Para Natália Lage
— O sol está se pondo, você viu? A parte de baixo dele já começou a
desaparecer no horizonte.
— Então a esta hora deve estar amanhecendo no Japão.
— Onde?
— No Japão. Do outro lado do mundo.
— Ah, os antípodas.
— Pois é, os antípodas.
— An-tí-po-da é uma palavra horrível, não?
— Melhor que artrópodes.
—Hein?
(silêncio)
— Eu quero me matar. (silêncio)
— Eu estou apaixonada.
— Você quer se matar porque está apaixonada?
— Acho que sim.
— Mas você só tem dezesseis anos.
— E o que que tem? Não sei quem foi que disse que a gente devia se matar
na adolescência, quando as coisas ainda são bonitas.
— As coisas não são bonitas? Não. Odeio cada pedra desta cidade. Cada
porta. Cada casa. Cada cara que passa por mim na rua. Odeio, odeio.
— Mas não se mate.
(silêncio)
— Por favor.
— Por favor o quê?
— Não se mate.
— Ah, esquece. O sol está indo embora. Só falta um terço dele.
— Ninguém se mata por amor.
— Agora só tem uma lasquinha dele, bem vermelha.
— Olha, uma vez eu li um cara, um escritor chamado Cesare Pavese, que
dizia assim: “Ninguém se suicida por amor Suicida-se porque o amor, não importa qual seja,
nos revela na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado desarmado, no nosso nada “.
— E o que aconteceu com ele, esse tal Cesare?
— Se matou.
(silêncio)
— Pronto. Foi-se. O que era mesmo que você estava dizendo?
— Não importa.
(silêncio)
— Agora o ventinho.
— Hein?
— O ventinho, você nunca reparou? Logo depois que o sol se põe sopra
sempre um ventinho da banda do rio.
— Nunca notei.
— Olha só: está vindo. Sinta. Veja as folhas daquela acácia ali, as bem de
cima, como se movem.
(silêncio)
— Um dia até pensei em perguntar ao professor por que sempre vem esse
ventinho. Depois eu não sabia se perguntava pro professor de Física ou de
Geografia. Achei melhor não perguntar nada. Você sabe?
— Bom, acho que tem que ser alguém que entenda de Meteorologia.
— Não, não: você sabe por que vem esse ventinho?
— Sei lá, acho que deve ser o ar que esfria e se desloca, produzindo o
vento. Alguma coisa assim.
— Ia ser irreparável...
— O quê?
— Dar um bandeira dessas, cara. Imagina só, perguntar sobre ventinhos
para um monstro daqueles.
(silêncio)
— Como foi que você disse?
— Eu disse alguma coisa?
— Disse sim. Sobre um tal ar frio.
— Ah, é. Ele se desloca e aí produz o vento.
— Legal. Que professor era aquele que você acha que entende disso?
— Meteorologia?
— Mas não tem aula disso.
— Então não tenho idéia.
(silêncio)
— A essa hora alguém deve estar indo dormir de porre no Japão.
(silêncio)
— Deve ser engraçado japonês bêbado, com aqueles olhinhos. Devem ficar
menores ainda, e tão apertadinhos que nem dá pra ver que estão vermelhos. O que
é que você acha que japonês bebe?
— Acho que saquê.
— Saquê não é chinês?
— Então uísque, gim, vodca, cerveja, vinho, essas coisas que todo mundo
bebe.
(silêncio)
— Coisa mais besta.
— O quê?
— Beber essas coisas. Porre de japonês devia ser diferente.
— Porre é porre. Diferente como?
— Ah, sei lá. Antípoda, por exemplo. Um porre antípoda.
(silêncio)
— Deve ter alguém acordando também.
— Hã?
— No Japão, deve ter alguém acordando lá. O que é que você acha que
japonês faz quando acorda de manhã?
— Não sei. Lava a cara, acho. Depois escova os dentes, toma café.
— Café não. Toma chá.
(silêncio)
— E deve também ter alguém com insônia. Bem agora, na hora que os
passarinhos começaram a cantar, deve ter um japonês com insônia olhando o dia
nascer. Embaixo da minha janela tem um bem-te-vi que canta sempre lá pelas cinco
da manhã. Será que no Japão tem bem-te-vi?
— Deve ter.
— Rouxinol eu sei que tem. Não tinha uma história de um imperador e um
rouxinol?
— Não me lembro bem, mas acho que aquele imperador era chinês.
— Ah, mas tudo que tem na China deve ter no Japão.
— É, pode ser.
— Arara eu sei que não tem. Nem na China nem no Japão.
(silêncio)
— Quero pintar a minha janela daquela cor lá
— Qual, a rosa?
— Não, não. Aquela um pouco mais pra direita da última janela à esquerda
no alto daquele prédio grandão aqui em direção ao meu dedo indicador. Está
vendo?
— Acho que sim. Mas não sei se é a mesma que eu estou pensando.
— Aquela, entre o rosa e o azul escuro.
— Roxo, você quer dizer.
— Não, não é assim tão-tão. É mais uma entrecor, fica no meio do roxo e
do azul-escuro. Mas muito mais pro lado do azul do que do roxo. Olha bem: você
vê que até tem um pouco de rosa, mas tem uns dois ou três poucos mais de azul,
entende?
— Índigo?
— Ah, eu gosto desse som: in-di-go. Que nem ar-tró-po-de. An-tí-po-da.
(silêncio)
— Você gosta de palavras? Eu também, mas gosto mais de cores. Como é
mesmo essa que você falou?
— Acho que é assim tipo um azul-anil.
— O que é anil?
— Uma coisa que usavam antigamente para lavar roupa, acho que nem
existe mais.
— Mas existe?
— O anil? Claro que existe. Existia, pelo menos.
— Não, não. Que coisa também, às vezes você parece que não entende o
que a gente diz. A tal cor, o índigo.
— Ah, claro que existe. Aquela que você quer é que não existe. Só no céu.
(silêncio)
— Quer dizer que o que está no céu não existe?
— Não, não é isso. O que eu quero dizer é que aquela cor lá você não vai
encontrar numa lata para pintar uma parede.
— Janela.
— O quê?
— É janela que eu quero pintar, não parede. E agora nem adianta mais, já
mudou tudo. Cor de céu é coisa que muda depressa demais. Foi ficando tão escuro,
você reparou? Quase tudo azul, depois preto. O preto vem vindo devagar do outro
lado, de onde fica o Japão, toda noite.
(silêncio)
— Está anoitecendo. Vamos embora.
— Não quero ir embora. Eu vou dormir aqui.
— Não pode, é perigoso.
— Perigoso por quê?
— Você só tem dezesseis anos.
— E isso é perigoso?
— Perigosíssimo.
— Pouco me importa. Eu vou ficar aqui até anoitecer completamente no
Japão amanhã de manhã. Não é assim? Amanhece aqui, anoitece lá. Anoitece lá,
amanhece aqui.
(silêncio)
— Vamos, então? O motorista está esperando.
— Já disse que não. Vou dormir aqui.
— Então vou chamar o motorista, vou ligar para o seu pai.
— Pode ir. E quando você for, eu vou entrando no rio enquanto amanhece
no Japão.
— Pra quê?
— Eu quero me matar enquanto amanhece no Japão.
(silêncio)
— É só você dar as costas e eu entro nágua. Duvida?
(silêncio)
— E todo mundo vai achar que a culpa é sua.
(silêncio)
— Ué, você não vai? Tá fazendo o que parado aí?
(silêncio)
— Não adianta nada meu pai pagar você só pra ficar me controlando.
Porque se não for hoje, vai ser amanhã ou qualquer outro dia. Vou me matar bem
na hora em que estiver amanhecendo no Japão.
(silêncio)
— Ninguém vai me impedir.
(silêncio)
— Estranho.
(silêncio)
— De repente eu tive a impressão que você não estava aqui.
(silêncio)
— Que você estava lá.
(silêncio)
— No Japão. No outro lado do mundo.
(silêncio)
— Eu vou dizer que você tentou me estuprar.
(silêncio)
— Todo mundo vai acreditar.
(silêncio)
— Deve estar bonito lá, amanhecendo.
(silêncio)
— Eu vou começar a gritar.
(silêncio)
(Ovelhas negras)
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Um comentário:
Jpa tinha lido esse diálogo.
Só pelo titulo me lembrei de algo
Isso>
E quando, morto de mesmice, te vier a nostalgia de climas e costumes exóticos, de jornais impressos em misteriosos caracteres, de curiosas beberagens, de roupas de estranho corte e colorido, lembra-te que para alguém nós somos os antípodas: um remoto, inacreditável novo do outro lado do mundo, quase do outro lado da vida, uma gente de se ficar olhando, olhando, pasmado… Nós, os antípodas, somos assim.
Mário Quintana in “Sapato florido
Deixo-te.
Bjos linda
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