Contos, crônicas e cartas

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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

* A Sérgio Keuchgerian

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Na cidade alagada
27 de janeiro de 1987
16h 20m

Sérgio, querido,

saudade & saudade & saudade. Fico à espera do teu mapa, que não me chega, então me adianto e te escrevo. Esperava o mapa também para descobrir o dia do teu aniversário. Não lembro. Já foi? está sendo? vai ser?

Cinza & relâmpagos outside. Paisagem dramática. Edifícios recortados contra o céu cortado de relâmpagos. Eparrê-yê, Iansã! Caos, catástrofe. Chegar ontem no jornal foi igualzinho a um comercial de Camel. Até curti.

Sinto uma falta absurda de você. Ficou um vazio que ninguém (pre)enche. E penso e repenso e trepenso em você por aí. Deve ser tão árido. Horizontes infinitos? Mas fique tão tranqüilo — e humilde, e confiante — quanto possível. É só uma fase, só um estágio. Vai passar. Lembro dos meses que passei em Estocolmo, numa cidade universitária — Kungshambra — onde só havia suecos, dinamarqueses, finlandeses, noruegueses. Teve uma noite de lua cheia — e era midsummer, pleno verão, não havia noite, só duas horas de penumbra crepuscular — que saí a caminhar em busca de alguém para conversar. Dizer ôi (ou hei, em sueco), ou Inte präte svenska (“não falo sueco”) que fosse. E nada, não encontrei ninguém. Caí (pode?) no meio do asfalto chorando. Arranhei as unhas no asfalto de pura solidão. E aquela lua cheia enorme lá em cima, e os bosques atrás, com o castelo de verão do rei — tudo parecia sinistro. Parecia que eu ficaria para sempre lá, ao lado do Pólo Norte, e que isso não tinha menor sentido.

Mas passou. Hoje te conto. E lembro daquela história zen, o rei que pediu ao monge um talismã que o protegesse de qualquer mal. O monge deu ao rei um anel, com a recomendação de abri-lo só em caso de extremo perigo. Um dia, o castelo foi cercado pelos inimigos, e o rei encurralado numa torre. Ele abriu o anel. Dentro, havia um papelzinho dobrado. Ele abriu o papeizinho e leu uma frase assim: “Isto também passará”.

Tenho sofrido um pouco. R. veio de Porto Alegre, no sábado. Tivemos um dia lindo — com direito a sauna Nikkei e massagem (Akira sapateou em cima de mim, me virou para a esquerda e para o avesso). Jantamos num japa, saímos duas xuxas para ver Drácula. E então, em casa, ele me rejeitou mais uma vez. Me adora, morre de carinho & respeito & admiração. Mas: SEXO NÃO. Eu fiquei chorando no escuro, enquanto ele decidia dormir na sala.

Eu fiquei olhando aquelas estrelinhas no céu do quarto, sem entender nada. Tive vontade de ir de mansinho até a cozinha e abrir o gás. Talvez matá-lo também? Tive vontade de pegar uma faca na cozinha e enfiar no coração dele, depois no meu. Tive vontades Maria Bethânia, vontades Maysa, vontades Fassbinder — teatrais, melodramáticas. Me limitei a escovar os dentes, me masturbar pensando nele, e dormir. No dia seguinte, joguei um I Ching, e perguntei o que fazer. Saiu o abismal, Agua sobre Água: a imagem de um abismo. Como no fundo do abismo, a água escorre, você deve escorrer sem parar, para a frente. Mantenha a sinceridade no fundo de seu coração. Mantive. Tenho mantido. Nos dois últimos dias me baixou o irresistível & simpático Tio Caio. Aquele serviçal, paciente, tolerante — que compra flores e frutas, lava a louça, quebra galhos. Você sabe.

Faço o papel sem dificuldade. A água flui, vai para a frente. Isto também vai passar. Mas não compreendo. Então um lado meu pensa: é sina, é fado, é destino, é maldição. Outro lado pensa: não, é mera neurose, de alguma forma sutil devo construir elaboradamente essa rejeição. Crio a situação, e ouço um não. Desta vez, eu tinha tanta certeza. E penso: os deuses me traíram, os búzios me atraiçoaram, as cartas me mentiram. E me sinto velho e cansado, e tiro toda a roupa preta guardada nos armários — e tudo não deixa de ser teatral, meio engraçado. Mas há também uma dorzinha verdadeira no fundo. A pequena gota de sangue, como um rubi. E me baixa o peso do tempo, e dos meus 38 anos, e dos cabelos caindo, e de tudo indo embora e fugindo e se perdendo — e o amor sem acontecer, quando estou assim todo maduro, e limpo, e pronto, e luminoso como uma maçã no galho, pronta para ser colhida. Ninguém estende a mão para a maçã, pouco antes de começar o processo de apodrecimento.

Você conhece essas queixas, e eu não peço nenhuma palavra de consolo sobre elas. Tá tudo bem assim. Só que me rouba o sentido — entende? — ou a ilusão de sentido que quero ter da vida, e que é essencial para a minha sobrevivência. Não faz sentido ouvir esse não. Ou eu não estou vendo — agora — esse sentido? Pode ser. Mas eu tinha/tenho tanta sede dele. Me sinto o camelo do poema de Cecilia Meireles, mastigando sua imensa solidão.

E penso: sou feio, então, sou desagradável, é isso, é isso — é só isso, sou incapaz de inspirar qualquer erotismo em alguém. Fico me ferindo, mas também dou voltas e penso: não, não é nada disso, sou legal, sou mansinho, sou até bonitinho. E penso tantas e tantas outras coisas, mas o real não se modifica. E o real, parece meio grosso dito assim, mas no fundo é isso mesmo — o real é: R. não quer trepar comigo de jeito nenhum.

Como dói.

Mas tenho anotado histórias, anotado sem parar. Está vindo algo por aí, está se avolumando. Talvez seja o único jeito, não? Minhas ficções não me rejeitam. Talvez seja sina, essa de escrever, e então ter as respostas da vida real na vida recriada, nunca na própria vida real — como as pessoas que não criam costumam ter. E deve estar certo assim, deve haver uma ordem e um sentido nisso.

Terminei As brumas. Tive um impulso quase incontrolável de ligar pra você às três da manhã. Mas tua mãe me disse que o telefone é na portaria, precisam te chamar no quarto. E eu achei que ia ser muita barbarização, fiquei quieto. Mas não encontrei ninguém para falar sobre. Fiquei impressionado, fiquei machucado com a decadência, a loucura, a solidão do final. E tenho medo de ter a sina de solidão de Morgana. E lindo demais, e terrível. Fico filmando na minha cabeça. Isabelle Adjani como Morgana, Christopher Lambert como Arthur, Kim Basinger como Guinevere — não encontro Lancelot, mas podia ser Richard Gere? Muito pêra, talvez Sean Penn, com os cabelos tingidos de preto? E Harrison Ford teria que ter um papel. Penso em Irene Papas como Viviane (ou Raven). Te parece bom? Claro que seria caríssimo. E muito chique, ‘magináh!

Quando você vem? Quando te vejo? Quando jantamos juntos em qualquer lugar? Manda teu mapa logo, te mando um cademinho de trânsitos. R. descobriu que a hora de nascimento dele estava errada: portanto ele é Libra, ascendente em Touro, Lua em Touro, Vênus em Virgem. A combinação perfeita para mim, que tenho Sol em Virgem, ascendente Libra, Lua em Capricómio e o nó lunar em Touro. Touro é a minha casa VII e VIII, a do casamento, e da sexualidade. E por tudo isso, entendo ainda menos.

Pense em mim, me mande mentalmente coisas boas. Estou tendo uns dias dificeis — mas nada, nada de grave. Penso em você com carinho, com amor, com saudade. Me deram trabalho. Tenho que parar.

Te amo muito. Beijo,

Love
Love
Love

...............................................................................Caio F.


PS 1 — Maurício vai amanhã — mando por ele. É ótima pessoa: curtam-se.

PS 2 — Falei com sua mãe, Ela mandou dizer que está morrendo de saudade — e só não liga todo dia pra não ficar ainda mais saudosa.

PS 3— Não se preocupe comigo. Ontem, eu tava meio amargo. Tá tudo bem! Afinal, o que é SEXO?

Beijos
Beijos
Beijos
Beijos
Beijos


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Um comentário:

Eliete disse...

Suzi, como é bom ler o seu blog. Fico cada vez mais apaixonada pela delicadeza de sentimentos de Caio Fernando. Você com estas postagens nos dá oportunidade de conhecer uma pessoa especial.Obrigada, Eliete