Contos, crônicas e cartas

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domingo, 19 de setembro de 2010

A José Márcio Penido

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Gay Port (!), 21. 6. 79


Meu caro Garcia de Oliveira,
sim, porque pra um nome como esse só mesmo usando expressões tipo essa, ou “prezado”, ou “mui estimado”. Posto isso, imagino que você esteja surpreso. Esperava receber um cartão cheio de palmeiras e casarios coloniais? Ledo engano: vai esta folha branca, um pouco amolecida pelo frio e pela umidade reinantes aqui por estes pampas, chê. O que aconteceu? Bem, eu FUI até Olinda. Aí rodei por lá um dia inteiro, sem encontrar lugar pra ficar. Acabei indo pra Recife, onde me instalei num hotel de oitava: o Suíça Hotel, na Rua do Hospício — juro! Solucionados os problemas de acomodação, percebi que não conhecia viv’ alma (ai este português castiço!) na cidade. E toca subir rua, descer rua, atravessar Capibaribe, tropeçar em cantador, em retirante, comer tapioca, olhar, olhar, assistir filmes como Iracema ou O Super-Macho ou A ilha das cangaceiras virgens (descobri que Helena Ramos dá de dez em qualquer Sonia Braga, Ana Matos que me perdoe), voltar para o hotel, passar o dedo com desgosto em cima do quilo de poeira dos móveis, olhar, olhar — olhar o quê, meu deus? Meu caro Garcia de Oliveira, me deu uma solidão tão grande que, menos de uma semana depois, arrumei tudo e voltei pra Sampa. Passei uma noite lá. Peguei as lãs e as peles e vim pra cá. Em chegando aqui, apanhei gripe fatal (claro, sair duma temperatura de 30 graus pra outra de -2) que me derrubou até hoje. Quando, mais animadinho, tomo da pena para endereçar-te estas mal traçadas.

E não sei o que dizer, Zézinho, não tô bem. Isso é uma coisa que eu posso dizer, tendo certeza dela. Mas é também uma coisa pela qual você não pode fazer nada, e de pouco adianta eu dizer. Ô, Zé, ando tão desorientado, já faz tempo. E me escondo, e não procuro ninguém, e fico mastigando a minha desorientação. Esse sobe-desce todo da semana passada me deu a medida de como ando. De repente, lá em cima, no Recife, parecia que ninguém no mundo se importava comigo. Eu queria ir pra um lugar onde eu tivesse uma sensaçãozinha, ilusória que fosse, de que tinha alguém prestando atenção em mim. Achei que era aqui. É? Não sei. Me enfiei em casa e não saí. Um desgosto. Leio o tempo todo. Sento no jardim. Ouço música. Tento escrever, mas não sei se quero ou se preciso, e não consigo. Umas carências. Descobri John dos Passos, mas não é suficiente pra encher esse oco que não sei do que é. Mas tomo copos de leite, durmo bastante, e repito sempre que, seja o que for, vou sair desta pelo menos mais sadiozinho. Deve ter algum processo em andamento dentro de mim, querendo explodir de alguma forma. Ou esse desgosto é já um jeito de ser? Se for assim, não quero acostumar. Se quatro anos de análise não deram jeito nele, quem dá? Vezenquando penso no Maurinho, com a sua cientologia. Depois, penso também naquele quase velho poema do John Lennon: “I don’t believe in yoga/ I don’t believe in mantra/ I don’t believe in God/ I don’t believe in Freud/ I don’t believe in drugs/ I don’t
believe in sex/ I don’t believe in Beatles” e termina com um acorde profundo de guitarra e um “I just believe in me”. Mas nem isso.

Tantos trancos. E o meu olho nem conseguindo ver mais nada bonito. Queixas, queixas. Sorry. Nada de grave. Sábado estréia minha peça infantil aqui. Acho que tô contente. Não vi ninguém, fiquei com medo, da outra vez me abalou tanto um garoto que agora eu não quero nem ver, você me entende? Tô exausto de construir e demolir fantasias. Não quero me encantar com ninguém. Meu olho vai ficando duro, vai ficando frio. As frases dão uma volta, e caem na queixa outra vez.

Reli teu Viegas neon: sabe que ele me explica um pouco o meu fascínio por Sampa? E toda vez que releio, me dá um medo de acabar crucificado dentro de uma garrafa. Será que é isso que a cidade faz com a gente? Uma coisa que eu acho que conta quando a gente se compreende é o fato de você ter nascido em Cambuquira e eu em Santiago do Boqueirão. Zézim, vezenquando me dá um ódio de São Paulo e da grande cidade, e depois uma cidade pequenininha me dá uma coisa n’alma, sabe como? uma sensação de estar longe demais de tudo. Vezenquando eu penso que da cidade pequena pra cidade grande alguma coisa se perdeu dentro da gente — me sinto como uma coluna vertebral sem uma vértebra, portanto insustentável. Daí vou pensando um pouco mais nisso e então me dói mais fundo, porque me parece irremediável, inconsertável, insubstituível esse elo, essa vértebra perdida.

Em Recife eu caminhava pensando: que que eu tô procurando aqui, meu deus? Aqui, caminho pensando: que que eu vim fazer aqui, meu deus? Não é uma questão de paisagem exterior, portanto? Mas mal suporto meus próprios pensamentos & sentimentos. É uma grande crise burguesa? Olhando desse jeito, sou só um pequeno burguês, filho da classe média, colonizado culturalmente, devorado por essas angústias abstratas de quem tem barriga cheia e cabeça cheia de inutilidades consumistas? Mas não sei se consigo me reduzir assim, a um simples esquema ideológico. E mesmo que conseguisse: o que vem depois?

Gosto tanto de você. Muitas vezes, é uma referência viva pra mim de São Paulo, você me entende? Assim como se você estando ai, e eu podendo estar junto de você, às vezes, e te ouvindo, e sabendo da tua vida, e você da minha — só isso justificasse algumas coisas, me impedindo de perguntar coisas como “meu deus, o que que eu tô fazendo aqui”. É feito uma resposta.

Ontem achei isso aqui relendo Rilke (as coisas que a gente faz no inverno gaúcho), é da Canção de amor e morte do porta-estandarte. Mando pra você:

“É demais, ter dois olhos. Só à noite, às vezes,
pensa-se conhecer o caminho. Talvez à noite
tornemos sempre a refazer a jornada que
penosamente cumprimos sob o sol estrangeiro?
Pode ser”.


Não é bonito?
Lá pelo dia 1 de julho, tô de volta.
Um carinho na Pobre Menina, la Berenson de Vila Madalena.
Um abraço em Ana Matos, Niño and Samuca.
Jocastamente: não fique trancado demais em casa, atenda o telefone e vá sempre que puder ver o pôr-do-sol na pracinha do Alto de Pinheiros. Se alguma vez, por descuido ou coisa assim, ouvir It’s impossible, pense em mim. Ou não. E se a saudade bater, escreva uma carta que pode ser cheia de queixas, ou cheia de sol. Será bem- vinda.

Te gosto sempre. Um beijo

................................................................................Caio



PS — (Adoro PSs: às vezes o PS é tudo numa carta). Como dizia Clarice Lispector arrematando A hora da estrela e a sua própria vida: “Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos. Sim.”

PS 2 — Seja como for, torno a descobrir que a literatura, essa deusa-cadela, é a coisa que mais tenho amado na vida.

PS 3 — Se Deus quiser, tudo, tudo, tudo vai dar pé. Outro beijo.

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