Contos, crônicas e cartas

Blog ativado em: 16/maio/2010

sábado, 22 de janeiro de 2011

* Meio silêncio

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Águas de vidro à luz doentia da madrugada. Um vidro verde e fino refletindo longe o tremor das luzes da cidade. Aproxima lento o próprio dedo da ponta acesa do cigarro até senti-lo retrair-se num afastamento involuntário. O rosto do outro também parece feito de vidro. Um vidro ainda mais frágil que o da madrugada. Tem a impressão que se sair caminhando o ar irá quebrar-se em ruídos e estilhaços. A lua está tão bonita que dói por dentro, fala. Depois retrai-se como o dedo não queimado. Sempre o medo de chegar perto demais, de não poder voltar atrás, pensa, e solta devagar a fumaça pelas narinas.

"Quer ouvir música? meus dedos avançam até o rádio. Um gesto e três palavras para encher o silêncio. Que de tão repleto não cabe em si mesmo. Mas ele diz não. Sua resposta me enche de uma brusca vergonha. Como se tivesse descido mais fundo do que eu, dispensando as facilidades que também são fuga. A luz da lua bate nas pedras, elas brilham feito mil luas brancas, mil luas ásperas, mil luas à beira de um céu-rio sem estrelas. Está tudo quieto - há quanto tempo? - e meus ouvidos já não descosturam do silêncio o rumor dos carros passando distantes na estrada."

Olham-se, mas não se vêem. A escuridão não é uma parede, mas o silêncio os imobiliza na busca da palavra maior. Os dois fumam. As pontas acesas desvendam o escuro, e por instantes colocam um brilho avermelhado nas pupilas de ambos.

Perguntou se eu queria ouvir música. Não, eu disse sem pensar. Então ele calou como se tivesse ficado ofendido por eu recusar alguma coisa sua. Desconhecidos: como isso é, a um só tempo, terrivelmente bom e terrivelmente assustador. Pensar que eu estava só, no bar, esperando nem sei que, nem sei sequer se esperando: de repente os olhos me buscando no balcão em frente. Verdes. No primeiro momento foi a única coisa que percebi. Verdes, os olhos, atrás da fumaça, no meio das gentes, na frente do espelho. E o espelho refletindo o meu espanto. Depois vi os cabelos, a boca, os ombros. Mas era nos olhos, só nos olhos, que se fixava aquele mudo apelo, aquele grito. Nem sei. Aquela clara maldição. Saí, saiu. Não dissemos nada. Eu só tenho esperas. Ele traz a tranqüilidade de mais nada esperar.

"Um menino. Aquele ar espantado. Um pouco trêmulo. Cigarro atrás de cigarro. Tenho medo de tocá-lo. De quebrá-lo."

Eu disse: a lua está tão bonita que dói por dentro. Ele não entendeu. É tudo tão bonito que me dói e me pesa. Fico pensando que nunca mais vai se repetir, é só uma vez, a única, e vai me magoar sempre. Não sei, não quero pensar. Neste espaço branco de madrugada e lua cheia, preciso falar, e mais do que falar, preciso dizer. Mas as palavras não dizem tudo, não dizem nada. O momento me esmaga por dentro. O espanto esbarra em paredes pedindo exteriorização.

Você vê? as pedras parecem luas também. Ou estrelas, ele diz. Chão de estrelas. Vamos pisar nos astros distraídos? Ele ri. Nesse segundo cheio de riso alguma coisa se adensa. Nossos pés pisam em pedras. Mas por cima dos sapatos, sinto que são frias e duras, e sei que seu significado está em nós, não nelas. Uma vontade que a manhã não venha nunca. Vai voltar a grande busca. As noites vazias. Amargura de estar esperando. Repetir mil vezes: não quero esperar. E a certeza de que esse não querer já traz implícitas as longas caminhadas, o olhar devassando os bares, a náusea, os olhares alheios, a procura, a procura: seus ombros largos, um jeito de quem pisa mesmo em luas, não em pedras.

As sombras se projetam alongadas na praia deserta. Rumor de carros e faróis que devassam a noite sem achar. Pára de súbito, o corpo ferido por um sentimento indefinível. Precisa falar, precisa dizer.

Afinal, não foi para enfiar pérolas que você me trouxe aqui: eu digo. Ele está a meu lado. Então me olha sério, por um instante abalado, depois ri e diz: desista. Positivamente o cinismo não fica bem em você. E se com essa citação só quer mostrar que já leu Sartre, eu também já li. Por que feri? Por que feriu? Por que estamos dizendo coisas que não sentimos nem queremos?

"Um menino assustado querendo mascarar o medo com a agressividade. Um menino. Curvo-me para ele. Tão esguio que meus braços o rodeariam por completo. Por um instante ele ficaria inteiro preso dentro dos meus limites."

O rosto dele próximo do meu. Mais adivinho do que vejo o verde dos olhos deslizando pelas órbitas. A sua mão toca no meu ombro, sobe pelo pescoço, me alcança a face, brinca com a orelha, alcança os cabelos. O seu corpo cola-se ao meu. A sua boca vem baixando devagar, vencendo barreiras, colando-se à minha, de leve, tão de leve que receio um movimento, um suspiro, um gesto, mesmo um pensamento. Estou em branco como a noite. Ele me abraça. Ele está perto.

Ergue o braço lentamente, afunda as mãos nos cabelos do outro. E de súbito um vento mais frio os faz encolherem-se juntos, unidos no mesmo abraço, na mesma espera desfeita, no memso medo. Na mesma margem.



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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

* No centro do furacão

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Vórtice, voragem, vertigem: qualquer abismo nas estrelas de papel brilhante no teto.

Queria tanto poder usar a palavra voragem. Poder não, não quero poder nenhum, queria saber. Saber não, não quero saber nada, queria conseguir. Conseguir também não — sem esforço, é como eu queria. Queria sentir, tão dentro, tão fundo que quando ela, a palavra, viesse à tona, desviaria da razão e evitaria o intelecto para corromper o ar com seu som perverso. A-racional, abismal. Não me basta escrevê-la — que estou escrevendo agora e sou capaz de encher pilhas de papel repetindo voragem voragem voragem voragem voragem voragem voragem sete vezes ao infinito até perder o sentido e nada mais significar — não é dessa forma que eu a desejo. Ah essa palavra de desgrenhados cabelos, enormes olhos e trêmulas mãos. Melodramática palavra, de voz rouca igual à daquelas mulheres que, como dizia John Fante, só a adquirem depois de muitos conhaques e muitos cigarros. Eu quero sê-la, voragem.

Espio no dicionário seu significado oficial, tentativa inútil de exorcizar o encantamento maligno. O que leio, inquieta ainda mais: “Aquilo que sorve ou devora”. E vejo um redemoinho lamacento de areias movediças à superfície do qual uma única mão se crispa. Vórtice, penso, numa vertigem. Repito, hipnotizado: vertigem, vórtice, voragem. “Qualquer abismo” —continuo a ler. Os abismos de rosas, os abismos de urzes, e aqueles abismos à beira do qual duas crianças correm perigo, protegidas pelas asas do Anjo da Guarda. Os abismos de estrelas falsas no falso céu do teto do meu quarto, os abismos de beijos e desejos, o abismo onde se detém o rei daquela história zen para abrir o anel que lhe deu o monge, onde está guardado o condão capaz de salvá-lo — e o condão é a frase “isto também passará”. Sim, e leio então: “Tudo que subverte ou consome” — paixões, ideologias, ódios, feitiçarias, vocações, ilusões, morte e vida. Essas outras palavras de maiúsculas implícitas —vorazes, voragem—, abismais.

Eu estava lá, no centro do furacão. E repito palavras que são e não são minhas enquanto o porteiro do edifício em frente toca violão e canta, e a chuva desaba outra vez, e peço: por favor, me socorre, me socorre que hoje estou sentido e português, lusitano e melancólico. Me ajuda que hoje tenho certeza absoluta que já fui Pessoa ou Virginia Woolf em outras vidas, e filósofo em tupi-guarani, enganado pelos búzios, pelas cartas, pelos astros, pelas fadas. Me puxa para fora deste túnel, me mostra o caminho para baixo da quaresmeira em flor que eu quero encostar em seu tronco o lótus de mil pétalas do topo da minha cabeça tonta para sair de mim e respirar aliviado de por um instante não ser mais eu, que hoje e não me suporto nem me perdôo de ser como sou e não ter solução. Me ajuda, peço, quando Excalibur afunda sem volta no lago.

Ela se debruça sobre mim, me beija com sua grande boca vermelha movediça. Tenho medo mas abro minha boca para me perder.

Ela repete baixinho em meus ouvidos nomes cheios de sangue— Galizia, Ana Cristina, Júlio Barroso— enquanto contemplo o céu no teto do meu quarto, girando intergaláctico em direção a ER-8, a estrela de bilhões de anos, o cadáver insepulto para sempre da estrela perdida nos confins do Universo. Choro sozinho no escuro, e você não enxuga as minhas lágrimas. Você não quer ver a minha infância. Solto nesse abismo onde só brilham as estrelas de papel no teto, desguardado do anjo com suas mornas asas abertas. Você não me ouve nem vê, e se ouvisse e visse não compreenderia quando eu abrir os braços para Ela e saudar, amável e desesperado como quem dá boas-vindas ao terror consentido: voragem, bem-vinda.

Voragem, vórtice, vertigem: ego. Farpas e trapos. Quero um solo de guitarra rasgando a madrugada. Te espero aqui onde estou, abismo, no centro do furacão. Em movimento, águas.



O Estado de S. Paulo, 4/2/1987


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domingo, 16 de janeiro de 2011

* Entrevista

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CAIO FERNANDO ABREU SÓ PENSA EM ESCREVER



Caio concedeu ao Jornal da Tarde, de São Paulo, a entrevista com o título acima, conduzida pelo jornalista Wálmaro Paz e publicada em 11 de outubro de 1994. O escritor tinha acabado de voltar a viver no Rio Grande do Sul, na casa de seus pais no bairro de Menino Deus, em Porto Alegre. Por ocasião da entrevista, praparava-se para embarcar para a Alemanha, onde viria a lançar seu livro 'Onde andará Dulce Veiga?' na Feira do Livro de Frankfurt. Caio começa respondendo a uma pergunta sobre a aids, se considera a doença uma condenação.




Não, eu a vi até como uma bênção. Eu acho que quando supunha ser sadio é que estava doente. Agora que estou com aids me sinto muito saudável. Me veio uma visão das prioridades de minha vida. Como talvez eu tenha pouco tempo e muitas coisas para escrever, tive que ordenar as coisas. Muitas delas eu vinha adiando. Não desarrumava a minha mala: seis meses na Europa, seis meses no Brasil. Agora é como se alguém tivesse me dito: "Pára!". E eu parei.

Sinto uma certa urgência. Isto é porque nos sentimos o tempo todo muito imortais. Só no momento em que se passa por uma situação limite é que a gente se dá conta que a vida é breve. Aí você acorda: há coisas para fazer. Me lembro do Cazuza quando disse: "Eu vi a cara da morte e ela estava viva". Despertar essa noção de prioridade é a face boa da doença. Eu sempre fui ligado à filosofia oriental, ao budismo. Por isso creio que esta vida é ilusão. Acho que a coisa está ali. Do outro lado. O que nós chamamos de morrer é como nascer para outros planos. Além disso, já que isto aqui onde vivemos é tão fugaz, morrer deve ser algo prazeroso. Cada momento novo deve ser o mais bonito, o mais gostoso. Foi assim que eu me vi no hospital, em agosto, anotando os livros que eu ainda tenho para escrever.

Eu gostaria de reescrever o mito de Ícaro. Mas nunca fui à Grécia. Preciso ir para ver a luz da ilha de Creta. Não escrevo senão sobre o que conheço profundamente. Meus livros me perseguem durante muito tempo. Nunca tive nada a não ser a bagagem de minhas experiências. Aos 19 anos estava em São Paulo, aos 22 nas "Dunas do Barato", no Rio de Janeiro, fumando maconha; aos 24, lavando pratos em Estocolmo. Provei todas as drogas e nunca consegui me viciar. De uns anos para cá, até a maconha, que eu não considero droga, me dá náuseas. A única que ainda uso é o cigarro.


Caio fala sobre o caráter urbano de sua literatura:

Primeiro fui convidado pela Casa de Cultura de Berlim e pela Câmara Brasileira do Livro para lançar Onde andará Dulce Veiga?. Este é o meu grande sucesso na Europa. Já foi sucesso na França, na Itália e está se repetindo na Alemanha. Os europeus ficaram surpresos com um Brasil que não é exótico. Um Brasil que não tem mulatas, praias, carnaval. Um Brasil muito urbano. O romance se passa em São Paulo, uma cidade enfurecida, envenenada. Acho que foi isso que surpreendeu o europeu, acostumado com a imagem do Brasil de Jorge Amado.

Talvez seja porque eu nasci numa cidade muito pequena, Santiago do Boqueirão, onde "quem não é bandido é ladrão". Eu amo Santiago. Aliás, seu nome, na verdade, era Santiago de Ias Missiones. Sua história seria um novo romance se eu ainda tivesse tempo. É curioso minha literatura ser tão urbana. Minhas raízes são todas gaúchas, platinas.

Fui tirado de maneira muito rápida do Pampa para o centro urbano. Isso foi um choque muito grande. Em 1968, São Paulo ainda era uma cidade bucólica. À noite a gente passeava e sentava nos bancos da Praça da República. A avenida São Luís era muito chique, ali se tomava chá de tarde.


Sobre a quantidade de horas que dedica ao trabalho:

Muitas, mas agora minha vida está desordenada. Desde que soube que estava doente, em junho. Passei todo o mês de agosto no hospital, por isso dei eu mesmo a notícia no jornal. Fiquei estarrecido quando fui reconhecido numa banca no dia em que o JT publicou minha foto. Nunca quis vender minha doença. Não quero ser um autor vivo de obra póstuma. Este mês fiquei tranquilo na minha casa, mas agora já estou viajando de novo. Eu tenho trabalhado somente de manhã, revendo alguns textos. Quero me disciplinar, tenho muito o que escrever. O jornalismo me vampirizou.


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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

* Carlos chega ao céu

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E olhando aquele nuvenzal todo, comenta: “Gente, não é que virei mesmo eterno?”

Lá no céu, Cecília Meireles acorda cedinho. Mais cedo ainda do que de costume, que ela gosta de espiar os querubins tontinhos de sono. Mas hoje é dia especial. Cecília prende os cabelos, depois toma sua homeopatia (será Dulcamara? daqui não dá pra ver — pode até ser Stramonium) e lava devagar o rosto na água do arco-íris. Bebe seu chazinho de pétalas de rosa branca— amarela não, que dá azia. Escova devagar as asas, pluma por pluma. Só depois de bem bonita é que bate de leve na porta da nuvem ao lado. Dentro, um resmungo mal-humorado.

É Vinícius de Moraes, que virou a noite com o arcanjo Gabriel, conhecendo as bocas da zona da Ursa Maior, aquela louca pirada. Mesmo de ressaca, o Poetinha acorda. “É hoje” — sussurra Cecília na janela que Vinícius abre, ainda de pijama, as asas desgrenhadas, um bafo de estrelas cadentes que Cecília até disfarça, vira o rosto. Vinícius se espreguiça: “Ô xará, não é que é mesmo hoje?” E vai correndo se aprontar.

De braços dados, os dois vão bater à porta da nuvem de Manuel Bandeira. Mas nem era preciso. Manuel já está aceso, debruçado na janela, o nariz um pouco vermelho, fungando e tomando o café quente que Irene acabou de preparar. “É hoje” — dizem Cecília e Vinícius. Manuel funga: “E eu não sei, gente? Daqui a pouquinho”. Os três ficam em silêncio, o coração deles começa a bater no mesmo compasso (dodecassilabo? daqui não dá para ouvir direito). Então eles olham para baixo, em direção ao planeta Terra, que gira e gira, meio bobo de tão azul.

Aí uma nuvem dourada lá embaixo começa a ficar cada vez mais dourada, a chegar cada vez mais perto. Brilha tanto que os três quase se assustam, até reconhecerem São Pedro na direção. Que pena, não dá mais tempo de chamar Pedro Nava. A nuvem aterrissa, São Pedro abre a porta. Um pouco encabulado, atrapalhado com as asas, cabeça baixa. Carlos Drummond de Andrade desce e põe os pés no céu. “Não é que virei mesmo eterno?” — comenta, olhando aquele nuvenzal todo. Então vê os três. Tanto tempo, pois é, tanto tempo, pensei que nem vinha mais. Cecília, você não mudou nada, e essa barriga, Poetinha? não toma jeito, curou a tosse, Bandeira? tá mais magro, Carlos, e a Dolores? vai bem, mandou lembrança, qualquer dia chega por aqui. Irene traz mais café, bem preto, bem forte. Vinícius dá um jeitinho de virar no café uma talagada de uísque da garrafinha que carrega sempre, disfarçada sob a asa esquerda. Os quatro brindam, olhos molhados de saudade satisfeita.

Depois olham pro mundo aqui debaixo, que gira e gira, todo azul, assim de longe, e esperam um pouquinho, enquanto bebem o café, até conseguirem localizar, entre as nuvens, a América do Sul. Custa um pouco para encontrarem, quase no extremo sul dessa América, um pontinho luminoso chamado Porto Alegre e, bem no centro do coração dessa cidade, um velhinho de cara sapeca, parado em frente a um porta-retratos com a foto da Bruna Lombardi. É o Mario Quintana — eles sabem —, ou será o Anjo Malaquias? (isso nunca ninguém soube). Cecília, Vinícius, Manuel e Carlos sorriem mansinho, espiando Mario lá do céu, lá de cima.

Mas à Terra— tão azul assim, vista de longe, vista de cima—eles olham com pena. Sabem que pelo menos metade desse azul todo, depois que eles se foram, brota dali, do quartinho do Mario. Aí suspiram, tadinho, que barra! Um anjo torto vem pedir autógrafo de Carlos. “Desguia” — avisa Vinícius. — "Um chato, maior aluguel." Carlos pergunta de Maria Julieta, Manuel diz que leva ele até lá. Cecília tem um almoço com Clarice e Ana Cristina. Vinícius não sabe se dorme mais um pouco ou se pega o Leon Eliachar para irem até a casa da Elis — será que já acordou, a diaba? —, tá com samba novo na cabeça, precisa cruzar com a Clementina.

Cá embaixo, no centro do coração gelado do pontinho luminoso chamado Porto Alegre, pleno agosto, Mario Quintana abre a janela, olha para cima e dá uma piscadinha.

Danados, pensa, que danadinhos. O dia parece tão cinzento que não resiste à tentação de escrever um poema. Bem curtinho, bem feliz. Entre lá e cá, girando e girando sem parar, feito louca. A Terra também não resiste. De puro gosto, fica ainda mais azul—você viu?



O Estado de S. Paulo, 26/8/1987


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quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

* Fuga

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Eles tinham seis anos de idade e iam fugir juntos. Lento, o menino enfiou o pião no bolso, sua única posse, e encaminhou-se para a porta. De dentro chegou a voz da mãe num prenúncio de reclamação está quase na hora do jantar, onde é que você vai? Não respondeu. Em silêncio, começou a concretizar o que há dois dias se desenrolava dentro dele. A segurança da coisa construída em imaginação durante horas de quietude emprestava a seus passos um precisão até então inédita, permitindo-lhe a audácia de não responder, ignorando eventuais palmadas. O trinco quase machucou a mão no ato de fechar a porta, mas ele já começava a criar das coisas que formavam "o que ficava". E o que ficava era tanto que praticamente não tinha nada além de: um pião no bolso e uma idéia na cabeça.

O morrer do sol colocava uma cor também de fuga nas casas, nas coisas, nas pessoas que cruzavam numa melancolia de anoitecer. Em breve as sombras se afirmariam em escuro e ele não estaria mais ali. A idéia poderia quebrá-lo por dentro, porque era duro de repente não estar mais num lugar. Mas ele nem se machucava, há tanto já adivinhara os movimentos interiores prevenindo os receios, precavendo-se contra a série de sentimentaloidices que se amontoariam bruscas sobre seu coração de seis anos de vida. Por tanto, estava preparado. Dentro do tempo que vivera, dois dias era uma longa preparação de esquecimento que se impusera com método, recusando ternuras, comida na boca, cafuné antes de dormir. Estava todo delineado. E fugia.

Caminhava devagar, a coisa remexendo-se com gosto dentro dele. Num esquecimento de que era insípida, quase estalava a língua de puro prazer. Mãos nos bolsos, cabeça baixa, ah nunca se sentira tão definitivo. Era seu primeiro crime, e tão longamente premeditado que não havia espanto nem temor. Como um profissional da fuga, ia indo pela calçada comprida, rente ao muro. O sol espichava sua sombra para trás, vezenquando ele se voltava para ver se ela ainda o acompanhava. Ainda. Expressava seu alívio em forma de suspiro, e prosseguia. Permitia-se apenas esse medo, o de estar sozinho. Mas aquela sombra imensa e achatada contra o cimento não deixava de ser uma segurança, embora disforme. Pegou uma pedrinha branca e começou a riscar o calçamento. Depois enfiou-a no bolso, numa sabedoria de coisa decidida: poderiam segui-lo através do risco fino, irregular. Ainda mais seguro, olhou quase vesgo de satisfação para uma senhora com a bolsa grávida de compras. A mulher encarou-o com desconfiança. Ele parou, o medo se transformando em desafio nos olhos que meio furavam a natureza da mulher. Suspensos no meio da tarde, mediam-se expectantes. Pensou em correr, depois riu um risinho cínico que aprendera na televisão - ela não sabia de seu crime. Então esperou. Até que a mulher abriu a bolsa e estendeu-lhe dois biscoitos. Balbuciou um agradecimento de espanto com tanta inocência humana e enfiou-os no bolso, junto com a pedrinha branca. A silhueta da mulher morria na esquina quando ele se interrogou, numa primeira incompreensão. Saíra de casa apenas com o pião, agora já tinha dois biscoitos, uma sombra, uma pedrinha branca e um acontecimento. Fugir não era então ir se despojando de coisas? Não entendeu, mas o poste que marcava longe o lugar do encontro suspendeu a dúvida. Preocupado, encaminhou-se para lá.

Não via a menina. Correu para o poste, investigou as pessoas que passavam mas nenhuma tinha jeito-de-menina-que-ia-fugir. Coçou a cabeça. Num desânimo, esperar. Acomodou a irritação no meio-fio, tirou as posses do bolso. Começava por um biscoito, depois brincava com o pião, depois o outro biscoito, depois desenhava no chão com a pedrinha branca, depois pensava na coisa acontecida. Detestava a improvisação, por isso ficou um pouco abalado com a ausência da menina e teve que planejar ações em que não havia pensado. Começava a desconfiar seriamente da honestidade do sexo oposto. Acumulou uma série de queixas que abalaram o prestígio da menina, e preparava-se para pensá-las quando o biscoito sobre a calça fez um jeito fascinante, assim meio pedindo para ser comido. Havia-se recusado tantas coisas nos últimos dois dias que guardava mesmo um pouco de fome formando um espaço branco no estômago. Rompendo com o planejamento, devorou voraz os dois biscoitos, depois misturou pedaços de unhas aos farelos restantes. Quase saciado, girou o pião de leve no cimento. Um menino que passava olhou fixo, invejando. Lembrou da impontualidade da menina e perguntou objetivo:

- Quer fugir comigo?

Inexperiente dessas coisas, o outro arregalou os olhos:

- Quê?

- Quer fugir comigo?

- Pra onde?

- Não sei ainda. Qualquer lugar.

- Pode ser Vênus?

- Pode.

- E Gotham City?

- Pode.

- E. ..e. ..(a geografia falhava).

- Quer ou não quer?

- Não sei, o que é que você me dá se eu fugir com você? .

O menino investigou as posses desfalcadas. Percebeu o brilho de cobiça nos olhos do outro:

- O pião. Quer?

O outro fez cara de dúvida:

- Sei não. Isso presta?

- Quer ou não quer? ("É pegar ou largar", dizia o gangster na televisão).

- Quero.

Estendeu a mão. O menino fez um movimento esquivo de dissimulação.

- Agora não. Só depois que a gente chegar lá.

- Lá onde?

- No lugar, ora.

- Que lugar?

- O lugar para onde agente vai fugir .

- Mas você não disse que não sabe onde é?

- Disse.

- Então pode levar anos.

- E daí?

- Dai que eu quero o pião agora.

Desacostumado a argumentar, estendeu o pião. Antes que pudesse fazer qualquer gesto, o outro já ai longe, risada dobrando a esquina, o pião roubado, a promessa não cumprida. Todo magoado com a desonestidade alheia voltou a pensar na menina. Encaminhou-se para a casa dela. Bateu devagar na porta. A mãe da menina espiou pela janela.

- A Lucinha está?

- Não. Foi no aniversário da menina aqui ao lado.

Meio que tropeçou no inesperado da coisa. Devia ter ficado pálido, porque a mãe-da-menina-que-ia-fugir dobrou-se para ele, perguntando se estava sentindo alguma coisa. Estava. Mas como desconhecia aquela onda verde bem claro que se quebrava incompleta dentro dele, não teve palavras para explicar.

Disse não, não tenho nada, e foi saindo de cabeça baixa. Já não só duvidava da menina, mas principalmente de si próprio. Parecia-lhe um pouco culpa sua aquele amontoado de desencontros. De dez minutos para cá aconteciam coisas tão incompreensíveis que estava quase desistindo. Por uma questão de dignidade, bateu na porta da casa de menina-que-estava de-aniversário, que apareceu de vestido cor-de-rosa perguntando se ele tinha trazido presente. Ele desentendeu um pouco mais, ainda assim fez voz firme e pediu para falar com a menina que-ia-fugir. Com o maior cinismo do mundo, ela brotou de repente duma nuvem de babadinhos, a cara limpa, o cabelo penteado com uma fita - ela, a falsa, que vivia com os fios na boca. Mais grave: um copo de guaraná e uma cocada nas mãos. Nunca a vira tão Lucinha em toda a sua vida.

Teve vontade de dar um tiro nela. Mas estava tão desarmado que só conseguiu perguntar com voz meio irregular:

- Você não ia fugir comigo?

- Ia - disse a menina mordendo a cocada. E ai! O espaço branco da fome cintilou dentro dele.

- Esperei você até agora. Por que que você não foi?

- Por causa do aniversário, ué.

- E o que que tem isso?

- Tem que fugir a gente pode todos os dias, mas aniversário é só de vezenquando.

Tinha selecionado uma porção de adjetivo pejorativos para jogar em cima dela, mas o pretexto era de uma lógica tão irrecusável que ele ficou parado uma porção de tempo, sentindo o tudo que preparara lento em dois longos dias de meditação ir-se desfazendo como a cocada na boca da menina.

Ela olhava para ele, ele pensava na frase, pensava, pensava, aí, o espaço branco aumentando por dentro, uma baita raiva da menina, da mulher que dera os biscoitos, do moleque que fugira com o pião, vontade de bater neles todos ou, na impossibilidade, sapatear até ficar roxo e a mãe chamar o médico num susto. Mas os barulhos da festa cresciam lá dentro, o sol morrendo dourava ainda mais o guaraná, o espaço em branco aumentava até o não-suportar-mais. Indeciso ainda, virou o pé leve no chão. Até que deixou de lado o pudor e perguntou:

- Será que ela deixa eu entrar sem presente?


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quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

* A Luciano Alabarse

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Paris, 28 de abril de 1994.


Luciano, querido,
escolhi esse papel especial para você — tem de todas as cores, é reciclado e baratíssimo. Ah, o Primeiro Mundo — que está mais Terceiro do que nunca, caindo pelas tabelas de desemprego, crise daqui, crise dali. Espero que minha carta chegue. Pedi teu endereço à mãe, mas ela — ai, a idade — não mandou CEP e tudo e tal.

Te escrevo com o pé na estrada. Parto Domingo para Lisboa, que não conheço — bem nigrinha, vou de ônibus, 25 horas, c‟est pas grave, j‟espére... e volto a Paris dia 15 de maio só para pegar malas e correspondência, dar uma geral nas tropas. Aí parto para a Noruega, visitar Augusto, que vive lá há 20 anos, casado — de papel passado — com um norueguês, Henning (também conhecido como Gilda). Ambos me convidam para a colheita de narcisos da primavera. A frescura é tanta que, claro, não resisto.


Enfim: estarei chegando a SP dia 8 de junho. Fone/Fax — anote lá — iguais: (011) 283.13.33. Pnsei em ir logo a Porto, mas acho que só vai dar no fim de agosto, porque tenho muita, muita costura pra entregar em Sampa.

Parto de Paris um tanto fatigado, trabalhei muito na divulgação dos livros, mas contente. Deu certo! Fiz dois programas de TV — um só de escritores, outro com um grupo de “artistas” — este segundo, imagina, era com Isabella Rosselini lançando seu filme État second, ela e Jeff Bridges. A Rosselini é simpática, simples e um tanto quanto larga nos quartos... Saíram críticas ótimas em jornais e revistas, a melhor no L‟Express, a Veja francesa com ética. Dulce Veiga está indicado para o prêmio de melhor romance estrangeiro — prêmio Laura Battaglion, 100 mil francos, metade para o autor, metade para o tradutor. Acho que não levo — sai em
junho — porque tem gente tipo Philip Roth e Paul Auster no páreo, mas anyway já valeu a indicação — são só 10.

Enfim, trabalhei — trabalhei, fui a duas ou três boates gays muito chatas e iguais, fui muito a cinema (fique atento a Short cuts, de Robert Altman, e Gilbert Grape, de Lasse Halstrom) e sobretudo estou numa relação maravilhosa comigo mesmo. Meu francês soltou-se, falo maravilhosamente e faço tudo com o maior desembaraço e sozinho. Alguma coisa em mim parece que laceou, eu era tão cheio de medos. Aprendi também a não contar muito com os outros: na medida do possível, faço tudo só. Dá mais certo.

Mas no meio de tudo isso, sinto o tempo todo uma enorme vontade de ficar só e escrever, escrever, escrever. Pareço a Orlando da Virginia Woolf (que Isabelle Hupert faz no teatro aqui: não havia entradas!) carregando seu manuscrito inacabado séculos afora... Até hoje não sei o que você achou do meu O homem e a mancha — que o Carlinhos Moreno tava de saia-justa para montar em SP. Imagina que ele me disse que achava bom demais para ele?

Meu anjo da guarda sempre forte me jogou no caminho de um pianista brasileiro — Braz Velloso — que me emprestou seu ap. enquanto foi ao Rio ver o namorado. Ouvi muita, muita Callas. Embaixo mora outro pianista brasileiro, Rafael Hime, primo de Francis, que também tem sido um anjo. Muitos anjos, sim, mas para manter o equilíbrio também muitos, muitos demônios. Na verdade, até poucos: acho que — graças a Deus — têm medo de moi.

Falo sempre em nossa deusa Calcanhoto (outro dia falei nela numa crônica que enviei para o Estadão) e ouço-reouço sempre, quase sempre na estrada, apoiado em alguma vidraça de ônibus, trem ou avião, e choro sempre com “eu ando pelo mundo prestando atenção em cores”. Pedi ajuda a algumas pessoas no Brasil para recuperar endereços, mas não recebi respostas. Quem me escreveu mesmo foi Lygia Fagundes Telles, e minha mãe — que mãe é mãe.

Mas não me queixo. O amor que sinto pelos outros quase sempre é suficiente, não precisa nem ter volta.

Será a sabedoria? Ou apenas a meia-idade? A propósito desta, ando com altas dores no lombo. Totalmente descadeirado. Divido receitas com Falleiro, que está aqui para escrever sua tese de mestrado e também começa a sentir os, digamos, rigores do tempo. Ah, Cronos!

Se alguém perguntar por mim, diga que estou noivo de Isabelle Adjani — mas não fiquei metido e mando beijos. Espero que sua vida, amores, projetos, trabalho, saúde e tudo o mais estejam luminosos, cheios de energia. Felicidade, je t‟embrasse trés fort.



.......................................................................................................Caio F.



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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

* Madrugada

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Desconhecidos - mas somente antes do encontro. Que acontecera no bar. Então, unidos pela mesma cerveja, pelo mesmo desalento, deixaram que o desconhecimento se transmutasse naquela amizade um pouco febril dos que nunca se viram antes. Entre protestos de estima e goles de cerveja depositavam lentos na mesa os problemas íntimos. Enquanto um ouvia, os olhos molhados não se sabia se de álcool ou pranto contido, o outro pensava que nunca tinha encontrado alguém que o compreendesse tão completamente. E a talvez porque não trocavam estímulos, apenas ouviam com ar penalizado, na sabedoria extrema dos que têm consciência de não poder dar nada. Uma mão estendida áspera por entre os copos era o consolo único que se poderiam oferecer.

Com a lucidez dos embriagados, haviam-se reconhecido desde o primeiro momento. Ou talvez estivessem realmente destinados um ao outro, e mesmo sem o álcool, numa rua repleta saberiam encontrar-se. O fulgor nos olhos e a incerteza intensificada nos passos fora a pergunta de um e a resposta de outro.

O primeiro estava ali sentado há duas horas, mas lá fazia parte do ambiente. Um pouco porque seu emo era de cor igual às paredes do fundo, mas principalmente porque ele era todo bar. Na forma, no conteúdo. Mais exatamente, aquele bar em especial, que tinha uma coruja no nome e nos desenhos da parede. Ave que ele imitava involuntário, nos ombros contraídos, no olhar verrumante. Olhar que lançou sobre o outro no momento da entrada. Este vinha ainda incerto, como se buscasse. E sua imprecisão atingiu o paroxismo quando no choque de olhares. Vacilou sobre as pernas, a roupa parecendo mais amarrotada, subitamente um braço se descontrolou atingindo a mesa mais próxima, varrendo-a quase com doçura. A doçura dos que de repente encontraram sem estar de sobreaviso. A loura oxigenada deu um grito e o homem que a acompanhava aprumou-se em ofensa, pronto a atacar, macho pré-histórico protegendo a fêmea em perigo. Ainda perdido no espanto, o segundo bêbado não reagiu. Suas mãos estavam cheias apenas de perplexidade, não de ódio. Nesse momento, o primeiro bêbado enristou seu metro e noventa de altura, até então diluído no encolhimento de coruja em que se mantinha. Sem dizer palavra encaminhou-se para o amigo - pois que seus olhares haviam sido tão fundos que dispensavam ritos preparatórios antes de empregar o substantivo e tomando-o pelo braço, levou para a mesa. O acompanhante da loura acalmou-se de imediato, enquanto esta ficava ainda mais oxigenada no despeito.

E os dois, satisfeitos com a inesperada oportunidade para a comunicação, foram objetivos ao assunto. Estavam sós. A mulher de um estava viajando; o outro não tinha mulher. Mas tinha noiva, e desconfiava que ela o andava traindo. O outro maravilhou-se com a coincidência, pois tinha quase certeza ser a viagem da mulher apenas um pretexto para encontrar com o amante. Unidos na mesma dor-de-cotovelo, sua amizade esquentou a razão de cem graus por segundo. Ambos estavam insatisfeitos nos respectivos empregos. Operários, planejaram greves, piquetes, sindicatos, falaram mal do governo. Um deles, que tinha lido uma frase de Marx num almanaque, citou-a com sucesso. E o engajamento era outro elo a reforçar a corrente já sólida que os unia. De elo em elo, ligavam-se cada vez mais. A tal ponto que simplesmente não cabiam mais em si mesmo. Os copos colocavam-se em pé, oscilantes como se estivessem em banho-maria, os cabelos despenteados, rostos vermelhos, olhos chispantes - furiosos e agressivos no diálogo. Nas outras mesas, seres provavelmente frustrados no desencontro farejaram briga e ergueram as cabeças, espreitando. Não sabiam que, por deficiência de vocabulário, a amizade não raro se descontrola e pode levar ao crime. Apenas os dois pressentiram isso, tão sensíveis haviam-se tornado no investigar sem palavras do terreno que ora pisavam. Tudo neles era recíproco - e o medo de se ferirem cresceu junto para explodir num silêncio súbito. Então se encararam, mais desgrenhados do que nunca, e com tapinhas nas costas voltaram à delicadeza dos primeiros momentos.

Mas os frustrados que enchiam o bar estavam achando aquilo um grande desaforo. Não era permitido a duas pessoas se encontrarem num sábado à noite e, ostensivas, humilharem a todos com sua infelicidade dividida. O desespero não repartido dos outros era uma raiva grande, expressa nos gestos de quem não suporta mais. Com a sutileza dos donos de bar, o dono deste sentiu a hostilidade crescente. E medroso de que o choque resultasse em prejuízos para si, colocou-se sem hesitação ao lado da maioria. Dirigiu-se aos dois operários e pediu-lhes que se retirassem. Apoiado em seu metro e noventa, um deles quis reagir. Mas o outro mais fraco e, portanto menos heróico e mais realista, advertiu-o da inconveniência da reação. E olharam ambos os outros desencontrados pelas mesas - subitamente encontrados no mesmo ódio -formando uma muralha indignada. O mais alto, menos por situação financeira do que por força, caindo em si fez questão absoluta de pagar todos os gastos. De braço dado, saíram para a madrugada.

Fora depararam com o frio e o brilho desmaiado das luzes de mercúrio. Encolheram-se devagar, as desgraças mútuas morrendo em calafrios. O domingo vinha vindo. Eles não sabiam o que fazer das mãos cheias de amizade e lembranças das mulheres ausentes. Bêbados como estavam, a única solução seria abraçarem-se e cantarem. Foi o que fizeram. Não satisfeitos com o gesto e as palavras, desabotoaram as braguilhas e mijaram em comum numa festa de espuma. Como no poema de Vinícius que não tinham lido nem teriam jamais. Depois calaram e olharam para longe, para além dos sexos nas mãos. Nas bandas do rio, amanhecia.


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