não posso, mas porque não quero.
- É como um pacto?
- Se você quiser.
Precisava acreditar na outra voz: era só o que tinha. Mas não conseguia impedir-se de ver alguém lá de fora puxando-a apressado pelo braço - bares, cinemas, encontros, esquinas - para mergulharem juntos naquela vertigem de caras vivas, palavras dispersas, talvez meio vadias, mas sempre envolventes, sorrateiras, a afastá-lo - a ele, a ela, à outra voz - cada vez mais de si mesmo. Um dia seria para sempre: e eu só tenho esse centro talvez escuro de mim, onde me agarro. Nesse outro dia, não haveria nada ao redor, exceto as grades. Quis alertá-lo para a necessidade de resistirem juntos nessa ponte frágil. Até um dia qualquer de sol, se você me esperar lá fora.
De repente, agora, como antes, pressentindo o toque do telefone, alguma coisa começava a contorcer-se por dentro dele, no aviso da partida. Quis retê-la ainda, à outra voz, com alguma história. Os chineses, lembrou, os chineses mentiam aos gritos sobre a qualidade da colheita, para enganar e afugentar os deuses maus. Mas nunca achava que tivesse o direito de atraí-la, à outra voz, para o escuro onde estava. Percebeu mais claro que se afastava quando tentou recompor o rosto a quem pertencia a outra voz, sem conseguir. Debatia-se no lago, afundando cada vez que tentava voltar à tona. O rosto aproximava-se e afastava-se, cortado pelo movimento sinuoso dos peixes que faziam seus contornos oscilarem junto com as ondas, por um momento feito de água também. Guiava-se pela voz, um cego. Quis gritar por socorro, mas a água entrava-lhe boca adentro. Engolia as palavras proibidas, com gosto de algas secas.
Antes que desligasse, a outra voz teve tempo de dizer:
- Amanhã eu volto a ligar.
Passou os dedos devagar sobre o telefone mudo. Estava frio. Já não havia sonoridades vivas fugindo pelos furinhos do fone para aquecer e colorir o quarto. Todo o resto ia-se embora com a outra voz, o mundo inteiro que habitava dentro dele. Esse era o momento mais difícil: entre o abandono da voz e a espera deles. Ana, Carlos. Era breve. Anoitecia cedo naqueles dias de começo de inverno. Podia ver o escuro espalhando-se lento na parede oposta à janela aberta, tão lentamente que talvez pudesse, as mãos nas grades, espantá-lo com um grito.
Mas sabia que o escuro, ao contrário dos deuses chineses, não tem medo de gritos. Nem se deixa enganar.
Ao invés de deixar as costas escorregarem pela parede, igual a todos os dias, até sentar-se ao chão, os braços em torno dos joelhos, para depois balançar-se suavemente, muitas vezes, preferiu caminhar até a janela. Um sino tocou longe, quase às seis da tarde. Cerrou os dentes, voltou-se para dentro, disposto a enfrentá-los quando viessem novamente, trazidos pela noite. Fechou os olhos. Enquanto esperava, contra o fundo infinito das pálpebras, com muito esforço, entre formas e fantasmas, conseguiu divisar, cada vez mais nítido, qualquer coisa como os dedos abertos de uma mão estendida em direção a ele.
Não me abandone, pediu para dentro, para o fundo, para longe, para cima, para fora, para todas as direções. E curvou a cabeça como quem reza. Para que a mão pudesse tocá-lo, inaugurando finalmente a luz. Mesmo dentro do escuro, alguma espécie de luz. Talvez como aquela que habitava a outra voz, tão viva e cada vez mais remota. Todos os dias, por volta das cinco e quinze da tarde. Porque queria - e queria porque queria - a luz da outra voz, não a escuridão deles: escolheu.
.
.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
* A chave e a porta
.
Falávamos de caracóis, mas no vidro se refletiam as mãos em movimentos descontrolados de acender cigarros, a madeira da parede suportando papéis, fotografias, cartazes, e eu já não tinha nada além de palavras formuladas em perguntas despidas, apenas letras, estátuas de sal, de gelo, de pedra.
Era um silêncio muito grande e os dois falavam de caracóis. Súbito, sentia uma alegria interna quase como uma primavera. E a alegria crescia, expandindo-se em muitas direções, tomando conta das mãos, dos olhos, já transcendia o pensamento para se apossar do corpo inteiro. Mas de repente tudo já não cabia mais só dentro dele; precisava de um acontecimento externo que justificasse toda aquela largueza de dentro. A coisa externa não acontecia. E, se acontecia, não justificava. Por que não se render ao avanço natural das coisas, sem procurar definições? Como uma primavera, em mim. Mas se não havia justificativa, a queda era lenta e longa. No fundo do poço: baixou a cabeça, espiou-o por baixo das sobrancelhas. Tinha os olhos claros. Falava de caracóis.
Subi em cima da mesa e comecei a acenar para as aves de rapina que inventavam podridões no cimento. Pois se em breve todas as estátuas cairiam sobre a sombra desdobrada do casarão antigo, e como num medo muito grande eu subiria em cima da mesa, gritando sem ninguém ouvir, acenando com mãos que não se desprenderiam dos ombros. Protegia a si mesmo daquela primavera surgida brusca no meio do dia revestido de luz. Na sala ao lado, alguém cantava uma música antiga enquanto um telefone chamava sem que ninguém atendesse, sem que ninguém entendesse. Um estranho e triste apelo sem resposta partido no ar em fatias de aço. Que bom se fôssemos cavalos e corrêssemos por um campo de trigo, com papoulas nas margens.
Encarou-o tenso, colocando no olhar o desafio: eu te vejo mais fundo do que você me vê, porque eu te invento nesse olhar, porque você se torna o meu invento, porque depois de olhar muito dentro eu prescindo da imagem e o meu olhar repleto se basta, como se eu fosse cego, mas tivesse guardado todas as imagens: um cego vê mais que um homem comum porque não precisa olhar para fora de si, porque o que ele deseja ver está completamente dentro e é inteiramente seu. Mas os olhos claros barravam o inventário. Não ia além da cor, não ia além das pupilas contraídas pela luz. O máximo que distinguia era um rosto perto do seu. Um rosto muito perto do seu falando de caracóis. Suspirou, num reconhecimento de fraqueza. Se meu olhar não te desvenda é porque você me vê mais fundo, mas você não pode ver mais fundo porque o meu fundo está cheio de musgo, porque o meu fundo é verde como um muro antigo, roído como mármore de cemitério, denso como uma floresta onde eu ando lento, as árvores barrando meus passos e a transparência de seus olhos barrando os meus.
Você já tomou gim com mariscos? Não, porque eu tenho nojo e medo: eu não conseguiria provar a carne mais íntima de um objeto ou de um animal. Tome logo, você não sabe o que está perdendo. Não, não seria madrugada, não seria noite vestida de noite nem manhã de branco nem tarde de verde, não seria tempo nenhum; não seria sequer a sexta-feira mais intensa que qualquer outro dia, por ser véspera de tudo, embora o tudo resulte em nada, na segunda; não seria nem véspera de sábado, não seria sequer o sábado. Eu te falo: seria uma névoa cinzenta e o edifício deserto erguido às margens do rio sujo. Fantasmas lentos, nós entraríamos no edifício, o rio estaria dentro de nós, e eu não seria mais eu, seria o rio, e você não seria mais você, seria o rio. O rio riscado de encontro.
O telefone continuava chamando no momento em que ele riscou a parede com a mão aberta. Perfurava a carne de madeira, fazendo nascer espantos dissolvidos na fumaça do cigarro que subia para o teto esbranquiçado, cheio de furinhos de onde um dia talvez começasse a brotar um fino gás que asfixiaria a todos. Por dentro, aquele gosto ardido de areia, aquele gosto seco de poeira, de bolo antigo, dissolvia-se de grão em grão, escorregando pela boca em palavras que já não eram forjadas, escorregando pelas mãos em gesto não mais endurecidos, escorregando pelos olhos que novamente olhavam como se vissem. Mas eu resistia ainda em usar a palavra. Espantou-se com o intervalo inesperado, ponto branco no meio de pensamento. E a leveza que descia feito o gás que desceria do teto: vestido de leveza, os olhos antigos de ternura, a morte implícita. Já era tarde, começava a chover, os pingos batiam fortes no vidro onde ninguém mais desenhava figuras ou escrevia nomes vadios. Na terra agora molhada não havia mais cirandas, do céu não caíam mais balões, na sala ao lado o samba antigo morrera no fundo da garganta. Só as máquinas a bater bater bater e o telefone gritando sem que ninguém atendesse. Ele continuava sentado na mesa, os olhos claros, a camisa verde, as mãos brancas. Pouco a pouco, como se experimentasse um vôo, curvou-se para a mesa, as asas cortadas. E o medo. Depois de limpar bem toda a terra, a gente coloca eles na panela e eles vão cozinhando devagar. Vivos? Claros, vivos. Tem uns que ainda tentam se segurar nas bordas, escapar, mas morrem todos. Todos acabam morrendo. Muito devagar. Os círculos de tédio desciam concêntricos da lâmpada, estendia o braço e sentia a carne inerte, os sentidos adormecidos, pouco mais que um objeto, eu. O mesmo bar, a mesma lâmpada, a mesma carne, mas todos em vibração, os sentidos multiplicados, intensos, elétricos, o coração quase parando de espanto, o espanto de ter encontrado no meio do deserto uma palmeira, uma palmeira de olhos claros, camisa verde, mãos brancas. Ter encontrado um cravo branco entre os caixotes de lixo atapetando a rua. Ter encontrado o espaço de silêncio dentro de um grito. Ter encontrado um ponto de apoio para o cansaço. Você não me vê, eu não te vejo, mas tenho o coração pálido, as mãos suspensas no meio de um gesto, a voz contida no meio de uma palavra, e você não vê o meu silêncio nem meu movimento dentro dele. A primavera se quebrava brusca em espinho, ferro. Já não sei desde quando estamos aqui, desde quando falamos de caracóis, desde quando invento teu silêncio igual ao meu. Por que estranha alquimia passavam as palavras dele para vará-lo assim, nessa tão remota dimensão do ser? A visão tardia de encontrar a chave depois da porta ter-se tornado inexistente. A chave inútil pesando em fogo nas mãos e o gesto há muito tempo preparado transformado subitamente em cansaço e desencanto de não ter visto antes. Os dois sentados um frente ao outro, pela tarde a transformar-se lenta em noite, em madrugada, em cinza. Não virá nunca.
Véspera de sábado, na sala ao lado o telefone grita para ouvidos distraídos. Sua mão esfaqueia a parede, as palavras caem como frutos podres, como flores colhidas, como crianças mortas. Nas mãos, a chave achada muito tarde, muito tarde. Tarde demais.
.
.
Era um silêncio muito grande e os dois falavam de caracóis. Súbito, sentia uma alegria interna quase como uma primavera. E a alegria crescia, expandindo-se em muitas direções, tomando conta das mãos, dos olhos, já transcendia o pensamento para se apossar do corpo inteiro. Mas de repente tudo já não cabia mais só dentro dele; precisava de um acontecimento externo que justificasse toda aquela largueza de dentro. A coisa externa não acontecia. E, se acontecia, não justificava. Por que não se render ao avanço natural das coisas, sem procurar definições? Como uma primavera, em mim. Mas se não havia justificativa, a queda era lenta e longa. No fundo do poço: baixou a cabeça, espiou-o por baixo das sobrancelhas. Tinha os olhos claros. Falava de caracóis.
Subi em cima da mesa e comecei a acenar para as aves de rapina que inventavam podridões no cimento. Pois se em breve todas as estátuas cairiam sobre a sombra desdobrada do casarão antigo, e como num medo muito grande eu subiria em cima da mesa, gritando sem ninguém ouvir, acenando com mãos que não se desprenderiam dos ombros. Protegia a si mesmo daquela primavera surgida brusca no meio do dia revestido de luz. Na sala ao lado, alguém cantava uma música antiga enquanto um telefone chamava sem que ninguém atendesse, sem que ninguém entendesse. Um estranho e triste apelo sem resposta partido no ar em fatias de aço. Que bom se fôssemos cavalos e corrêssemos por um campo de trigo, com papoulas nas margens.
Encarou-o tenso, colocando no olhar o desafio: eu te vejo mais fundo do que você me vê, porque eu te invento nesse olhar, porque você se torna o meu invento, porque depois de olhar muito dentro eu prescindo da imagem e o meu olhar repleto se basta, como se eu fosse cego, mas tivesse guardado todas as imagens: um cego vê mais que um homem comum porque não precisa olhar para fora de si, porque o que ele deseja ver está completamente dentro e é inteiramente seu. Mas os olhos claros barravam o inventário. Não ia além da cor, não ia além das pupilas contraídas pela luz. O máximo que distinguia era um rosto perto do seu. Um rosto muito perto do seu falando de caracóis. Suspirou, num reconhecimento de fraqueza. Se meu olhar não te desvenda é porque você me vê mais fundo, mas você não pode ver mais fundo porque o meu fundo está cheio de musgo, porque o meu fundo é verde como um muro antigo, roído como mármore de cemitério, denso como uma floresta onde eu ando lento, as árvores barrando meus passos e a transparência de seus olhos barrando os meus.
Você já tomou gim com mariscos? Não, porque eu tenho nojo e medo: eu não conseguiria provar a carne mais íntima de um objeto ou de um animal. Tome logo, você não sabe o que está perdendo. Não, não seria madrugada, não seria noite vestida de noite nem manhã de branco nem tarde de verde, não seria tempo nenhum; não seria sequer a sexta-feira mais intensa que qualquer outro dia, por ser véspera de tudo, embora o tudo resulte em nada, na segunda; não seria nem véspera de sábado, não seria sequer o sábado. Eu te falo: seria uma névoa cinzenta e o edifício deserto erguido às margens do rio sujo. Fantasmas lentos, nós entraríamos no edifício, o rio estaria dentro de nós, e eu não seria mais eu, seria o rio, e você não seria mais você, seria o rio. O rio riscado de encontro.
O telefone continuava chamando no momento em que ele riscou a parede com a mão aberta. Perfurava a carne de madeira, fazendo nascer espantos dissolvidos na fumaça do cigarro que subia para o teto esbranquiçado, cheio de furinhos de onde um dia talvez começasse a brotar um fino gás que asfixiaria a todos. Por dentro, aquele gosto ardido de areia, aquele gosto seco de poeira, de bolo antigo, dissolvia-se de grão em grão, escorregando pela boca em palavras que já não eram forjadas, escorregando pelas mãos em gesto não mais endurecidos, escorregando pelos olhos que novamente olhavam como se vissem. Mas eu resistia ainda em usar a palavra. Espantou-se com o intervalo inesperado, ponto branco no meio de pensamento. E a leveza que descia feito o gás que desceria do teto: vestido de leveza, os olhos antigos de ternura, a morte implícita. Já era tarde, começava a chover, os pingos batiam fortes no vidro onde ninguém mais desenhava figuras ou escrevia nomes vadios. Na terra agora molhada não havia mais cirandas, do céu não caíam mais balões, na sala ao lado o samba antigo morrera no fundo da garganta. Só as máquinas a bater bater bater e o telefone gritando sem que ninguém atendesse. Ele continuava sentado na mesa, os olhos claros, a camisa verde, as mãos brancas. Pouco a pouco, como se experimentasse um vôo, curvou-se para a mesa, as asas cortadas. E o medo. Depois de limpar bem toda a terra, a gente coloca eles na panela e eles vão cozinhando devagar. Vivos? Claros, vivos. Tem uns que ainda tentam se segurar nas bordas, escapar, mas morrem todos. Todos acabam morrendo. Muito devagar. Os círculos de tédio desciam concêntricos da lâmpada, estendia o braço e sentia a carne inerte, os sentidos adormecidos, pouco mais que um objeto, eu. O mesmo bar, a mesma lâmpada, a mesma carne, mas todos em vibração, os sentidos multiplicados, intensos, elétricos, o coração quase parando de espanto, o espanto de ter encontrado no meio do deserto uma palmeira, uma palmeira de olhos claros, camisa verde, mãos brancas. Ter encontrado um cravo branco entre os caixotes de lixo atapetando a rua. Ter encontrado o espaço de silêncio dentro de um grito. Ter encontrado um ponto de apoio para o cansaço. Você não me vê, eu não te vejo, mas tenho o coração pálido, as mãos suspensas no meio de um gesto, a voz contida no meio de uma palavra, e você não vê o meu silêncio nem meu movimento dentro dele. A primavera se quebrava brusca em espinho, ferro. Já não sei desde quando estamos aqui, desde quando falamos de caracóis, desde quando invento teu silêncio igual ao meu. Por que estranha alquimia passavam as palavras dele para vará-lo assim, nessa tão remota dimensão do ser? A visão tardia de encontrar a chave depois da porta ter-se tornado inexistente. A chave inútil pesando em fogo nas mãos e o gesto há muito tempo preparado transformado subitamente em cansaço e desencanto de não ter visto antes. Os dois sentados um frente ao outro, pela tarde a transformar-se lenta em noite, em madrugada, em cinza. Não virá nunca.
Véspera de sábado, na sala ao lado o telefone grita para ouvidos distraídos. Sua mão esfaqueia a parede, as palavras caem como frutos podres, como flores colhidas, como crianças mortas. Nas mãos, a chave achada muito tarde, muito tarde. Tarde demais.
.
.
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
* A Hilda Hilst
.
Porto Alegre, 27 de março de 1973.
Hilda querida, talvez esta seja uma carta de despedida. Mas não se assuste, é que aconteceram alguns imprevistos e resolvi embarcar para a Europa em seguida, fim de abril ou começo de maio. Vou com Augusto, um amigo antigo — o mais antigo que tenho —, ainda dos tempos de adolescência, em Santiago, uma pessoa ótima. Creio que vamos por um avião de Aerolineas Argentinas, o mais barato da temporada, também porque não temos muito dinheiro e temos que ir logo para a Suécia, pegar a temporada de trabalho, que começa em maio — provavelmente dia 28 de abril. Ainda tem toda a encheção de saco com papéis e mil transinhas, portanto não marcamos nada. Mas vamos de qualquer maneira. Meus planos são fazer uns 1.000 dólares na Suécia para depois viajar um pouco e, em setembro, fazer algum curso, talvez em Paris, onde tenho dois amigos lecionando na Sorbonne. Eu estou tranqüilo e sinto que tudo vai sair bem, porque é exatamente a minha hora — mas de vez em quando tenho umas dorzinhas de barriga, você sabe.
Estou um pouco chateado com você. Há muito tempo, uns dois meses, mandei para você um recorte de jornal, com uma matéria minha sobre o Lúcio Cardoso, onde eu falava em você. Sei lá se chegou ou não, mas de qualquer maneira acho que você poderia ter escrito. uma coisa que me dói muito, esses seus silêncios. Sei — claro — que você deve ter problemas bastante sérios, mas uma carta de vez em quando não custa nada e, às vezes — quem sabe? — talvez até a gente pudesse ajudar. Penso, com mágoa, que o relacionamento da gente sempre foi um tanto unilateral, sei lá, não quero ser injusto nem nada — apenas me ferem muito esses teus silêncios. A sensação que tenho é que você simplesmente não está a fim de transar muito — e cada vez que tomo a iniciativa de escrever, é sempre meio tolhido, sem naturalidade, com medo de incomodar, de ser indesejável. Não é uma coisa agradável. Seja como for, continuo gostando muito de você — da mesma forma —, você está quase sempre perto de mim, quase sempre presente em memórias, lembranças, estórias que conto às vezes, saudade. E se é verdade que o tempo não volta, também deveria ser verdade que os amigos não se perdem. Eu não gostaria de acreditar nisso.
Aconteceram coisas bastante duras nos últimos tempos (muitas coisas boas, também). Não vale a pena contá-las, mas a conclusão, amarga, é que não há lugar para gente como nós aqui neste país, pelo menos enquanto se vive dentro de uma grande cidade. As agressões e repressões nas ruas são cada vez mais violentas, coisas que a gente lê um dia no jornal e no dia seguinte sente na própria pele. A gente vai ficando acuado, medroso, paranóico: eu não quero ficar assim, eu não vou ficar assim. Por isso mesmo estou indo embora. Não tenho grandes ilusões, também não acredito muito que por lá seja o paraíso — mas sei que a barra é bem mais tranqüila e, enfim, vamos ver. Acho que o mundo está aí pra ser visto e curtido, antes que acabe. Vou de consciência tranqüila, sabendo que dentro de todo o bode fiz o que era possível fazer por aqui. E não sei quando volto. Nem se volto.
Por uma carta tua, suponho que teu livro deva ter saído. Se fosse possível, eu gostaria que me mandasses uns três ou quatro: pretendo transar algumas editoras por lá, e podia encaminhar o teu livro a alguma, você é que sabe. Tenho alguns amigos escritores por lá, que devem estar mais ou menos por dentro das transas editoriais.
Quanto ao meu, ainda não soube o resultado do concurso de Brasília, que deve sair por esses dias. Em todo caso, mesmo que não ganhe nada, será publicado pelo Instituto Estadual do Livro, quero deixar tudo bem encaminhado. Achei uma epígrafe ótima, duma letra do Gilberto Gil para uma música chamada Zooilógico, assim: “Eu sou o menino que abriu a porta das feras/no dia em que todas as famílias visitavam o zôo”. Não é uma glória? E o livro é exatamente isso: a violência e a loucura soltas para grilar os bempensantes. No momento, acredito muito no grilo como arte, não sei se você entende.
Outra coisa, sobre teu livro: desta vez podias fazer uma boa divulgação. Além dos críticos de SP e Rio, acho que devias mandar para o pessoal do Suplemento de Minas, que é muito bom: Sérgio Sant’Anna, Jaime Prado Gouvêa, Angelo Oswaldo de Araújo Santos, Duílio Gomes e, principalmente, Luiz Gonzaga Vieira, que é um ótimo crítico. Aqui em Porto Alegre também há alguns críticos interessantes, se você tiver interesse, eu posso mandar nomes e endereços.
Falar em endereços, lembrei de duas pessoas conhecidas tuas que moram na Europa: uma é aquela moça, filha duma mulher fantástica, não me lembro o nome (Cléo?), que mora na frente do edifício Itália — acho que o nome da moça é Sapinho (apelido); o outro é aquele rapaz compositor, parece que José Antonio de Almeida Prado. Caso você lembrar de mais alguém, eu gostaria de procurá-los por lá.
Hildinha, acho que é só. Ainda tenho que ir ao centro fazer potes de coisas. Por favor, me escreve antes que eu me vá. Nem que seja um bilhetinho. Gostaria muitíssimo de levar, sei lá, a tua bênção, ou uma força qualquer — boas vibrações. Dá, por mim, um grande abraço em Dante, quando o vires, em la Soininem (diz a ela que vou à Finlândia, em sua homenagem) e em Zé Luis (o avião que vou fica em Madri). Um beijo do sempre seu
..................................................................................................................Caio
.
.
Hilda querida, talvez esta seja uma carta de despedida. Mas não se assuste, é que aconteceram alguns imprevistos e resolvi embarcar para a Europa em seguida, fim de abril ou começo de maio. Vou com Augusto, um amigo antigo — o mais antigo que tenho —, ainda dos tempos de adolescência, em Santiago, uma pessoa ótima. Creio que vamos por um avião de Aerolineas Argentinas, o mais barato da temporada, também porque não temos muito dinheiro e temos que ir logo para a Suécia, pegar a temporada de trabalho, que começa em maio — provavelmente dia 28 de abril. Ainda tem toda a encheção de saco com papéis e mil transinhas, portanto não marcamos nada. Mas vamos de qualquer maneira. Meus planos são fazer uns 1.000 dólares na Suécia para depois viajar um pouco e, em setembro, fazer algum curso, talvez em Paris, onde tenho dois amigos lecionando na Sorbonne. Eu estou tranqüilo e sinto que tudo vai sair bem, porque é exatamente a minha hora — mas de vez em quando tenho umas dorzinhas de barriga, você sabe.
Estou um pouco chateado com você. Há muito tempo, uns dois meses, mandei para você um recorte de jornal, com uma matéria minha sobre o Lúcio Cardoso, onde eu falava em você. Sei lá se chegou ou não, mas de qualquer maneira acho que você poderia ter escrito. uma coisa que me dói muito, esses seus silêncios. Sei — claro — que você deve ter problemas bastante sérios, mas uma carta de vez em quando não custa nada e, às vezes — quem sabe? — talvez até a gente pudesse ajudar. Penso, com mágoa, que o relacionamento da gente sempre foi um tanto unilateral, sei lá, não quero ser injusto nem nada — apenas me ferem muito esses teus silêncios. A sensação que tenho é que você simplesmente não está a fim de transar muito — e cada vez que tomo a iniciativa de escrever, é sempre meio tolhido, sem naturalidade, com medo de incomodar, de ser indesejável. Não é uma coisa agradável. Seja como for, continuo gostando muito de você — da mesma forma —, você está quase sempre perto de mim, quase sempre presente em memórias, lembranças, estórias que conto às vezes, saudade. E se é verdade que o tempo não volta, também deveria ser verdade que os amigos não se perdem. Eu não gostaria de acreditar nisso.
Aconteceram coisas bastante duras nos últimos tempos (muitas coisas boas, também). Não vale a pena contá-las, mas a conclusão, amarga, é que não há lugar para gente como nós aqui neste país, pelo menos enquanto se vive dentro de uma grande cidade. As agressões e repressões nas ruas são cada vez mais violentas, coisas que a gente lê um dia no jornal e no dia seguinte sente na própria pele. A gente vai ficando acuado, medroso, paranóico: eu não quero ficar assim, eu não vou ficar assim. Por isso mesmo estou indo embora. Não tenho grandes ilusões, também não acredito muito que por lá seja o paraíso — mas sei que a barra é bem mais tranqüila e, enfim, vamos ver. Acho que o mundo está aí pra ser visto e curtido, antes que acabe. Vou de consciência tranqüila, sabendo que dentro de todo o bode fiz o que era possível fazer por aqui. E não sei quando volto. Nem se volto.
Por uma carta tua, suponho que teu livro deva ter saído. Se fosse possível, eu gostaria que me mandasses uns três ou quatro: pretendo transar algumas editoras por lá, e podia encaminhar o teu livro a alguma, você é que sabe. Tenho alguns amigos escritores por lá, que devem estar mais ou menos por dentro das transas editoriais.
Quanto ao meu, ainda não soube o resultado do concurso de Brasília, que deve sair por esses dias. Em todo caso, mesmo que não ganhe nada, será publicado pelo Instituto Estadual do Livro, quero deixar tudo bem encaminhado. Achei uma epígrafe ótima, duma letra do Gilberto Gil para uma música chamada Zooilógico, assim: “Eu sou o menino que abriu a porta das feras/no dia em que todas as famílias visitavam o zôo”. Não é uma glória? E o livro é exatamente isso: a violência e a loucura soltas para grilar os bempensantes. No momento, acredito muito no grilo como arte, não sei se você entende.
Outra coisa, sobre teu livro: desta vez podias fazer uma boa divulgação. Além dos críticos de SP e Rio, acho que devias mandar para o pessoal do Suplemento de Minas, que é muito bom: Sérgio Sant’Anna, Jaime Prado Gouvêa, Angelo Oswaldo de Araújo Santos, Duílio Gomes e, principalmente, Luiz Gonzaga Vieira, que é um ótimo crítico. Aqui em Porto Alegre também há alguns críticos interessantes, se você tiver interesse, eu posso mandar nomes e endereços.
Falar em endereços, lembrei de duas pessoas conhecidas tuas que moram na Europa: uma é aquela moça, filha duma mulher fantástica, não me lembro o nome (Cléo?), que mora na frente do edifício Itália — acho que o nome da moça é Sapinho (apelido); o outro é aquele rapaz compositor, parece que José Antonio de Almeida Prado. Caso você lembrar de mais alguém, eu gostaria de procurá-los por lá.
Hildinha, acho que é só. Ainda tenho que ir ao centro fazer potes de coisas. Por favor, me escreve antes que eu me vá. Nem que seja um bilhetinho. Gostaria muitíssimo de levar, sei lá, a tua bênção, ou uma força qualquer — boas vibrações. Dá, por mim, um grande abraço em Dante, quando o vires, em la Soininem (diz a ela que vou à Finlândia, em sua homenagem) e em Zé Luis (o avião que vou fica em Madri). Um beijo do sempre seu
..................................................................................................................Caio
.
.
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
* Retratos
.
Sábado:
Nunca havia reparado nele antes. Na verdade não tem nada que o diferencie dos demais. As mesmas roupas coloridas, os mesmos cabelos enormes, o mesmo ar sujo e drogado. Nunca os vira de perto como hoje. Da janela do apartamento eles pareciam formar uma única massa ao mesmo tempo colorida e incolor. Isso não me interessava. Nem me irritava. Mesmo assim cheguei a assinar uma circular dos moradores do prédio pedindo que eles se retirassem dali. Mas não aconteceu nada. Falaram-me no elevador que alguém muito importante deve protegê-los. Achei engraçado: parecem tão desprotegidos.
Creio que foi isso que me levou a descer até à praça hoje à tarde. Sim, deve ter sido. Não achei nada de estranho neles, nada daquilo que a circular dizia. Só estavam ali, de um jeito que não me ofendia. Um deles sorriu e me fez o retrato. Era como os outros, exatamente como os outros, a única coisa um pouco diferente era aquele colar com uma caveira. Todos usam colares, mas nenhum tem caveira. Uma pequena caveira, O retrato está bom. Não entendo nada de retratos, mas acho que está bom. Vou mandar colocar uma moldura e pregar no corredor de entrada.
Domingo:
Saí para comprar o jornal e encontrei com ele. Perguntou se eu queria fazer outro retrato. Eu disse: já tenho um, para que outro? Ele sorriu com uns dentes claros: faça um por dia, assim o senhor saberá como é seu rosto durante toda a semana. Achei engraçado. Você fará sete, então — eu disse. Ele disse: sete é um número mágico, farei sete. Pediu que eu sentasse no banco de cimento e começou a riscar. Observei-o enquanto desenhava. Na verdade, ele não se parece com os outros: está sempre sozinho e tem uma expressão concentrada. De vez em quando erguia os olhos e sorria para mim. Achei estranho porque nunca ninguém sorriu para mim — nunca ninguém sorriu para mim daquele jeito, quero dizer. A mão dele é muito fina, meio azulada. Quando desenha, tem uns movimentos rápidos. Quando não desenha fica parada. Às vezes chega a ficar parada no ar. É tão estranho. Nunca vi ninguém ficar durante tanto tempo com a mão parada no ar.
Enquanto ele desenhava, eu sentia vergonha — estava de terno, aquele terno velho que uso aos domingos, e gravata. Também não tinha feito a barba. A garrafa de leite pesava na minha mão, o jornal começava a manchar as calças de tinta. Por um momento senti vontade de sentar no chão, como eles. Creio que achariam ridículo. Me contive até que terminasse. Quando estendeu a folha eu não pude me conter e disse que tinha gostado mais do de ontem. Ele riu: sinal que no sábado seu rosto é melhor que no domingo. Paguei e vim embora. O de hoje está ao lado do de ontem. Pareço mais velho, mais preocupado, embora os traços sejam os mesmos. Amanhã perguntarei seu nome.
Segunda-feira:
Tinha me esquecido dele até a hora de voltar para casa. Trabalhei muito o dia inteiro. Voltei cansado, com vontade de tomar banho e dormir. Ele me encontrou na porta do edifício. O nosso trato, disse. Eu disse ah, sim, e acompanhei-o até a praça. Ele caminha devagar, não parece perigoso como os outros. Não sei exatamente o que, mas existe nele qualquer coisa muito diferente. Às vezes penso que vai ter uma tontura e cair. É quando fecha os olhos comprimindo uma das mãos contra a cabeça. Acho que sente fome. Pensei em convidá-lo para comer comigo, mas desisti. Os vizinhos não gostariam. Nem o porteiro. Além disso o apartamento é muito pequeno e está sempre desarrumado porque a empregada só vem uma vez por semana. Anda sempre descalço, tem os pés finos como as mãos. Parece pisar sobre folhas, não sei explicar, não existem folhas na praça. Não agora, só no outono. As unhas são transparentes. E limpas.
Quando estava terminando de desenhar, perguntei o seu nome, O meu nome não são letras nem sons — ele disse —, o meu nome é tudo o que eu sou. Quis perguntar que nome era, mas não houve tempo, ele já me estendia a folha de papel. Paguei e não olhei. Só vim olhar aqui em cima. Fiquei perturbado: não estou mais moço como ontem e anteontem. A cara que ele desenhou é a mesma que vejo naquele espelho da portaria que sempre achei que deforma as pessoas. Coloquei o papel em cima da mesa, ao lado dos outros. Depois achei melhor pregar na parede do quarto, em frente à cama. Espiei pela janela, mas não consegui distingui-lo no meio dos outros.
Terça-feira:
Quando saí, pela manhã, procurei por ele. Queria convidá-lo para tomar a média comigo no bar da esquina. Mas não o vi. Ontem à noite fez frio. Ouvi dizer que eles dormem na praia. De madrugada fiquei pensando nele, estendido na areia sobre aquele casaco militar puído que ele tem. Senti muita pena e não consegui dormir. Foi difícil trabalhar hoje. Percebi que a secretária tem as pernas peludas e o chefe está muito gordo. Sei que isso não tem importância, mas não consegui esquecer o tempo todo. De tardezinha, ele me esperou na esquina. Disse: hoje é o quarto. Faltam três, eu respondi. E senti um aperto por dentro. Tem uns olhos escuros que ficam fixos, parados num ponto, do mesmo jeito que as mãos no ar. A calça está rasgada no joelho. Nunca o vi falar com ninguém. Os outros ficam sempre em grupo, falando baixinho, olhando com desprezo para os de terno e gravata como eu. Ele está sempre sozinho. E não me olha com desprezo.
Terminou de desenhar e me ofereceu uma margarida junto com o papel. Eu nem tinha reparado que havia margaridas na praça. Para falar a verdade, acho que nunca tinha visto uma margarida bem de perto. Ela é redonda. Não exatamente redonda, quero dizer, o centro é redondo e as pétalas são compridas. O centro é amarelo, cheio de grãos. As pétalas são brancas. Coloquei num copo com água e um comprimido dissolvido dentro, disseram que faz a flor durar mais. O retrato é muito feio. Não que seja malfeito, mas é muito velho, tem uma expressão triste, cinzenta. Fiquei surpreso. Cheguei a sentir medo de me olhar no espelho. Depois olhei. Vi que é a minha cara mesmo. Acho que ele caprichou mais no primeiro porque não me conhecia: agora que sou freguês pode me retratar como realmente sou. Percebi que as vizinhas me observavam quando eu falava com ele.
Quarta-feira:
O dia custou a passar. São todos tão pesados no escritório que o tempo parece custar mais a passar. Logo que os ponteiros alcançaram as seis horas, apanhei o casaco e desci correndo as escadas. Esbarrei com o chefe no caminho. Percebi que ele caminha mal por causa dos pés inchados. Fiquei olhando para os pés dele: não parece pisar folhas. Na rua, vi uma vitrine cheia de colares, pensei que ele gostaria de um. Achei que seria bobagem, o mês está no fim, o dinheiro anda curto. Mas não me contive. Voltei e entrei na loja. A moça me olhou com uma cara estranha. É para minha filha, menti. Trouxe o embrulho pesando no bolso, com medo que ele não estivesse na esquina. Estava. De longe o vi, muito magro e alto. Baixei a cabeça fingindo preocupação. Ia passando por ele, mas me segurou pelo braço. Segurou devagar. Mesmo assim senti a pressão de seus dedos. Fazia frio. Perguntei a ele se não sentia frio. Disse: não esse mesmo frio que o senhor sente. Não entendi.
O desenho ficou muito feio. Coloquei-o na parede, ao lado dos outros. Pareço cada dia mais velho. Acho que é porque não tenho dormido direito. Tenho olheiras escuras, a pele amarelada, as entradas afundam o cabelo. Apertei a mão dele. É muito fria. Faltam só dois. Descobri hoje que seus olhos não são completamente escuros. Têm pequenos pontos dourados nas pupilas. Como se fossem verdes. As vizinhas me observavam pelas janelas e falavam baixinho entre si. Pela primeira vez deixei de cumprimentá-las.
Quinta-feira:
Novamente não consegui dormir. Fiquei olhando os retratos na parede branca. E horrível a diferença entre eles, envelheço cada vez mais. Senti muito medo quando pensei no sétimo retrato. E fechei os olhos. Quando fechei os olhos julguei sentir na testa o mesmo contato frio de sua mão na minha, ontem à tarde. Um toque frio e ao mesmo tempo quente, ao mesmo tempo forte e ao mesmo tempo leve. De repente lembrei do que ele disse no dia em que me deu a margarida. Flor e abismo. Ou seria: flor é abismo? Não lembro. Sei que era isso. Não sei como tinha esquecido. Levantei para olhar a margarida. Continuava amarela e branca, redonda e longa. O dia no escritório foi desesperador. Errei várias vezes nos cálculos. Fui grosseiro com a secretária quando ela me chamou a atenção. Ela ficou ofendida, foi fazer queixa ao chefe. Temi que ele me chamasse em sua sala, mas isso não aconteceu. Pretextei uma dor de cabeça para sair mais cedo. Sentei num bar e tomei duas cervejas. Quando botei a mão no bolso senti o peso do colar que não tive coragem de dar a ele. A cidade estava toda cinzenta, embora houvesse sol. As pessoas tinham medo no rosto. Dez para as seis, me levantei. Ele estava no mesmo lugar. Precisei me conter para não correr até ele. Tratei-o com frieza. Mas quando ele disse que o dia estava bonito hoje, não pude me segurar mais e sorri. Estava realmente um bonito dia, as pessoas todas alegres. Não olhei para ele, não quero que pense que sinto inveja ou qualquer coisa assim.
Trouxe o retrato embrulhado. Pela primeira vez, o ascensorista não me cumprimentou nem abriu a porta do elevador. Pareço um cadáver no retrato. Não, é exagero. Estou mesmo muito abatido. Mas não tenho aquela pele esverdinhada. Continua fazendo frio. Amanhã comprarei uma cama, quero convidá-lo para dormir aqui nestas noites frias. Direi que a cama é de minha irmã que está viajando. Não tive coragem de dar a ele o colar, poderia pensar coisas, não sei. Amanhã não comprarei cigarros para poder pagar o último retrato.
Sexta-feira:
Trabalhei só pela manhã, hoje. Ao meio-dia senti que não suportava mais aquele ambiente, aquelas pessoas pesadas como elefantes esmagando os tapetes, aquelas máquinas batendo. Disse ao chefe que me sentia mal. Ele foi compreensivo. Disse que notou que ando meio abatido. Tirei um vale, menti que era para comprar remédio. Entrei num cinema, assisti a duas sessões seguidas esperando as seis horas. No filme tinha um moço de motocicleta parecido com ele, só parecido, descobri que não existe ninguém igual a ele. Lembrei da minha infância, não sei por que, e chorei. Fazia muito tempo que eu não chorava. Às seis horas, fui até a praça. Mas ele não estava. Subi para tomar banho. Daqui a pouco vou descer de novo. Não sei por que, mas estou chorando outra vez.
Mais tarde:
Aconteceu uma coisa horrível. É muito tarde e ele não veio. Não consigo compreender. Talvez tenha ficado doente, talvez tenha sofrido um acidente ou qualquer coisa assim. É insuportável pensar que esteja sozinho, com suas mãos paradas no ar, ferido, talvez morto. Chorei muitas vezes olhando a margarida que ele me deu. Logo hoje que ia desenhar o último retrato, que eu ia dar a ele o colar, convidá-lo para dormir aqui, para comer comigo. Acabei de tomar três comprimidos para dormir, estou me sentindo amortecido. Amanhã talvez ele venha.
Sábado:
Acordei muito cedo e fui para a praça. Mas não consegui encontrá-lo. Tomei coragem, aproximei-me dos outros e perguntei onde ele andava. Alguns nem responderam. Outros ficaram irritados, perguntaram o nome? mas o senhor não sabe nem o nome dele? Eu fiquei com vergonha de repetir o que ele tinha dito. Não fica bem para um homem da minha idade dizer essas coisas. Ninguém sabia. Descrevi seu jeito, seu rosto, sua calça azul furada no joelho, suas mãos, aos poucos fui perdendo a vergonha e falei no seu caminhar sobre folhas, das suas mãos paradas no ar, seus olhos fixos. Ninguém sabia. Perguntei às vizinhas. Três delas me bateram com a porta na cara, resmungando coisas que não entendi. Outras duas disseram que tinham quartos para alugar, o que também não entendi. Saí a caminhar pela cidade, gastei o resto do dinheiro em cerveja, não consegui encontrá-lo. Telefonei para todas as delegacias e hospitais, fui ao necrotério. Não estava. Voltei para casa todo molhado de chuva, tossindo e espirrando. Caí na cama e dormi.
Domingo:
Passei o dia na praça. Ele não apareceu. Levei os retratos comigo. Olhei-os, atentamente. São seis. O último parece um cadáver. Eles me olhavam com desprezo, os retratos. Levei a margarida. Fez calor o dia inteiro. Suei. Esqueci de fazer a barba. A tarde, a secretária passou com o namorado e me viu deitado na grama. Não me cumprimentou e cochichou qualquer coisa com o namorado. Quando já era muito tarde percebi que ele não viria. Nunca mais. Voltei devagar para casa, mas o porteiro não me deixou entrar. Mostrou-me uma circular feita pelas vizinhas dizendo coisas que não li. Vim para o bar onde estou escrevendo. Chove. Talvez ele tenha ido embora, talvez volte, talvez tenha morrido. Não sei. A minha cabeça estala. Eu não suporto mais. Espalhei os retratos em cima da mesa. Fiquei olhando. Despetalei devagar a margarida até não restar mais que o miolo granuloso. O sexto retrato é um cadáver. Acho que sei por que ele não veio. O barulho da chuva é o mesmo de seus passos esmagando folhas que não existiam.
Flor é abismo, repeti.
Flor e abismo. E de repente descobri que estou morto.
.
.
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011
* Corujas
.
.
.
Para meus pais Zael e Nair
e meus irmãos José Cláudio, Luiz Felipe, Márcia e Cláudia
INTRODUÇÃO
Tinham um olhar dentro, de quem olha fixo e sacode a cabeça, acenando como se numa penetração entrassem fundo demais, concordando, refletidas. Olhavam fixo, pupilas perdidas na extensão amarelada das órbitas, e concordavam mudas. A sabedoria humilhante de quem percebe coisas apenas suspeitas pelos outros. Jamais saberíamos das conclusões a que chegavam, mas oblíquos olhávamos em tomo numa desconfiança que só findava com algum gesto ou palavra.
Nem sempre oportunos. O fato é que tínhamos medo, ou quem sabe alguma espécie de respeito grande, de quem se vê menor frente a outros seres mais fortes e inexplicáveis. Medo por carência de outra palavra para. melhor definir o sentimento escorregadio na gente, de leve escapando para um canto da consciência de onde, ressabiado, espreitaria. E enveredávamos então pelo caminho do fácil, tentando suavizar o que não era suave. Recusando-lhes o mistério, recusávamos o nosso próprio medo e as encarávamos rotulando-as sem problema como "irracionais", relegando-as ao mundo bruto a que deviam forçosamente pertencer. O mundo de dentro do qual não podiam atrever-se a desafiar-nos com o conhecimento de algo ignorado por nós. Pois orgulhos, não admitiríamos que vissem ou sentissem além de seus limites. Condicionadas a seus corpos atarracados, de penas cinzentas e três garras quase ridículas na agressividade forçada -condicionadas à sua precariedade, elas não poderiam ter mais do que lhe seria permitido por nós, humanos.
A CHEGADA
Vieram de manhã cedo, a casa adormecida recusando-se preguiçosa a admiti-las em seu cotidiano.
Apenas a empregada levantou-se entre resmungos para abrir a porta. Aceitou-as impassível em sua sonolência, dentro da gaiola em que estavam. O homem que as trouxera exigira apenas um sabonete em troca. Não sei se chegaram, a saber, disso -talvez não, pois quem sabe a troca mesquinha faria oscilar o orgulho delas, amenizando-lhes a ousadia no encarar-nos. Sobre a mesa, uma encolhida contra a outra, massa informe, cinzenta e tímida, onde ainda não se distinguia o grito amarelo dos olhos, aguardaram pacientes que o sol subisse e as gentes acordadas viessem cercá-las de espantos e sustos. Meu pai no entanto não lhes deu atenção. Constatou-as e passou adiante, em direção ao banheiro. Minha mãe sorriu-lhes, tentando a primeira carícia, recusada talvez por inexperiência de afeto. Contudo, não as penetrou fundo, anexando-as inofensivas em seu esparramar de bondade sem precauções.
Foram as crianças as primeiras a hesitar, num recuo que seria de ofensa se pertencesse à gente grande. Crianças trocaram assombros frente à estranheza dos bichos nunca antes vistos. Por terem menos tempo de existência eram talvez as mais vulneráveis ao mistério. O viver constante demorado e desiludido dos outros, acostumados a dureza, não podena por caminhos diretos render-se à solicitação dos olhos delas. Mas a inexperiência das crianças levava-as ao extremo oposto de desrespeitá-las em sua individualidade, trazendo-as sem cerimônias para seu mundo de brinquedos. Perguntaram o nome dos bichos à empregada atarefada em passar café.
Coruja - foi a resposta seca, desinteressada, como se se tratassem de um saco de açúcar.
Aparentemente satisfeitas, compenetraram-se em cercá-las de uma ternura meio brusca. Aquela mesma dispensada às bonecas novas, que em pouco tempo restavam espatifadas em braços e pernas pelo quintal. Essa ternura bruta que destrói por excesso inábil de amor. Restou-me o consolo de ter sido o primeiro a identificá-las como realmente eram. Ou como eu as via, duvidando que a visão dos outros fosse mais correta, profunda ou corajosa.
O sol já alto da manhã as fizera abrir os olhos, investigando o ambiente. Creio que a brancura dos azulejos da cozinha as surpreendeu, pois em breve voltaram a encolher-se, alheias. Acostumadas como estavam aos vastos céus e campos percorridos dias inteiros preferiam buscar as coisas perdidas no calor dos corpos uma da outra. Prática, minha mãe informava: eram boas para comer baratas. E conscientes de sua liberdade interrompida, elas esperavam pela tarefa que lhes era destinada.
BATISMO
Logo caminhavam pela casa inteira, desvendando segredos. As crianças seguravam-nas, embalando-as como nenéns. Sem esperar, de repente, agente deparava com o olhar amarelo fixo duma -perturbando, interrogando, confundindo. A acusação muda fazia com que me investigasse ansioso, buscando erros. E punha-me em dia comigo mesmo, para me apresentar novamente a elas de banho tomado, unhas cortadas, rosto barbeado, cabelo penteado -na ilusão de que a limpeza externa arrancasse um aceno de aprovação. Mas eu sabia -embora, obstinado, recusasse a convicção até o último minuto -, sabia que seu olhar ultrapassava roupa, pele, carne, músculos e ossos para fixar-se num compartimento remoto, cujo conteúdo eu mesmo desconhecesse. Admitia-as envergonhado, mas hesitava em mostrar-me, criminoso negando o crime até a evidência dos fatos. Observava os olhares desviados dos adultos, e desviava também o meu, cirandando com eles na mesma negação.
As crianças disputavam a posse, é minha, não, é minha, manhê, a Claudia quer se adornar das corujas, mas elas passavam adiante, sabendo-se para sempre impossuídas, indecifráveis. Disputavam também a primazia de batizá-las, ignorando que o anonimato fazia parte de sua natureza. Nessa ignorância, chamaram nas Tutuca e Telecoteco. Pisquei um olho para elas, rindo da ingenuidade, tentando penetrar em sua intimidade, cada vez mais e mais negada. Ofélia e Hamlet, sugeriu um leitor óbvio de Shakespeare. Mas recusei-os ainda. Secretamente, reivindicava para mim seu batismo e posse, investigava almanaques em busca do nome que melhor assentasse. Chamá-las de alguma coisa seria dar um passo no caminho de seu conhecimento, como se sutilmente as fosse amoldando à minha maneira de desejá-las. Finalmente achei. Eram nomes de criaturas estranhas, indecifráveis como elas, já perdidas no tempo, misteriosas até hoje. Rasputin e Cassandra. Calei a descoberta, ocultei o batizado, apropriando-me cada vez mais de sua natureza, embora inconscientemente soubesse da inutilidade de tudo. Rasputin era menor, mais ágil, caminhava lento pelo parquê, os olhos sempre abertos, inesperadamente alcançando o encosto das cadeiras num vôo raso. Cassandra procurava os cantos escuros, os olhos constantemente semicerrados, uma perna encolhida, atitude de rosto-pendido-e-ar-pensativo.
A FOME
Passados os primeiros dias, principiaram a entrar na rotina. Vezenquando ainda me surpreendia a encará-las num duelo de mistérios. Eu, ocultando cuidadoso o meu, feroz na defesa, embora fosse sempre o primeiro a desviar os olhos. Recusei tocá-las. A maciez de seus corpos passava quente, impassível, de mão em mão, quando havia visitas. E só nessas ocasiões elas voltavam a espantar. Cumpriam honestamente sua tarefa de devorar baratas, mas recusavam qualquer
outro alimento. O homem que as trouxera informara a minha mãe de seu orgulho: feridas em liberdade faziam greve de fome até a morte. Com a iminência de seu suicídio, planejamos soltá-las no campo. Quase podia vê-las erguendo-se de leve num vôo contido, experimentando forças, as asas abrindo-se aos poucos numa subida lenta. Fundidas em azul, subindo, subindo.
As asas cortadas, porém, exigiam tempo para crescer novamente. Éramos obrigados a esperar. Desejei comunicá-las sua próxima libertação, mas a ineficiência de gestos e palavras isolou-me num mutismo para elas incompreensível. Éramos definitivamente incomunicáveis. Eu, gente; elas, bichos. Corujas, mesmo batizadas em segredo. Cassandra e Rasputin. Ofélia e Hamlet. Tutuca e Telecoteco. Qualquer nome não modificaria a sua natureza. Nunca. Corujas para sempre.
Mas a greve de fome persistia. Tão bem cumpriram seu serviço de comer baratas que em breve, creio, não restava mais nenhuma. Orgulhosas, passeavam seus estômagos vazios pela casa toda, a gente se olhando culpado, as mãos desertas de soluções. Não nos restava mais nada a fazer senão esperar. Por sua morte ou sua capitulação. Quem as visse, convictas em seu dês ilar faminto, poderia facilmente imaginá-las carregando cartazes de protesto. Contra quê? Contra quem? perguntávamos temerosos da resposta óbvia.
DESFECHO
Num começo de manhã ainda sem sol, igual a que as tinha trazido, Rasputin foi encontrado morto. O corpo pequeno e cinzento, já rígido, sobre os mosaicos frios da cozinha. Desviei os olhos sem dar nome ao sentimento que me invadia. Encolhida em seu canto, Cassandra diminuía cada vez mais. Olhos cerrados com força, eu tinha impressão que vezenquando seu corpo oscilava, talo de capim ao vento, quase quebrado.Até que morreu também. Digna e solitária, quem sabe virgem. Enterraram-na no fundo do quintal, uns jasmins jogados por cima da cova rasa, feita com as mãos.
Não fui ver a sepultura. Não sei se me assustava o mistério adensado ou para sempre desfeito.
e meus irmãos José Cláudio, Luiz Felipe, Márcia e Cláudia
INTRODUÇÃO
Tinham um olhar dentro, de quem olha fixo e sacode a cabeça, acenando como se numa penetração entrassem fundo demais, concordando, refletidas. Olhavam fixo, pupilas perdidas na extensão amarelada das órbitas, e concordavam mudas. A sabedoria humilhante de quem percebe coisas apenas suspeitas pelos outros. Jamais saberíamos das conclusões a que chegavam, mas oblíquos olhávamos em tomo numa desconfiança que só findava com algum gesto ou palavra.
Nem sempre oportunos. O fato é que tínhamos medo, ou quem sabe alguma espécie de respeito grande, de quem se vê menor frente a outros seres mais fortes e inexplicáveis. Medo por carência de outra palavra para. melhor definir o sentimento escorregadio na gente, de leve escapando para um canto da consciência de onde, ressabiado, espreitaria. E enveredávamos então pelo caminho do fácil, tentando suavizar o que não era suave. Recusando-lhes o mistério, recusávamos o nosso próprio medo e as encarávamos rotulando-as sem problema como "irracionais", relegando-as ao mundo bruto a que deviam forçosamente pertencer. O mundo de dentro do qual não podiam atrever-se a desafiar-nos com o conhecimento de algo ignorado por nós. Pois orgulhos, não admitiríamos que vissem ou sentissem além de seus limites. Condicionadas a seus corpos atarracados, de penas cinzentas e três garras quase ridículas na agressividade forçada -condicionadas à sua precariedade, elas não poderiam ter mais do que lhe seria permitido por nós, humanos.
A CHEGADA
Vieram de manhã cedo, a casa adormecida recusando-se preguiçosa a admiti-las em seu cotidiano.
Apenas a empregada levantou-se entre resmungos para abrir a porta. Aceitou-as impassível em sua sonolência, dentro da gaiola em que estavam. O homem que as trouxera exigira apenas um sabonete em troca. Não sei se chegaram, a saber, disso -talvez não, pois quem sabe a troca mesquinha faria oscilar o orgulho delas, amenizando-lhes a ousadia no encarar-nos. Sobre a mesa, uma encolhida contra a outra, massa informe, cinzenta e tímida, onde ainda não se distinguia o grito amarelo dos olhos, aguardaram pacientes que o sol subisse e as gentes acordadas viessem cercá-las de espantos e sustos. Meu pai no entanto não lhes deu atenção. Constatou-as e passou adiante, em direção ao banheiro. Minha mãe sorriu-lhes, tentando a primeira carícia, recusada talvez por inexperiência de afeto. Contudo, não as penetrou fundo, anexando-as inofensivas em seu esparramar de bondade sem precauções.
Foram as crianças as primeiras a hesitar, num recuo que seria de ofensa se pertencesse à gente grande. Crianças trocaram assombros frente à estranheza dos bichos nunca antes vistos. Por terem menos tempo de existência eram talvez as mais vulneráveis ao mistério. O viver constante demorado e desiludido dos outros, acostumados a dureza, não podena por caminhos diretos render-se à solicitação dos olhos delas. Mas a inexperiência das crianças levava-as ao extremo oposto de desrespeitá-las em sua individualidade, trazendo-as sem cerimônias para seu mundo de brinquedos. Perguntaram o nome dos bichos à empregada atarefada em passar café.
Coruja - foi a resposta seca, desinteressada, como se se tratassem de um saco de açúcar.
Aparentemente satisfeitas, compenetraram-se em cercá-las de uma ternura meio brusca. Aquela mesma dispensada às bonecas novas, que em pouco tempo restavam espatifadas em braços e pernas pelo quintal. Essa ternura bruta que destrói por excesso inábil de amor. Restou-me o consolo de ter sido o primeiro a identificá-las como realmente eram. Ou como eu as via, duvidando que a visão dos outros fosse mais correta, profunda ou corajosa.
O sol já alto da manhã as fizera abrir os olhos, investigando o ambiente. Creio que a brancura dos azulejos da cozinha as surpreendeu, pois em breve voltaram a encolher-se, alheias. Acostumadas como estavam aos vastos céus e campos percorridos dias inteiros preferiam buscar as coisas perdidas no calor dos corpos uma da outra. Prática, minha mãe informava: eram boas para comer baratas. E conscientes de sua liberdade interrompida, elas esperavam pela tarefa que lhes era destinada.
BATISMO
Logo caminhavam pela casa inteira, desvendando segredos. As crianças seguravam-nas, embalando-as como nenéns. Sem esperar, de repente, agente deparava com o olhar amarelo fixo duma -perturbando, interrogando, confundindo. A acusação muda fazia com que me investigasse ansioso, buscando erros. E punha-me em dia comigo mesmo, para me apresentar novamente a elas de banho tomado, unhas cortadas, rosto barbeado, cabelo penteado -na ilusão de que a limpeza externa arrancasse um aceno de aprovação. Mas eu sabia -embora, obstinado, recusasse a convicção até o último minuto -, sabia que seu olhar ultrapassava roupa, pele, carne, músculos e ossos para fixar-se num compartimento remoto, cujo conteúdo eu mesmo desconhecesse. Admitia-as envergonhado, mas hesitava em mostrar-me, criminoso negando o crime até a evidência dos fatos. Observava os olhares desviados dos adultos, e desviava também o meu, cirandando com eles na mesma negação.
As crianças disputavam a posse, é minha, não, é minha, manhê, a Claudia quer se adornar das corujas, mas elas passavam adiante, sabendo-se para sempre impossuídas, indecifráveis. Disputavam também a primazia de batizá-las, ignorando que o anonimato fazia parte de sua natureza. Nessa ignorância, chamaram nas Tutuca e Telecoteco. Pisquei um olho para elas, rindo da ingenuidade, tentando penetrar em sua intimidade, cada vez mais e mais negada. Ofélia e Hamlet, sugeriu um leitor óbvio de Shakespeare. Mas recusei-os ainda. Secretamente, reivindicava para mim seu batismo e posse, investigava almanaques em busca do nome que melhor assentasse. Chamá-las de alguma coisa seria dar um passo no caminho de seu conhecimento, como se sutilmente as fosse amoldando à minha maneira de desejá-las. Finalmente achei. Eram nomes de criaturas estranhas, indecifráveis como elas, já perdidas no tempo, misteriosas até hoje. Rasputin e Cassandra. Calei a descoberta, ocultei o batizado, apropriando-me cada vez mais de sua natureza, embora inconscientemente soubesse da inutilidade de tudo. Rasputin era menor, mais ágil, caminhava lento pelo parquê, os olhos sempre abertos, inesperadamente alcançando o encosto das cadeiras num vôo raso. Cassandra procurava os cantos escuros, os olhos constantemente semicerrados, uma perna encolhida, atitude de rosto-pendido-e-ar-pensativo.
A FOME
Passados os primeiros dias, principiaram a entrar na rotina. Vezenquando ainda me surpreendia a encará-las num duelo de mistérios. Eu, ocultando cuidadoso o meu, feroz na defesa, embora fosse sempre o primeiro a desviar os olhos. Recusei tocá-las. A maciez de seus corpos passava quente, impassível, de mão em mão, quando havia visitas. E só nessas ocasiões elas voltavam a espantar. Cumpriam honestamente sua tarefa de devorar baratas, mas recusavam qualquer
outro alimento. O homem que as trouxera informara a minha mãe de seu orgulho: feridas em liberdade faziam greve de fome até a morte. Com a iminência de seu suicídio, planejamos soltá-las no campo. Quase podia vê-las erguendo-se de leve num vôo contido, experimentando forças, as asas abrindo-se aos poucos numa subida lenta. Fundidas em azul, subindo, subindo.
As asas cortadas, porém, exigiam tempo para crescer novamente. Éramos obrigados a esperar. Desejei comunicá-las sua próxima libertação, mas a ineficiência de gestos e palavras isolou-me num mutismo para elas incompreensível. Éramos definitivamente incomunicáveis. Eu, gente; elas, bichos. Corujas, mesmo batizadas em segredo. Cassandra e Rasputin. Ofélia e Hamlet. Tutuca e Telecoteco. Qualquer nome não modificaria a sua natureza. Nunca. Corujas para sempre.
Mas a greve de fome persistia. Tão bem cumpriram seu serviço de comer baratas que em breve, creio, não restava mais nenhuma. Orgulhosas, passeavam seus estômagos vazios pela casa toda, a gente se olhando culpado, as mãos desertas de soluções. Não nos restava mais nada a fazer senão esperar. Por sua morte ou sua capitulação. Quem as visse, convictas em seu dês ilar faminto, poderia facilmente imaginá-las carregando cartazes de protesto. Contra quê? Contra quem? perguntávamos temerosos da resposta óbvia.
DESFECHO
Num começo de manhã ainda sem sol, igual a que as tinha trazido, Rasputin foi encontrado morto. O corpo pequeno e cinzento, já rígido, sobre os mosaicos frios da cozinha. Desviei os olhos sem dar nome ao sentimento que me invadia. Encolhida em seu canto, Cassandra diminuía cada vez mais. Olhos cerrados com força, eu tinha impressão que vezenquando seu corpo oscilava, talo de capim ao vento, quase quebrado.Até que morreu também. Digna e solitária, quem sabe virgem. Enterraram-na no fundo do quintal, uns jasmins jogados por cima da cova rasa, feita com as mãos.
Não fui ver a sepultura. Não sei se me assustava o mistério adensado ou para sempre desfeito.
.
.
Assinar:
Postagens (Atom)